Opinião

Reserva de vagas para PcD em concurso estruturado por região ou especialidade

Autor

  • Thiago Palaro Di Pietro

    é consultor legislativo de direitos humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) e mestre em Ciências Jurídicas-Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal).

30 de abril de 2024, 11h15

Nos termos da Constituição de 1988, estabeleceu-se como mandamento a necessidade de realização de concursos públicos de provas ou de provas e títulos para a investidura em cargos no âmbito da administração pública, conforme preceitua o artigo 37, inciso II.

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Tal exigência configura-se como corolário e mecanismo de salvaguarda dos princípios basilares da administração pública, insculpidos no caput do mencionado artigo 37 — legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência — e reiterados pelo princípio da isonomia, presente na cláusula geral do artigo 5°.

A implementação de concursos públicos visa simultaneamente à concretização de dois desideratos constitucionais essenciais. Inicialmente, assegura que o acesso aos cargos públicos se dê por meio de um processo competitivo aberto, promovendo a igualdade de oportunidades para todos os concorrentes e a adoção de critérios impessoais de seleção. Esse procedimento reflete uma aplicação prática dos princípios de igualdade, impessoalidade e moralidade administrativa.

A execução isonômica e despersonalizada dos concursos públicos manifesta a concepção típica dos Estados democráticos de Direito acerca da igualdade de todos perante a lei e, por extensão, perante a administração pública.

Destarte, o ingresso nos cargos e funções públicas deve ser regulado de maneira a permitir que todos os interessados disputem as vagas em condições de plena igualdade, abolindo os métodos de seleção baseados em nepotismo ou favoritismo.

Consoante o princípio clássico da isonomia, deve-se tratar os iguais de forma igualitária e os desiguais de forma desigual, na medida de suas desigualdades. A impessoalidade requer que a administração não faça distinções injustificadas, inclusive entre candidatos com ou sem deficiência.

Os princípios mencionados, portanto, vedam discriminações arbitrárias e infundadas, que careçam de fundamentação racional e objetiva e que não se destinem a promover um propósito constitucionalmente válido.

Reserva de vagas para pessoas com deficiência

Secundariamente, os concursos públicos facultam que a administração pública selecione os indivíduos mais capacitados para o desempenho das funções demandadas, com base em suas competências físicas e/ou intelectuais. Nessa ótica, tais certames são entendidos como um meio de assegurar a eficiência na atuação dos agentes administrativos.

Assim, os concursos delimitam, entre todos os postulantes, aqueles que detêm as habilidades e qualificações requeridas para o cargo, estabelecendo critérios de aprovação e requisitos mínimos para cada etapa do processo seletivo.

Ademais, tais princípios da Constituição não obstruem a integração de critérios adicionais em concursos públicos que visem promover a igualdade material, em contraposição à igualdade meramente formal; adicionalmente, a administração pode adotar outros critérios de classificação, que incluem a reserva de vagas para pessoas com deficiência (CF/1988, artigo 37, VIII) e negros (Lei n° 12.990/2014), bem como a utilização da idade como critério de desempate (Lei nº 10.741/2003 – Estatuto do Idoso), em prol de maior integração à administração pública de grupos historicamente marginalizadas.

O tema se torna complexo quando é criado novo método de seleção em concurso público sem uma visão antecipada dos impactos que podem ocorrer na competitividade entre os candidatos com ou sem deficiência, assunto que este artigo abordará.

Divisão das vagas em regiões ou especialidades

Com fundamento de aprimorar a seleção e promover maior eficiência nos serviços públicos, é cada vez mais recorrente que os concursos públicos prevejam divisão das vagas de um cargo em regiões ou especialidades. Ao almejar servidores com habilidades específicas ou para locais predeterminados, a administração irá prover, em tese, serviços especializados, bem como contará com funcionários mais inclinados em laborar em locais distantes dos centros urbanos, conforme explicitado no edital referente às particularidades do cargo.

Contudo, as vagas anteriormente concentradas agora encontram-se dispersas; a reserva de vagas para indivíduos com deficiência, que seria calculada proporcionalmente ao total, poderá ser considerada por cada subdivisão.

Por exemplo, em um concurso público federal com 30 vagas, seria obrigatória a reserva de 5% para pessoas com deficiência, o que normalmente resultaria em nomeações efetivas dentro desse quantitativo [1].

No entanto, se essas 30 vagas forem distribuídas em 30 regiões conforme o edital, a aplicação do percentual de 5% sobre uma única vaga por divisão não produzirá efeitos desejados, pois a administração somente nomearia o primeiro colocado de ampla concorrência de cada região, relegando os indivíduos com deficiência em posição de desclassificados por inexistência de vaga ou cadastro reserva em cada localidade, se houver essa previsão. Este cenário demonstra claramente uma lacuna e distorção na implementação da política afirmativa.

O Decreto 9.508/2018

O principal mecanismo que veio em auxílio ao administrador público e em garantia aos direitos fundamentais do portador de deficiência física, foi o Decreto nº 9.508, de 2018, que alterou o Decreto nº 3.298, de 1999, e acresceu na regulamentação do Estatuto do Deficiente (Lei nº 13.146, de 2015).

Especificamente, o artigo 1º, § 4º, I, do Decreto nº 9.508/2018, estabelece que, em concursos públicos ou processos seletivos regionalizados ou estruturado por especialidade, o percentual de reserva deve ser aplicado ao total de vagas anunciadas no edital para o cargo, salvo casos em que se demonstre que a aplicação segmentada não resultará em diminuição do número de vagas destinadas às pessoas com deficiência.

No entanto, o decreto enfrenta críticas, pois revela vulnerabilidades para situações não antecipadas:

Primeiramente, a própria natureza normativa do decreto gera insegurança jurídica, visto que não foi submetido ao processo legislativo e, logo, não tem a mesma hierarquia que uma lei sentido estrito. Além disso, uma de suas principais características é a precariedade, visto que pode ser revogado ou alterado discricionariamente a qualquer tempo pelo Poder Executivo.

Neste diapasão, surge um questionamento: entre o decreto em análise e uma lei de natureza interna corporis de um determinado cargo público, com previsão de subdivisão por especialidades ou regiões (i.g., professor universitário, subdividido em áreas de formação acadêmica e/ou campus universitários), mas com omissão sobre a reserva de vagas para candidatos com deficiência, não há consenso sobre qual normativo deve prevalecer.

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Ademais, o alcance do decreto é limitado aos certames da administração pública federal direta e indireta, nos termos do seu artigo 1º. Assim, nos estados onde não exista norma similar, candidatos com deficiência poderão ser prejudicados pela ausência de regulamentação infralegal equivalente.

Neste sentido, é imperativo obstar que entes administrativos eludam a observância das normativas legais, utilizando estratagemas que restrinjam a efetividade ou obstruam a aplicação da reserva de cargos em certames específicos.

As entidades governamentais devem assegurar que a exegese dos preceitos contidos nas leis protetivas aos candidatos com deficiência seja aquela que mais amplamente favoreçam a realização de suas finalidades.

Conforme o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em estudo referente às cotas em concurso público para candidatos negros (mas que pode ser utilizado de forma análoga as pessoas com deficiência, conforme situações exploradas neste artigo), foram apontadas possíveis fraudes pela administração pública por restringir, por meio de legislação, editais ou interpretações destes, a efetividade das cotas apenas às vagas anunciadas no edital do concurso público (em detrimento da totalidade de vagas disponíveis), o que limitaria significativamente a extensão da medida.

Adicionalmente, menciona que em concursos com um número reduzido de vagas, como é o caso do magistério superior quando o certame é dividido por especialidade, a legislação vigente pode acabar por não ter o impacto desejado [2].

Posição da Justiça

O Poder Judiciário tem atuado, por meio de suas decisões judiciais, com intuito de prevenir preterições e burlas em concursos públicos nacionais, especialmente no que se refere às vagas reservadas para pessoas com deficiência para concursos regionalizados ou segmentados por especialidade. Nota-se que essa atuação não é uniforme e varia consideravelmente quanto aos fundamentos jurídicos empregados.

Observou-se concretamente uma tentativa de pacificação do tema em âmbito nacional por intermédio da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) nº 41, relatada pelo ministro Luís Roberto Barroso, no qual o STF afirmou pela constitucionalidade da Lei nº 12.990, de 2014 (dispõe sobre a reserva de vagas em concursos públicos para pessoas negras). O acórdão proferido trouxe esclarecimentos importantes, estabelecendo que:

“(…)

  1. Por fim, a administração pública deve atentar para os seguintes parâmetros: (i) os percentuais de reserva de vaga devem valer para todas as fases dos concursos; (ii) a reserva deve ser aplicada em todas as vagas oferecidas no concurso público (não apenas no edital de abertura); (iii) os concursos não podem fracionar as vagas de acordo com a especialização exigida para burlar a política de ação afirmativa, que só se aplica em concursos com mais de duas vagas; e (iv) a ordem classificatória obtida a partir da aplicação dos critérios de alternância e proporcionalidade na nomeação dos candidatos aprovados deve produzir efeitos durante toda a carreira funcional do beneficiário da reserva de vagas.”

Essas diretrizes são mais abrangentes e esclarecedoras do que as estipulações do Decreto nº 9.508/2018, apesar de não abarcarem todas as possíveis situações de preterição. Ademais, de maneira paradoxal, a decisão possui maior amplitude normativa, tendo em vista que o decreto mencionado se limita aos concursos públicos federais, enquanto a decisão do STF, com efeitos vinculantes e erga omnes, deve ser obedecida por toda a administração pública nacional [3].

Não obstante, tal decisão tem sido invocada de forma recorrente pelo Superior Tribunal de Justiça, mutandis mutatis, para caso de preterições de candidatos com deficiência, bem como tem sido matéria de repercussão para reclamações constitucionais ao STF, conforme RE 1.260.334/SC, ministro relator Edson Fachin.

Neste sentido, podemos citar os julgados AgInt no RE 1.664.638/DF, AgInt no RMS 65.107/SP e RE 1.821.043/SC, na qual, em suma, afirmam que “adotar como universo de vagas, para fins de reserva vaga aos portadores de necessidades especiais, aquelas destinadas à especialidade do cargo (como no caso de magistério superior), ou, ainda, por localidade de lotação, e não a totalidade de vagas ofertadas no certame, reflete burla às ações afirmativas”. Assim, “aplicam-se eles (fundamentos da ADC 41 às pessoas com deficiência) integralmente ao caso concreto, haja vista que o aforisma ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositio (onde há a mesma razão de ser, deve prevalecer a mesma razão de decidir)”.

No entanto, destaca-se que, no âmbito do STJ e STF, ainda não se consolidou uma jurisprudência sobre o tema, havendo apenas uma série de precedentes que adotam a linha interpretativa estabelecida pela ADC 41.

Importante ressaltar que a mencionada decisão, embora proporcione um entendimento materialmente mais abrangente e vantajoso do que o estabelecido pelo Decreto nº 9.508/2018, apresenta uma fragilidade formal significativa.

Além disso, apesar de a decisão não entrar em conflito direto com o decreto — na verdade, serve como um complemento a este —, a multiplicidade de orientações normativas e de interpretações gera confusão nas bancas examinadoras e nos gestores dos concursos públicos, enfraquecendo a eficácia dos próprios certames e das ações afirmativas implementadas.

A solução mais efetiva para abordar a questão apresentada seria a proposição de emenda ao Estatuto do Deficiente com o intuito de consolidar o entendimento atualmente sustentado pelo STF. Tal medida restringiria que a matéria continuasse sujeita a regulamentações infralegais, as quais são, por natureza, instáveis. Portanto, uma lei proporcionaria a força normativa necessária para resolver os conflitos de normas e uniformizar o entendimento em todo o território nacional.

Relativamente ao conteúdo desta eventual emenda, o acórdão da ADC 41 já delineou as diretrizes mínimas que a administração pública deve adotar para a implementação eficaz de ações afirmativas em concursos públicos.

Adicionalmente, é recomendável a incorporação da orientação proferida pelo ministro Luís Roberto Barroso em seu voto, a qual advoga que “deve-se aglutinar, sempre que possível, as vagas em concursos com baixo número de vagas”. Esta abordagem tem o propósito de prevenir potenciais fraudes e interpretações ambíguas que possam surgir durante o processo de nomeação.

Por fim, tais iniciativas visam não apenas a correção de práticas correntes, mas também o fortalecimento da eficácia, da responsabilidade e da representatividade dentro da administração pública. Alinhando as práticas de seleção de candidatos com deficiência aos valores democráticos de igualdade, justiça e eficiência governamental, estas medidas reafirmam o compromisso com uma gestão pública inclusiva e equitativa.

 


[1] Decreto nº 9.508, de 24 de setembro de 2018:

Art. 1º Fica assegurado à pessoa com deficiência o direito de se inscrever, no âmbito da administração pública federal direta e indireta e em igualdade de oportunidade com os demais candidatos, nas seguintes seleções:

(…)

§1º. Ficam reservadas às pessoas com deficiência, no mínimo, cinco por cento das vagas oferecidas para o provimento de cargos efetivos e para a contratação por tempo determinado para atender necessidade temporária de excepcional interesse público, no âmbito da administração pública federal direta e indireta.

[2] Nota Técnica nº 17, de 2014 – Reserva de vagas para negros em concursos públicos: uma análise a partir do Projeto de Lei 6.738/2013. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/5781/1/NT_n17_Reserva-vagas-negros-concursos-publicos_Disoc_2014-fev.pdf. Acesso em: 17 abril 2024.

[3] Constituição Federal

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

(…)

§2º. As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

Autores

  • é consultor legislativo de direitos humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) e mestre em Ciências Jurídicas-Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal).

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