Opinião

Transparência x confidencialidade: equilíbrio na arbitragem com a administração pública

Autor

  • Erick Luiz Fernandes da Cruz

    é estudante de Direito na Uerj estagiário de Contencioso Cível Estratégico e Arbitragem no Gustavo Tepedino Advogados diretor acadêmico do Comitê de Jovens Arbitralistas (CJA/CBMA) membro da Associação Brasileira de Estudantes de Direito Processual (Abedp) e membro da Liga de Direito Empresarial da Uerj (Lemp).

29 de abril de 2024, 19h23

A arbitragem tornou-se prática recorrente em litígios que envolvem a administração pública. Dados recentes divulgados pela Advocacia-Geral da União indicam que essa modalidade de resolução de disputas já resultou em um balanço financeiro de mais de R$ 200 bilhões em benefícios e economias para a União [1]. Sob essa perspectiva, torna-se essencial revisitar e destacar as discussões sobre a cláusula compromissa arbitral nos contratos que envolvem o poder público.

Que espécies de conflitos envolvendo a administração pública podem ser submetidos à arbitragem?

A Lei de Arbitragem e o Código Civil impõem três requisitos para que se admita a submissão da resolução de uma controvérsia ao julgador privado: devem estar envolvidos a (1) capacidade para contratar; (2) direitos patrimoniais e (3) direitos disponíveis [2]. Tal afirmação fundamenta-se na análise conjunta do disposto no primeiro artigo da LArb [3] e no artigo 851 do Código Civil [4].

Nesse sentido, entende-se que nessa vertente o procedimento não difere essencialmente dos demais litígios que envolvem partes não integrantes da administração pública, isso porque as normas não fazem referência direta à essa especificidade e espécie de conflito. Na realidade, o que se expõe é justamente o oposto: são normais gerais que aplicam-se à Fazenda Pública por ausência de um regimento específico para essa hipótese.

Na mesma linha de raciocínio, o professor Carmona aduz que a arbitragem pode ser convencionada quando o Estado atua fora de sua condição de entidade pública, praticando atos de natureza privada – onde poderia ser substituído por um particular na relação jurídica negocial [5]. Ou seja, quando o Estado despe seu traje vertical para figurar em relação horizontal com seus particulares, como pessoa.

Destaca-se que aqui não se está a afirmar que o Estado age como pessoa física, mas sim como pessoa no conceito do Direito Civil. Portanto, o nexo que se deve atribuir ao vocábulo é o que versa a possibilidade de ser sujeito de direito [6], na qualidade de integrar um dos polos de uma relação jurídica. Portanto, considerando que o Estado integra o conceito de pessoa jurídica de direito público interno e possui evidente capacidade contratual, não há dúvida de que ele preenche o requisito de ordem subjetiva exigido pela lei para participar de processo arbitral [7].

Nesse caso, como nos outros contratos com clausula compromissória, é necessária a comutatividade, sendo clara a intenção das partes em participar de tal celebração e de submeterem a um tribunal arbitral [8]. Logo, mais uma vez explicita-se que o principal divisor de águas – entre as arbitragens de Direito Privado e as que envolvem a administração pública – é a necessidade de que esta aja enquanto utiliza as vestes de pessoa, e não ente.

A publicidade estabelecida em lei para procedimentos arbitrais envolvendo interesses da administração pública admite relativização?

Apesar de ser um grande fantasma que atormenta os operadores do direito que se envolvam com litígios arbitrais desta espécie, entende-se que não se deve dar grande importância para o questionamento em tela, uma vez que a restrição à publicidade não é algo obrigatório no procedimento arbitral, mas uma faculdade colocada à disposição das partes [9].

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Deve-se ter em mente o espírito da norma do sigilo absoluto e o quê o legislador tinha em mente quando a redigiu. Não é segredo para a doutrina pátria que a Lei de Arbitragem não foi pensada para conflitos envolvendo a administração pública. Por isso, não é dificultoso inferir que o sigilo aqui descrito diz respeito às relações privadas. Como exemplo, tomemos os conflitos societários [10] que envolvem a análise de temas e documentações inerentes e importantíssimos para as sociedades anônimas que se submetem à via arbitral.

Nesse mesmo sentido, podemos observar, na prática, o que o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA), importantíssima câmara arbitral, prevê em seu Regulamento [11]:

“17.1. Salvo acordo em contrário das partes, ou se exigido por lei aplicável às partes, os membros do Tribunal Arbitral e do Centro manterão confidencialidade sobre os assuntos relacionados à arbitragem, salvo aqueles porventura já de domínio público ou que já tenham sido de alguma forma divulgados.

17.2. O Centro poderá dar publicidade à sentença arbitral, caso previamente autorizada pelas partes ou, em caso negativo, poderá o Centro, de qualquer modo, divulgar excertos de sentença arbitral, desde que preservada a identidade das partes.”

Também de imenso valor para a solução adequada de conflitos, a Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial do Brasil (Camarb) [12] traz, em seu regulamento, normas com o mesmo caráter:

“12.1 Este capítulo será aplicável aos procedimentos arbitrais que envolvam entidades sujeitas ao regime de direito público que integrem a administração pública direta e indireta. As partes, de comum acordo, poderão estender a aplicação das disposições deste capítulo aos procedimentos que tenham como parte pessoas jurídicas de direito privado que integrem a administração pública.

12.2 A Secretaria da Camarb divulgará em seu site a existência do procedimento, a data da solicitação de arbitragem e os nomes dos requerente(s) e requerido(s).

12.3 Ressalvado o disposto no item precedente, a Camarb não fornecerá documentos e informações a respeito do procedimento, cabendo às partes, na forma da lei, a divulgação de informações adicionais.

12.4 As audiências serão, salvo convenção em contrário, restritas às partes e seus procuradores.”           

Assim, conclui-se que não há superioridade normativa da Lei de Arbitragem frente a normas de caráter constitucional que prevejam a transparência de órgãos públicos. De modo absolutamente diverso, o que se defende é que o princípio da transparência deve ser respeitado, dando-se acesso aos interessados à decisão e aos atos essenciais do processo arbitral (quando necessário), preservando-se, porém, o sigilo dos debates e a confidencialidade dos documentos que instruíram o processo arbitral [13].

Ainda quanto à relativização, cumpre observar que costuma-se assegurar às partes, seus procuradores, órgãos de controle etc. o direito de consultar os autos (ou ao menos de obter dados do processo), sempre com a advertência de que se zele pela manutenção da restrição da publicidade [14]. Além disso caso uma das partes decida impugnar a sentença arbitral ou a convenção de arbitragem perante o Poder Judiciário, o sigilo eventualmente pactuado na arbitragem cederá à regra geral de publicidade que norteia o processo judicial [15].

Isso acontece porque o litígio já não mais estará no bojo arbitral, de modo que a prevalência do seu sigilo ficará em grande parte na mão do juiz que conduzirá o processo judicial, a quem caberá fundamentalmente determinar que o processo judicial tramite total ou parcialmente em segredo de justiça [16].

Em suma, nota-se que a publicidade estabelecida em lei para tais procedimentos arbitrais envolvendo interesses da administração pública admite relativização. Isso porque há a possibilidade de tramitação do litígio em sigilo, de modo que se assim ocorrer, haverá o respeito à transparência, sendo fornecidas informações acerca da lide, que por sua vez devem respeitar as nuances sigilosas, como a documentação que trate dos cofres de uma concessionária, por exemplo.

 


[1] VILLAR, Marcela. Processos de arbitragem já renderam à União R$ 222 bi. Disponível em: https://valor.globo.com/impresso/noticia/2024/02/15/processos-de-arbitragem-ja-renderam-a-uniao-r-222-bi.ghtml/ Acesso em 23.4.2024.

[2] AMARAL, Paulo Osternack. Arbitragem e Administração Pública. Aspectos processuais, Medidas de Urgência e Instrumentos de Controle. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 53.

[3] Lei nº 9.307, DE 23 DE SETEMBRO DE 1996. Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

[4] Código Civil. Art.  851. É admitido compromisso, judicial ou extrajudicial, para resolver litígios entre pessoas que podem contratar.

[5] CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. São Paulo: Atlas, 2000. p. 45.

[6] DE MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954. p. 154.

[7] AMARAL, Paulo Osternack. Arbitragem e Administração Pública. Aspectos processuais, Medidas de Urgência e Instrumentos de Controle. Belo Horizonte, Fórum: 2012, p. 55.

[8] FRASÃO, Stanley Martins et. al. Arbitragem e administração pública: A possibilidade da cláusula arbitral em contratos administrativos, 2024. In: Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/338891/arbitragem-e-administracao-publica–a-possibilidade-da-clausula-arbitral-em-contratos-administrativos/ Acesso em 9.4.2024.

[9] CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. São Paulo: Atlas, 2000. p. 51.

[10] VIGNA, Paulo Roberto. Utilização preferencial da arbitragem em conflitos societários, 2024. In: Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/403575/utilizacao-preferencial-da-arbitragem-em-conflitos-societarios/ Acesso em 9.4.2024.

[11] Disponível em: https://cbma.com.br/wp-content/uploads/2022/01/Regulamento-de-Arbitragem-valido-a-partir-de-01.02.2013.pdf/ Acesso em 10.4.2023.

[12] Disponível em: https://camarb.com.br/wpp/wp-content/uploads/2019/10/regulamento-de-arbitragem-camarb-2019_atualizado2019.pdf;/ Acesso em 10.4.2024.

[13] CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. São Paulo: Atlas, 2000. p. 52.

[14] TALAMINI, Eduardo. Arbitragem e parceria público-privada. In: TALAMINI, Eduardo; JUSTEN, Monica Spezia (Coord.). Parcerias Público-Privadas: um enfoque multidisciplinar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 356.

[15] VELLOSO, Adolfo Avarado. Validade de eficácia de convenção de arbitragem em contratos administrativos: a ótica judiciária. In: LEMES, Selfa Ferreira; Carmona, Carlos Alberto; MARTINS, Pedro Batista (Coord.). Arbitragem: estudos em homenagem ao Prof. Guido Fernando da Silva Soares, in memoriam. São Paulo: Atlas, 2007. p. 441.

[16] AMARAL, Paulo Osternack. Arbitragem e Administração Pública. Aspectos processuais, Medidas de Urgência e Instrumentos de Controle. Belo Horizonte, Fórum, 2012, p. 50

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  • é estudante de Direito na Uerj, estagiário de Contencioso Cível Estratégico e Arbitragem no Gustavo Tepedino Advogados, diretor acadêmico do Comitê de Jovens Arbitralistas (CJA/CBMA), membro da Associação Brasileira de Estudantes de Direito Processual (Abedp) e membro da Liga de Direito Empresarial da Uerj (Lemp).

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