Processo Tributário

Fiança e seguro: é hora de alterar o artigo 151 do CTN

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21 de abril de 2024, 8h00

Aproveitando o momento em que estão sendo revisitados os instrumentos legais [1], tanto referentes ao direito material tributário, quanto ao direito processual tributário, e conectando com o que foi exposto nesta coluna em texto de autoria de Danilo Monteiro de Castro [2], no qual ele teceu considerações sobre fiança bancária e seguro garantia na execução fiscal, o presente artigo objetiva responder à seguinte pergunta: afinal, por que a fiança bancária e o seguro garantia não suspendem a exigibilidade do crédito tributário?

Há muito se discute sobre os efeitos decorrentes da garantia do crédito tributário apresentada no bojo de um processo judicial, em contraponto aos efeitos decorrentes da suspensão da exigibilidade do crédito tributário, mormente por meio do depósito integral. Questão essa inclusive afetada no Superior Tribunal de Justiça, em junho de 2023, sob o número 1.203 [3], em que se pretende “definir se a oferta de seguro-garantia ou de fiança bancária tem o condão de suspender a exigibilidade de crédito não tributário”.

Consoante orientação do mesmo Superior Tribunal de Justiça em recurso repetitivo [4], o rol de suspensão da exigibilidade do crédito tributário é taxativo (CTN, artigo 151), trazendo tão somente como causas suspensivas aquelas indicadas em seus incisos, isto é, a moratória, o depósito, as reclamações e os recursos, a liminar em mandado de segurança, a liminar ou tutela antecipada em outras espécies de ações e o parcelamento.

Efeitos perversos para o contribuinte e a posição do Fisco

Os efeitos práticos, para o contribuinte, decorrentes da não suspensão da exigibilidade quando da garantia do crédito tributário via fiança ou seguro-garantia em ações antiexacionais são perversos, uma vez que não impedem o protesto da certidão de dívida ativa em cartório de títulos e documentos e a inscrição do seu nome em cadastros de inadimplentes.

Efeitos esses que desestimulam a consensualidade, na contramão das tendências dos referidos projetos de lei e dos que tratam do processo administrativo federal, da mediação e arbitragem federal [5], dos quais destaca-se a manifesta intenção de fomentar a resolução consensual de conflitos entre Fisco e contribuintes, com a menor interferência do Poder Judiciário, como bem pontuado por Camila Vergueiro e Fernanda Camano [6].

Olhando sob o viés do Fisco, a insistência em não aceitar a carta fiança e o seguro garantia como meios hábeis a suspender a exigibilidade do crédito tributário decorre unicamente da impossibilidade de ter disponível imediatamente o dinheiro que é – obrigatoriamente – depositado em conta bancária vinculada aos autos e repassado às contas públicas dos entes políticos, onde haja legislação nesse sentido [7].

Diz-se unicamente, pois, na apresentação do seguro garantia ou carta fiança, ao haver o sinistro, que somente se corporifica após o trânsito em julgado, ocorrerá a liquidação e os valores serão depositados em juízo para posterior conversão em renda (é o que dispõe a Lei federal 6.830/1980 com a redação dada pela Lei 14.689/2023 em seu artigo 9°, §7° [8]).

Mas, veja-se, é a mesma solução dada às hipóteses de depósito por iniciativa do contribuinte ou penhora on line, em que o Fisco tem que aguardar o trânsito em julgado para que haja a conversão em renda, como determina o artigo 32, §2° da mesma Lei federal 6.830/1980 [9].

Considerando os efeitos processuais dessas modalidades de garantia da dívida executada, isto é, ter-se postergada sua execução para após o trânsito em julgado de decisão favorável ao Fisco, nota-se que são aptos na mesma medida para suspender a execução fiscal, não dependendo, para tanto, de decisão atribuindo o suspensão da exigibilidade mediante o reconhecimento da presença dos requisitos das tutelas provisórias [10], como se dá em outras espécies de garantias apresentadas.

Chegou a hora

Mas não é apenas por isso que entendemos já ser a hora de se admitir, ou inserir no código tributário nacional, que a garantia da dívida por fiança ou seguro garantia deve implicar a suspensão da exigibilidade do crédito tributário nas ações antiexacionais.

Também, porque a Lei de Execução Fiscal vigente [11] estabelece que, em qualquer fase do processo será deferida pelo juiz a substituição da penhora por depósito em dinheiro, fiança bancária ou seguro garantia, colocando os três mecanismos de garantia no mesmo patamar de liquidez; e, ao determinar a aplicação subsidiária [12] do Código de Processo Civil, permite concluir, na mesma potência, pela equiparação normativa da fiança bancária e do seguro garantia ao dinheiro [13].

O que essas disposições deixam claro é que, nos termos da lei, não há risco de dano à satisfação do crédito tributário se a dívida estiver garantida por uma dessas três modalidades de garantia.

Princípio da menor onerosidade

Não custa trazer à baila, outro argumento, não menos importante para a sugestão feita: o de que a exigência do depósito fere o princípio da menor onerosidade [14] ao devedor. Ora, comparando-se o desembolso do valor do débito integral versus o custo da contratação do seguro garantia e da carta fiança, é perceptível que o último é indiscutivelmente menor, onerando quantitativamente menos o contribuinte.

A resistência em se atribuir o efeito do artigo 151 do CTN à garantia da dívida por fiança ou seguro, é restrito a um interesse secundário da administração pública, o de manter o superávit primário ao incluir valores que efetivamente não são seus em seu orçamento, além de pretender utilizar momentaneamente – “momento” que perdura por anos, via de regra – o dinheiro depositado, olvidando-se de que o dinheiro é do contribuinte e que ele tem o direito de aloca-lo da maneira que melhor convier ao seu negócio – cite-se, como exemplo, pagar seus funcionários e fornecedores.

Projeto de Lei 2.488/2022

Dentre as propostas de mudanças mencionadas no início, destacamos o Projeto de Lei 2.488/2022 da nova lei de execução fiscal e o Projeto de Lei Complementar 124/2022, que altera o código tributário nacional, sendo que o último, inclusive, introduz duas novas causas de suspensão da exigibilidade do crédito tributário [15], sem que nelas esteja incluída a modalidade de garantia referida. Algo ainda passível de correção, como aqui sugerimos: basta inserir mais um inciso.

Considerando que a função do processo é a de instrumento para resolução do conflito com efetividade, se ao final do deslinde da ação antiexacional o Fisco sair-se vencedor, garantido o débito por depósito, fiança bancária ou seguro garantia, não há como se deixar de reconhecer que o crédito tributário será satisfeito mediante a conversão em renda dos valores ali assegurados.

Portanto, não há mais a mínima justificativa para que perdure no ordenamento jurídico a distorção da restrição e manutenção da causa de suspensão de exigibilidade limitada tão somente ao depósito em dinheiro.

Chegada a hora de o artigo 151 do código tributário nacional acompanhar a modernidade no que toca às garantias [16].

 


[1] Para consulta: projeto de lei complementar (PLP) 124/2022 que altera o código tributário nacional, projeto de lei 2.488/2088 que institui uma nova lei de execução fiscal e projeto de lei complementar 125/2022 que dispõe sobre o código de defesa do contribuinte.

[2] https://www.conjur.com.br/2023-nov-19/fianca-bancaria-e-seguro-garantia-na-execucao-fiscal/

[3] https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1203&cod_tema_final=1203

[4] A referência é ao recurso especial 1.156.668, relatado pelo Ministro LUIZ FUX, e julgado pela 1ª Seção em 24/11/2010 (DJe 10/12/2010).

[5] Projeto de lei (i) 2.483/2022 trata do processo administrativo federal, (ii) 2.485/2022 referente à mediação federal e (iii) 2.486/2022 sobre a arbitragem em âmbito federal.

[6] https://www.conjur.com.br/2022-nov-13/processo-tributario-projetos-leis-tendencias-contencioso-tributario/

[7] Como exemplo, a União, diante do que dispõe a Lei federal 9.703/1998.

[8] § 7º As garantias apresentadas na forma do inciso II do caput deste artigo somente serão liquidadas, no todo ou parcialmente, após o trânsito em julgado de decisão de mérito em desfavor do contribuinte, vedada a sua liquidação antecipada.)

[9] Art. 32 – Os depósitos judiciais em dinheiro serão obrigatoriamente feitos: § 2º – Após o trânsito em julgado da decisão, o depósito, monetariamente atualizado, será devolvido ao depositante ou entregue à Fazenda Pública, mediante ordem do Juízo competente.

[10] CPC, Art. 919. Os embargos à execução não terão efeito suspensivo. § 1º O juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito suspensivo aos embargos quando verificados os requisitos para a concessão da tutela provisória e desde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes. § 2º Cessando as circunstâncias que a motivaram, a decisão relativa aos efeitos dos embargos poderá, a requerimento da parte, ser modificada ou revogada a qualquer tempo, em decisão fundamentada. § 3º Quando o efeito suspensivo atribuído aos embargos disser respeito apenas a parte do objeto da execução, esta prosseguirá quanto à parte restante. § 4º A concessão de efeito suspensivo aos embargos oferecidos por um dos executados não suspenderá a execução contra os que não embargaram quando o respectivo fundamento disser respeito exclusivamente ao embargante. § 5º A concessão de efeito suspensivo não impedirá a efetivação dos atos de substituição, de reforço ou de redução da penhora e de avaliação dos bens.

[11] LEF, Art. 15 – Em qualquer fase do processo, será deferida pelo Juiz: I – ao executado, a substituição da penhora por depósito em dinheiro, fiança bancária ou seguro garantia;

[12] Art. 1º – A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta Lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil.

[13] CPC, Art. 835, § 2º Para fins de substituição da penhora, equiparam-se a dinheiro a fiança bancária e o seguro garantia judicial, desde que em valor não inferior ao do débito constante da inicial, acrescido de trinta por cento.

[14] CPC, Art. 805. Quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado.

[15] Art. 1º A Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, passa a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 151. ……………………….VII – a instauração da arbitragem, quando da nomeação do(s) árbitro(s), nos termos da legislação específica;  VIII – a transação tributária, conforme decisão do representante da administração tributária, nos termos da legislação específica;

[16] Ainda nesta coluna temos outros três artigos de autoria do Luís Claudio Cantanhêde a respeito deste assunto. Vale conferir:

https://www.conjur.com.br/2021-set-05/processo-tributario-peculiar-sincretismo-processual-cobranca-credito-tributario/

https://www.conjur.com.br/2022-jan-02/processo-tributario-ainda-peculiar-sincretismo-cobranca-credito-tributario/

https://www.conjur.com.br/2022-mai-22/ainda-peculiar-sincretismo-cobranca-credito-tributario/

Autores

  • é advogada, mestre em Direito Tributário pelo Ibet, MBA em Planejamento Tributário Estratégico pela PUC-Rio e em Direito Tributário pela FGV-Rio, professora seminarista do Ibet e pesquisadora do grupo de estudos Processo Tributário Analítico do Ibet.

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