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Programa Litígio Zero 2024: significado, extensão e devida cautela

Autor

  • Elidie Palma Bifano

    é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.

3 de abril de 2024, 8h00

Em 18/3/2024, a Secretaria Especial da Receita Federal publicou o Edital de Transação por Adesão nº 1, voltado à criação de mais um programa de resolução de litígios com contribuintes, pessoas físicas e jurídicas, que possuam débitos em contencioso administrativo, desde que o valor, por contencioso, seja igual ou inferior a R$ 50 milhões, por processo administrativo.

Essa matéria é regida pela Lei nº 13.988/2020, que dispõe sobre a transação, em matéria tributária, e o Edital nº 1 insere-se no âmbito do Programa de Redução de Litígio Fiscal (PRLF), instituído pela Portaria Conjunta PGFN/RFB/2023. A redução de litígios é uma meta elogiável do governo, dado o alto custo, para o poder público e para os contribuintes, que esse ambiente de disputa vem acarretando.

Quanto às pessoas jurídicas, estão aptos à transação débitos relativos a tributos administrados pela Receita, inclusive as contribuições sociais, desde que estejam em contencioso administrativo. A expressão contencioso administrativo compreende:

(1) os processos administrativos que impliquem a suspensão da sua exigibilidade, nos termos do artigo 151, inciso III, do Código Tributário Nacional (CTN);
(2) os processos administrativos regidos pela Lei nº 9784, lei do processo administrativo na administração pública federal,  mesmo que não impliquem a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, inclusive os referentes a programas de parcelamento e
(3) o contencioso instaurado pela concessão de medida liminar em mandado de segurança.

Na forma do parágrafo único do artigo 14, da Lei nº 13.988/2020, os créditos são classificados em função de sua condição de recuperação (irrecuperáveis/de difícil recuperação e de média/alta recuperação) o que permitirá a concessão de benefícios voltados à redução de juros e de multa, em até 100%, pagamento com prejuízos fiscais e base negativa de Contribuição Social sobre o Lucro, entrada parcelada e parcelamento do saldo em prazos que chegam a 115 meses.

No Edital nº 1, em geral, repetem-se as condições de adesão já utilizadas em outros programas, bem como em relação às obrigações dos contribuintes, razão pela qual nos absteremos de comentá-las, exceto no que tange à autorização para que a Receita compense de ofício débitos existentes, bem como a prestação de informação das empresas que aderem a esse programa de pagamento comporem, ou não, grupo econômico de fato ou de direito.

Histórico e resultados dos parcelamentos

A transação tributária por adesão, no Brasil, tem uma longa história que se iniciou com o antigo Programa de Recuperação Fiscal (Refis), instituído pela primeira vez pela Lei 9.964/2000 e reeditado muitas vezes [1].

Dado o uso corriqueiro desse instrumento, o Refis acabou sendo visto, muitas vezes, como um caminho fácil para os contribuintes mal pagadores como uma justificativa para deixar de cumprir com suas obrigações tributárias.

De nossa parte, já nos manifestamos no sentido de quão deseducativo pode ser a edição de tais programas por envolverem uma contradição: a inobservância da lei e consequente inadimplência, objeto de multas gravosas e juros quando detectadas pelas autoridades fiscais, tornarem-se, algum tempo depois, objeto de transação, com tais multas e juros reduzidos ou cancelados, permitindo-se, também parcelamentos de débitos a longo prazo.

Esse tema foi objeto de estudo pela Receita Federal, como se observa do documento Estudo sobre Impactos dos Parcelamentos Especiais [2], atualizado em 29/12/2017 (não localizamos atualização desse material para os dias de hoje, embora ele mantenha, para nosso uso, sua utilidade), o qual objetiva verificar os efeitos desses programas no comportamento dos contribuintes, no que se refere à arrecadação espontânea.

Conclui tal documento que até a data de sua publicação, a renúncia fiscal, somente em relação aos maiores programas a partir de 2008, foi da ordem de R$ 175 bilhões. Em demonstrativos específicos indica as adesões aos programas e as efetivas liquidações ocorridas: por exemplo, no Refis da Lei nº 9.964/2000 ocorreram 129.181 adesões contra 117.446 exclusões, ou seja, somente 9% das adesões geraram arrecadação, até a data do levantamento.

Esse percentual de exclusões se reduz, ao longo do tempo, porém nunca o grupo das entidades que arrecadaram, excedeu a 33%, na média, dos aderentes.

O estudo conclui que o resultado na arrecadação é danoso, tendo o crédito tributário, sob gestão da Receita, dado um imenso salto a partir de 2013, alavancado em parte por tais renúncias, o que contribui para o déficit fiscal.

Logo, a instituição de parcelamentos especiais não tem atingido os objetivos deles esperados: incrementar a arrecadação e promover a regularidade fiscal dos devedores, devendo qualquer medida proposta nesse sentido ser rejeitada.

Arrecadação em curto prazo e dificuldades fiscais a longo prazo

Ora, se a própria Receita divulga tais informações e anota os danos de tais programas, qual seria a razão de novas hipóteses de transação seguirem sendo introduzidas?

Certamente, a nosso ver, o maior ganho do poder público reside na entrada que se cobra do contribuinte para aderir à transação, ainda que no futuro ele deixe de pagar o financiamento obtido, vindo bem a calhar para resolver problemas de eventuais déficits, ainda que o “contas a receber” da Receita seja diferido no tempo….

Além disso, o uso do prejuízo fiscal aparenta resultar em mero movimento contábil que não afeta o balanço público, pois ocorreria apenas um encontro de contas como se fossem meras contas de compensação, neutras para fins contábeis. Entretanto, a Receita está desistindo de realizar o prejuízo na proporção permitida para o contribuinte (até 30% do lucro tributável e da base negativa da contribuição social sobre o lucro) em troca de uma benesse.

Spacca

Não nos alinhamos ao entendimento de que tais programas sejam tão danosos, especialmente em homenagem aos contribuintes que cumprem com seus compromissos de transação e buscam fôlego para renovar suas atividades, uma vez que a fórmula de tais financiamentos é muito atraente, pois o custo do dinheiro no mercado financeiro é sempre alto.

Não rejeitamos propostas dessa natureza, apenas entendemos que seus resultados têm se mostrado pífios, além de se prestarem a resolver problemas de arrecadação em curto prazo e gerarem dificuldades fiscais a longo prazo.

Edital nº 1 e declaração sobre grupo econômico

No que tange à proposta do Edital nº 1, sob análise, ela não diverge das propostas anteriores, em termos e finalidades, apenas chamando a atenção os aspectos já apontados: autorização para compensação de ofício e referência à integração do aderente em um grupo econômico.

A compensação de ofício foi introduzida pelo Decreto-Lei nº 2.287/1986, artigo 7°, hoje com a redação da Lei nº 11.196/2005, sendo aplicada antes de a Receita Federal atender pedidos de restituição ou ressarcimento de tributos, se verificado que o contribuinte é devedor da Fazenda Nacional.

Como a hipótese de transação não envolve restituição ou compensação, essa determinação deve ser voltada a montantes habilitados com os débitos transacionados. O melhor é aguardar por sua regulação e aplicação.

A exigência de declaração de a entidade estar integrada em grupo econômico pode soar estranha, pois para fins tributários a responsabilidade pelo crédito tributário, na forma do artigo 121 do CTN, é da pessoa obrigada ao pagamento do tributo, o sujeito passivo.

Há, apenas, duas hipóteses de sujeito passivo: (1) o contribuinte, pessoa que tem relação pessoal e direta com a situação de fato que se inscreve na hipótese de incidência do tributo e (2) o responsável, pessoa cuja obrigação decorre de expressa disposição de lei. Logo, a determinação do Edital nº 1 vai além das hipóteses de responsabilidade previstas no CTN?

Destaque-se que o Edital nº 1 faz referência a grupos de fato e de direito. O grupo de fato é caracterizado por um conjunto de entidades sob controle ou administração comum sem que isso necessite qualquer formalização especial.

A lei tributária contempla, por diversas vezes, a figura do grupo de fato, como é o caso das empresas sujeitas à aplicação da metodologia da equivalência patrimonial e do instituto da distribuição disfarçada de lucros.

O grupo de direito está previsto na Lei n° 6.404/1976, artigo 265, sendo formado por controladora e suas controladas mediante convenção que regula suas relações, mantendo todas, porém, personalidade e patrimônio próprios, logo não pressupondo solidariedade entre elas.

A solidariedade, para fins do CTN, é tratada no artigo 124, que exige interesse comum na situação que constitui fato gerador do tributo ou pessoas expressamente designadas em lei.

O CTN não autoriza o redirecionamento da cobrança do crédito tributário para pessoas jurídicas que integram grupo econômico, nos termos já comentados, visto que a relação que se estabelece entre as empresas integrantes do grupo, seja ele de fato ou de direito, não implica, automaticamente, solidariedade em matéria tributária.

A simples relação de controle e coligação não constitui, em face do CTN, e por mera presunção, interesse jurídico nos negócios desenvolvidos suficiente para gerar a solidariedade tributária, figura típica, insuscetível de flexibilização.

É de se relembrar, entretanto, que o Código Civil contempla disposição específica, artigo 265, que veda a presunção de solidariedade, somente podendo esta resultar da lei ou da vontade das partes.

Em matéria tributária a única hipótese legal de solidariedade, além do já referido artigo 124 do CTN, consta da Lei nº 8.212/1991, que trata sobre a organização da Seguridade Social e de seu custeio, a qual dispõe em seu artigo 30, IX, que as empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza respondem entre si, solidariamente, pelas obrigações dessa lei decorrentes.

A figura aqui introduzida é de um grupo econômico de fato, posto que a referência é a empresas integradas sem, contudo, a exigência de formalização contratual na forma da Lei nº 6.404/1976.

Essa determinação legal, entretanto, tem sido objeto de muita polêmica e foi objeto de exame pelo STJ, no REsp nº 1.079.203, de 3/3/2009, que entendeu não caracterizar a solidariedade passiva em execução fiscal o simples fato de duas empresas pertencerem ao mesmo grupo econômico, ainda que pese ser admissível a desconsideração da personalidade jurídica em função da solidariedade quanto à obrigação tributária, nas circunstâncias previstas em lei.

Essa determinação é repetida na Instrução Normativa Receita nº 2.110/2022,  que em seu artigo 136, I, dispõe que  são responsáveis solidários, entre si,  pelo cumprimento da obrigação previdenciária principal as empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza. De toda sorte, o Edital nº 1 não tem força de lei para permitir a solidariedade em matéria tributária.

Por fim, cabe examinar a solidariedade resultante de acordo de vontades, e a transação tributária é um acordo de vontades, logo pode configurar-se  hipótese concreta do disposto no artigo 296 do Código Civil.

Com isso é efetivo, a nosso ver, o argumento de que  sendo a adesão uma opção do contribuinte, contratada com o Fisco, é possível exigir que outras empresas do mesmo grupo econômico respondam pela obrigação inadimplida, mas esta obrigação deve ser expressa e não presumida por conta das condições do Edital nº 1.

De outra sorte, a declaração sobre o grupo econômico poderia caracterizar, apenas,  garantia de solvência, mostrando a força do conjunto frente às exigências fiscais, contudo, no Brasil inexiste a tributação de grupos, o que dificulta essa interpretação.

Adesão requer cautela

Essa providência no que se refere a informações sobre grupos, certamente foi introduzida para permitir maior efetividade dos programas de financiamento de débitos tributários, mas é duvidosa.

Com isso é de se concluir que a adesão à transação do Edital nº 1, de 2024, exige cautela quando forem prestadas informações sobre as empresas integrantes dos grupos econômicos, pois podem estar sendo assumidas responsabilidades tributárias que vão além do simplesmente contratado com a empresa aderente ao programa.

Somente no futuro se poderá aferir os frutos de tal medida, podendo ser uma tentativa de solução para o baixo índice de cumprimento de obrigações em transações com o Fisco.

É interessante observar, também, que as transações, em geral, são divulgadas logo após decisões de teses relevantes nos tribunais administrativos e/ou judiciais, apresentando a oportunidade real de liquidar passivos com descontos.

Nesse sentido, o último grande revés dos contribuintes ocorreu com o decidido no Tema Repetitivo 1.079, julgado pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em 13/3/2024, cuja tese consistia em definir:

“se o limite de 20 (vinte) salários mínimos é aplicável à apuração da base de cálculo de ‘contribuições parafiscais arrecadadas por conta de terceiros’, nos termos do art. 4º da Lei n. 6.950/1981, com as alterações promovidas em seu texto pelos arts. 1º e 3º do Decreto-Lei n. 2.318/1986.”

Nada indicava que o STJ pudesse alterar seu entendimento, há muito tempo já firmado, entretanto a decisão final foi desfavorável para os contribuintes, restando, ainda, aguardar a publicação do acórdão, a apresentação de embargos de declaração e eventual modulação.

Deve-se atentar que o prazo final de adesão aos termos do Edital nº 1  é 1/7/2024 e que os eventos apontados, acórdão, embargos e eventual modulação,  podem não ter ocorrido até essa data, o que exige cautela na adesão.

Aderir às transações em matéria tributária, como proposto pela Receita, é um exercício de liberdade, protegido pela Constituição, sendo fundamental, para tanto, que os contribuintes examinem todos os aspectos que envolvem a oferta de tal benefício.

Como toda faculdade, a adesão ao Edital nº 1/2024 envolve cautela e o julgamento de benesses tributárias em contrapartida de alguns ônus, a compensação de ofício e o redirecionamento da responsabilidade para outras empresas do mesmo grupo econômico, frente à oportunidade de resolver litígios pendentes. Esperemos pelos próximos passos do Fisco e dos contribuintes.

 

 


[1] Sempre foi nosso entendimento que o Refis era uma forma de transação. De acordo com https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2024/01/09/governo-vai-dar-desconto-de-70percent-para-quem-tem-dividas-com-a-uniao-e-espera-recuperar-mais-de-r-24-bi.ghtml , teriam sido editadas mais de 50 versões de Refis.

[2] https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/arquivos-e-imagens/20171229-estudo-parcelamentos-especiais.pdf

Autores

  • é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo/FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU—IICS e advogada em São Paulo.

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