Opinião

Autorregularização incentivada e débitos decorrentes de compensações não homologadas

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20 de abril de 2024, 9h23

A Lei 14.740/23 criou o programa de regularização de débitos administrados pela Receita Federal  (a chamada autorregularização incentivada), que autoriza pagamento via utilização de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa, bem como parcelamento.

O programa permite a inclusão de créditos tributários federais classificados nas seguintes situações: (1) não constituídos até 30 de novembro de 2023 e (2) constituídos entre 30 de novembro de 2023 e o termo final do prazo de adesão (1º de abril de 2024), conforme previsão do § 1º do artigo 2º da referida lei.

Em complemento, o § 2º do artigo 2º dispôs que a autorregularização abrange todos os tributos administrados pela Receita, inclusive aqueles decorrentes de auto de infração, notificação de lançamento e de despachos decisórios que não homologuem a declaração de compensação.

O alcance do programa foi limitado, de modo temporal, pelo conceito de “data de constituição do crédito”, o que desde a publicação da lei gerou muitas dúvidas: débitos em discussão administrativa poderiam ser incluídos na autorregularização? E os débitos correntes, relativos ao período de adesão? Qual o momento de constituição do crédito tributário no caso das compensações fiscais?

Duas condições

A publicação do “Perguntas e Respostas” editada pela Receita veio justamente para esclarecer os questionamentos dos contribuintes. Em relação aos débitos decorrentes de compensação não homologada — objetivo específico desta análise, a orientação foi a seguinte:

“Também podem fazer parte da autorregularização incentivada débitos decorrentes de auto de infração, de notificação de lançamento e de despachos decisórios que não homologuem, total ou parcialmente, a declaração de compensação, que ocorram entre 30/11/2023 e 1/4/2024, cujo vencimento original do débito seja até 30 de novembro de 2023” [1].

A única interpretação possível é de que a frase “que ocorram entre 30/11/2023 e 1/4/2024” se refere a auto de infração/notificação de lançamento/despachos decisórios, pois no final do parágrafo consta “cujo vencimento original do débito seja até 30 de novembro de 2023”. Resta claro que a Receita impôs duas condições para aceitar a adesão de débitos decorrentes de compensação, quais sejam: (1) que o despacho decisório tenha sido proferido entre 30/11/2023 e 1/04/2024, e (2) que o vencimento original do débito seja anterior a 30/11/2023.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

A partir disso, possível concluir que o entendimento da Receita para fins de adesão ao programa da Lei 14.740, nos casos envolvendo compensação, é de que a constituição do crédito tributário ocorre com o despacho decisório que não homologa a compensação. A dúvida anterior parecia resolvida. Assim, os contribuintes que desejavam se regularizar e se encontravam na situação retratada no “Perguntas e Respostas” pleitearam sua adesão.

Contradições

Contudo, já se tem conhecimento sobre o indeferimento nesse tipo de caso, por parte da Receita Federal, porque os débitos compensados teriam sido constituídos (1) no momento da transmissão das compensações ou (2) no momento da declaração dos débitos em DCTF, anteriormente a 30/11/2023, de modo que estariam fora do âmbito da autorregularização. De acordo com os despachos que indeferiram à adesão ao programa, somente poderiam ser incluídos débitos decorrentes de DComps transmitidas entre 30/11/2023 e 1/4/2024, cujo despacho decisório tivesse sido proferido até 1/4/2024.

Esse entendimento esvazia a orientação contida no “Perguntas e Respostas”. A administração tributária deveria atuar de forma clara e livre de contradições, promovendo segurança jurídica. O que se vê, contudo, são comportamentos contraditórios que contribuem para o aumento da litigiosidade.

Súmula 436 do STJ e a constituição do crédito tributário

Quanto ao conceito e momento de constituição do crédito tributário, não se ignora o conteúdo da Súmula 436 do STJ, segundo a qual “a entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco”. Entretanto, é imprescindível lembrar o contexto em que tal súmula foi criada, qual seja, de discussão sobre a necessidade de lançamento e contraditório na via administrativa, previamente à execução fiscal, de débito declarado pelo próprio contribuinte e não pago.

O teor da referida súmula não infirma o direito dos contribuintes nesses casos envolvendo compensação. Mais importante, a prévia constituição do crédito nos termos da Súmula 436 não justifica a negativa de adesão ao programa. Isso porque um débito constituído – para ser parcelável/pagável – não dispensa a imprescindível condição de ser “exigível”. Enquanto (1) extinto (ainda que sob condição resolutória) ou (2) discutido administrativamente, um débito não é “exigível”.

Embora os débitos compensados tenham sido declarados em DCTF, no momento da transmissão das DComps esses débitos foram extintos (artigo 150, § 4º, CTN). A fiscalização dispõe do prazo de cinco anos para analisar tais compensações. Durante esse prazo, para todos os efeitos fiscais, esses débitos não são exigíveis: não impedem à obtenção de certidão negativa e não permitem a inclusão do contribuinte no Cadin. Ou seja, para efeitos fiscais, esses débitos estão extintos.

A condição de devedor do contribuinte que compensou débitos somente (re)nasce com o despacho decisório que não homologa a compensação. Qualquer direito/obrigação decorrente dessa condição, como pagar, parcelar, impugnar administrativa ou judicialmente, só pode ser exercido a partir do momento em que o contribuinte toma ciência de que seu débito existe (na condição de “exigível”).

O §3º do artigo 2º da Lei 14.740/2023 determina a retificação das declarações/escriturações para débitos não constituídos. Essa disposição permite que os sujeitos passivos de auto de infração e notificações de lançamento (que constituem créditos normalmente não declarados/escriturados) adiram à autorregularização. Nesses casos, a motivação para a confissão via retificação de declarações/escriturações é o conhecimento do débito imputado via auto de infração ou notificação de lançamento – o que só ocorre, nos casos envolvendo compensação, via ciência do despacho decisório.

Interpretação ilógica

Não nos parece que a intenção do legislador, com as disposições do artigo 2º, tenha sido colocar em situações diferentes dois contribuintes que igualmente devem tributos federais – o sujeito passivo de auto de infração/notificação de lançamento e o sujeito passivo de despacho decisório. Se é permitido àquele que não declarou/escriturou aderir à autorregularização, também deve o ser àquele que declarou/escriturou.

Se o entendimento exarado nos despachos que têm indeferido à adesão à autorregularização estivesse correto, de que os débitos teriam sido constituídos quando da transmissão das declarações de compensação para toda e qualquer finalidade, o prazo prescricional para propositura das execuções fiscais, nos casos envolvendo compensação, iniciaria na data de transmissão das compensações, o que sabidamente está equivocado (visto que o prazo prescricional somente se inicia após o encerramento da discussão administrativa).

É ilógica a interpretação dada pela Receita, de que somente poderiam ser incluídos débitos decorrentes de compensações transmitidas entre 30/11/2023 e 1/04/2024, cujo despacho decisório tenha sido proferido até 1/04/2024. Sabemos que é muito improvável que uma compensação transmitida no referido prazo tenha seu despacho decisório proferido em tão pouco tempo. Ademais, sequer faria sentido o legislador criar um programa de parcelamento com uma hipótese tão restritiva e tão desconectada com a realidade.

Contra o indeferimento do pedido de adesão à autorregularização cabe interposição de recurso hierárquico. Se mantido o indeferimento das adesões dos débitos objeto de despachos decisórios emitidos entre 30/11/2023 e 1/04/2024, em contradição com a orientação contida no “Perguntas e Respostas”, não haverá outra alternativa aos contribuintes se não recorrer ao Poder Judiciário, na esperança de que, então, a lei nº 14.740 seja interpretada consoante sua finalidade de regularização fiscal.

 

 


[1] Disponível em: <https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/perguntas-e-respostas/autorregularizacao-incentivada/autorregularizacao-incentivada-perguntas-e-respostas.pdf/view>. Acesso em: 15 abr. 2024.

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