Opinião

Advocacia pública e controle de atos da administração tributária

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23 de abril de 2024, 19h27

Em tempos de reforma tributária, observa-se que há inegável incentivo para que a própria relação entre Fisco e contribuinte seja repensada. Há diversos projetos de lei em trâmite no Senado com esse objetivo (PLP 124/2022, PLP 125/2022, PL 2.481/2022, PL 2.483/2022, PL 2484/2022, PL 2.485/2022 , PL 2.486/2022, PL 2.488/2022, PL 2.489/2022 e PL 2.490/2022), inclusive relacionados à modernização do processo tributário. Muito se fala em redução de litigiosidade, meios alternativos de solução de conflitos, respeito aos precedentes, segurança jurídica.

Nesse contexto, a atuação da advocacia pública, como função essencial à Justiça (conforme artigo 131 e seguintes da Constituição), merece ser lembrada e incentivada. O certo é que a advocacia pública deve assumir um papel cada vez mais crucial na atualização do nosso sistema tributário e isso está associado ao controle exercido sobre os atos praticados pela administração tributária. O foco deve ser os interesses dos entes federados, mas também aqueles dos contribuintes.

Assim, o primeiro aspecto a ser pontuado é que o advogado público é o agente responsável pelo controle de legalidade dos atos praticados pelo Fisco. O ponto de equilíbrio da relação entre Fisco e contribuintes é alcançado a partir da advocacia pública e suas diversas funções previstas constitucionalmente.

Transação tributária

Um exemplo marcante da evolução desse controle administrativo se materializou com a introdução no nosso ordenamento jurídico da transação tributária, nos termos da Lei 13.988/2020 e sua centralização no âmbito da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional.

É que a celebração de transação tributária perpassa pela prévia e necessária depuração dos créditos tributários a serem negociados, assim como pelo estabelecimento de uma relação mais paritária e equânime com o contribuinte, dada a presença especialmente nos negócios mais vultosos — do advogado público de um lado, e do advogado do contribuinte de outro, focados na busca da consensualidade. Nesse sentido, o Conselho Federal da OAB, em recente nota pública assim destacou:

“Não bastasse o fato de o exercício da advocacia ser indispensável à administração da Justiça e de que cabe à Advocacia-Geral da União privativamente a representação da União judicial e extrajudicialmente, é fundamental frisar que as conquistas recentes no âmbito da consensualidade tributária são fruto de um esforço conjunto de advogados públicos e privados, que têm buscado incessantemente discutir e promover melhorias no ambiente de solução de controvérsias.

A cultura adversarial de conflito permanente entre órgãos de arrecadação e contribuintes tem sido superada graças aos advogados que, mediante concessões recíprocas, têm dado segurança jurídica à celebração de acordos que envolvem a análise de questões jurídicas complexas, como o potencial econômico e jurídico da viabilidade da cobrança judicial de créditos públicos, os limites legislativos para a disposição de direitos, os deveres de conformidade à legislação financeira e orçamentária e, sobretudo, o potencial de realização da Justiça Federal, garantindo tratamento justo e equilibrado aos cidadãos brasileiros à luz de uma legislação complexa.”

Controle ainda é insuficiente

Ocorre que, num salutar contexto de aperfeiçoamento do sistema tributário, é necessário se ir além, a partir da compreensão de que o controle que a advocacia pública exerce sobre a administração tributária ainda se mostra insuficiente e distante do que a própria Constituição e as leis vigentes estabelecem como missão da advocacia pública.

Com efeito, tanto o controle preventivo quanto o repressivo, realizados pela advocacia pública sobre atos da administração tributária, poderiam ser repensados e aperfeiçoados. A renovação do sistema tributário em curso deveria discutir esse aspecto a fundo e trazer alternativas de reformulação do atual modelo de supervisão, pois em jogo a maior governança na prática dos atos estatais, especialmente do Fisco.

Sem embargo da necessidade de maior eficiência na cobrança tributária e na correção de injustiças, muitas delas flagrantes e históricas, atingir o bolso do contribuinte indevidamente é prática abominável, que atenta contra a Constituição e os direitos fundamentais nela previstos.

Spacca

No tocante ao controle preventivo, e tendo por parâmetro a esfera federal, o fato é que a atividade de consultoria jurídica realizada pela PGFN, apesar da qualificação dos advogados públicos que atuam nesse âmbito, está longe do que deveria corresponder, nos termos do artigo 131 da Constituição, à “consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo”. O monitoramento haveria de ser, senão onipresente, ao menos assíduo e ordinário, não é. O “cliente” Receita Federal deveria estar sempre ao lado do seu advogado, procurador da Fazenda Nacional, obtendo suas orientações jurídicas, o que não ocorre como deveria.

Não seria melhor ao contribuinte se, a título de exemplo, para uma fiscalização tributária, o agente fiscal tivesse a sua disposição um advogado público, para orientação jurídica? E se as manifestações da Cosit/RFB  nas diversas consultas que lhe são destinadas pelos contribuintes, ou na formulação da legislação infraconstitucional tributária e suas normas complementares  dependessem sempre de análise jurídica posterior e crivo da consultoria jurídica da PGFN, fornecendo maior segurança jurídica ao posicionamento a ser firmado pela administração tributária?

Ora, é o advogado público quem detém expertise técnica para avaliar riscos jurídicos e judiciais quanto à resposta a ser dada ao contribuinte numa consulta que é realizada, ou mesmo na análise da conformidade da legislação tributária em produção e suas normas complementares. Afinal, a Constituição Federal é cristalina: no âmbito da administração pública, a palavra final, sob o prisma jurídico, é do advogado público, exercente de função essencial à Justiça.

Evolução com a Portaria PGFN 33/2018

Em relação ao controle repressivo a recair sobre atividades do Fisco, na esfera federal, percebe-se evolução importante com o advento da Portaria PGFN 33/2018 e a regulamentação do Pedido de Revisão de Débito Inscrito (PRDI). Observe-se que já existe previsão não somente de cancelamento de débitos tributários incompatíveis com precedentes de Tribunais Superiores ou decisões consolidadas do Carf, mas até em razão de nota ou parecer do procurador geral da Fazenda Nacional, ou de procurador geral adjunto, favoráveis ao contribuinte (artigo 5º, § 1º, VII da referida Portaria), independentemente de aprovação do ministro da Fazenda.

Há, também, previsão de controle do próprio lançamento tributário diretamente pelo procurador da Fazenda Nacional, sobretudo nos seus aspectos formais, notadamente quando se verifica violação ao contraditório ou ampla defesa no processo administrativo tributário (artigo 15, § 1º, da portaria).

Todavia, o controle do lançamento tributário pelo procurador da Fazenda poderia avançar. Logicamente, o advogado público não detém expertise para adentrar em aspectos contábeis e financeiros do lançamento, isso é atribuição do auditor fiscal.

Mas, dados os fatos afirmados ou constatados por tal agente autuador, as consequências jurídicas desses fatos poderiam passar pelo crivo do procurador, em caso de questionamento em pedido de revisão de débito Inscrito. Não há ainda esse tipo de previsão expressa na citada Portaria PGFN 33/2018, e, também, nos projetos de lei listados, que buscam a modernização do processo tributário.

Mutatis mutandi, poderíamos ter algo semelhante ou análogo à análise jurídica que os tribunais superiores promovem nos recursos excepcionais, sem incursão na matéria fática que fora discutida, o que não impede, contudo, a avaliação do melhor direito aplicável ao caso.

Sugestão

Nesse aspecto, o PL 2.488/2020, que tem por objeto a reforma da cobrança da Dívida Ativa da Fazenda Pública, poderia ter seu texto aperfeiçoado, em nome da melhor governança tributária.

O que restou inicialmente apresentado ainda se mostra tímido, pois espelha apenas parcialmente dispositivos da Portaria PGFN 33/2018, a qual, como apontado, já é insuficiente para o seu propósito, no que diz respeito ao pedido de revisão de débito inscrito e ao controle que a advocacia pública deve exercer sobre os atos do Fisco.

Não se pode desconsiderar, contudo, que a advocacia pública, nas diversas searas federativas, ainda não se encontra adequadamente estruturada para oferecer o apoio jurídico ou o monitoramento suficiente dos atos que a administração tributária pratica.

Os procuradores se encontram, ainda e apesar de promissoras medidas de redução de litigiosidade que estão em curso — assoberbados de processos judiciais, especialmente execuções fiscais, ou seja, são levados inexoravelmente à cultura da litigância.

Mas temos agora uma oportunidade alvissareira para alteração desse contexto, de modo que a consolidação das atribuições constitucionais da advocacia pública caminhe ao lado de sua adequada estruturação, condições de trabalho e apoio técnico apropriado, além de força de trabalho suficiente, motivada e cada vez mais qualificada.

Interesse do Estado, interesse do contribuinte

Como se vê, o papel do advogado público, no âmbito tributário, ao revés da percepção de muitos, não se restringe à recuperação de ativos colaboração para que cada vez mais recursos sejam incorporados ao erário. A atividade de governança tributária é tão ou mais importante que a missão arrecadatória, ainda que pouco valorizada e conformada.

Aperfeiçoar esse papel, com a estruturação adequada da advocacia pública, deveria estar na agenda das autoridades administrativas ou legislativas. Catalisar e criar condições para a prática de uma efetiva e verdadeira advocacia de Estado e não meramente de governo — pelo advogado público, enquanto função essencial à Justiça consagrada constitucionalmente, haveria de estar intrinsecamente associada à reforma do sistema tributário que está a ocorrer. Ganharia o Estado brasileiro, ganhariam os contribuintes.

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