Tribunal do Júri

A absolvição pelo quesito genérico e a (im)possibilidade recursal (parte 2)

Autores

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

23 de setembro de 2023, 8h00

Na semana passada, discutimos a possibilidade de interposição de recurso da decisão absolutória no júri com fundamento no quesito genérico. E, ao final, lançamos duas perguntas: (1) o Conselho de Sentença pode absolver o acusado dissociado de qualquer tipo de tese, ou seja, por íntima convicção? (2) é um direito do acusado e da própria sociedade saber qual foi a tese adotada pelo júri ao julgar o caso penal?

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Para quem atribui ao júri um poder "ilimitado" para decidir o caso penal desprovido de qualquer justificativa, a primeira pergunta pode não ostentar qualquer importância. Para esse segmento, aliás, os dois primeiros quesitos (materialidade e autoria) sequer precisariam ser ofertados aos jurados, vez que o júri poderia absolver/condenar sob qualquer (ou nenhuma) justificativa, desconsiderando até mesmo a materialidade delitiva e a autoria fundadas em causas provadas e incontroversas. De fato, os jurados poderiam, em tese, absolver amparados até mesmo em argumentos proibidos (como, por exemplo, legítima defesa da honra), pois, objetivamente, diante da ausência de fundamentação, nunca saberíamos com absoluta certeza como os fatos noticiados nos autos influenciaram o seu modo de pensar.

Para aqueles que vislumbram a necessidade de que o Conselho de Sentença profira uma decisão provida, quando menos, de uma mínima racionalidade, faz-se necessário amparar o rito com instrumentos capazes de cotejar as teses lançadas com a decisão proferida.

Assim, passamos à segunda pergunta para discutir se existe um direito do acusado e da própria sociedade em saber qual foi a tese adotada pelo júri ao julgar o caso penal. Como ponto de partida, devemos nos atentar para o que restou decidido pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, no caso Taxquet v. Bélgica. Ponderou-se no julgamento, sob vários aspectos, o direito ao fair trial (artigo 6º, §1º [1] da Convenção Europeia de Direitos Humanos) e, entre as teses suscitadas, Taxquet questionava a ausência de motivação das decisões perante o júri e impugnava a vagueza e inexatidão dos quesitos apresentados aos jurados, os quais não autorizam aferir a vontade do Conselho de Sentença.

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Em sua decisão, a Grand Chamber do TEDH, não obrigou a adoção de uma decisão motivada no âmbito do Tribunal do Júri, porém, a corte aclarou que a justiça de um julgamento está atrelada a necessidade de o acusado e a sociedade conseguirem entender o veredicto que foi proferido:

"It follows from the case-law cited above that the Convention does not require jurors to give reasons for their decision and that Article 6 does not preclude a defendant from being tried by a lay jury even where reasons are not given for verdict. Nevertheless, for the requirements of a fair trial to be satisfied, the accused, and indeed the public, must be able to understand the verdict that has been given, this is a vital safeguard against arbitrariness. As the Court often noted, the rule of law and the avoidance of arbitrary power are principles underlying the Convention (see, among many other authorities, mutatis mutandis, Roche v. the United Kingdom [GC], n. 32555/96, ECHR 2005-X). In the judicial sphere, those principles serve to foster public confidence in an objective and transparent system, one of the foundations of a democratic society (see Suominen v. Finland, n. 37801/97, § 37, 1, July 2003, and Tatishvili v. Russia, n. 1509/02, § 58, ECHR 2007-III)" [2].

Aqui repousa um ponto fundamental. É um direito do acusado e, acrescente-se, da própria sociedade, compreender o veredicto que foi proferido, de maneira a evitar arbitrariedades. Diante disso, a corte assestou que a carência de fundamentação deve ser superada — dentre outros fatores — com a apresentação de um questionário preciso e unívoco a partir do qual seja possível compreender a estrutura da decisão dos jurados:

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"In the case of assize courts sitting a lay jury, any special procedural features must be accommodated, seeing that the jurors are usually not required — or not permitted — to give reasons for their personal convictions (…). In these circumstances likewise, Article 6 requires an assessment of whether sufficient safeguards were in place to avoid any risk of arbitrariness and to enable the accused to understand the reasons for his conviction (…). Such procedural safeguards may include, for example, directions or guidance provided by the presiding judge to the jurors on the legal issues arising or the evidence adduced (…), and precise, unequivocal questions put to the jury, forming a framework on which is based or sufficiently offsetting the fact that no reasons are given for the jury’s answers (see Papon, cited above). Lastly, regard must be had to any avenues of appeal open to the accused" [3] (grifo dos colunistas).

A adoção de um questionário construído a partir de teses (jurídicas e extrajurídicas) poderia — partindo-se de uma reforma legislativa — contribuir para a análise da decisão dos jurados, especialmente quando mais de uma fosse apresentada ao Conselho de Sentença. Isso retiraria de cena artifícios processuais impeditivos da análise recursal e traria à baila o verdadeiro tema que precisa ser discutido: qual é o poder que devemos delegar aos jurados?

O modelo norte-americano discute, de longa data, "the jury’s political role", ou seja, o poder atribuído aos jurados de "nulificar" a lei: "(…) in ‘jury nullification’, juries acquit despite the law and despite the evidence that would otherwise merit a conviction. In effect, a single jury has the potential to ‘nullify’ a law passed by the legislature or interpreted by a judge, even though the impact is limited to just one case" [4].

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De acordo com Clay S. Conrad, o sistema norte-americano vive a dicotomia de dois modelos paradoxais de júri. No primeiro, "espera-se que os jurados julguem com imparcialidade as provas apresentadas e que decidam apenas com base nos fatos, seguindo as instruções apresentadas pelo magistrado. Os jurados devem ser capazes de deixar os seus sentimentos pessoais de lado e usar o seu bom sendo e experiência para determinar objetivamente se as testemunhas são críveis, se as provas fazem sentido e se a acusação fez prova para além da dúvida razoável. Nesse modelo, os jurados devem atuar de forma desapaixonada, quase mecânica, e aplicar as instruções que foram dadas pelo magistrado sem questionar" [5]. No segundo, "espera-se que os jurados atuem como uma válvula de segurança, limitando a capacidade dos tribunais e legisladores de impor punição a réus bem-intencionados ou moralmente irrepreensíveis, e proteger seus vizinhos de leis ou aplicação da lei opressoras. Os jurados devem assim agir proferindo um veredicto independente, absolvendo um réu que pode ser factualmente culpado quando acreditam que seria injusto ou inútil proferir uma condenação. Para que os jurados façam isso, eles devem ir além do paradigma do 'júri como descobridor de fatos' e formar uma visão independente do que será necessário para que a justiça seja feita" [6].

Aparentemente, considerando as contradições apontadas, ainda não se descobriu o que realmente se deseja no júri brasileiro. Enquanto alguns procuram dar força imediata às decisões proferidas em primeiro grau; outros, por sua vez, não admitem julgamentos por equidade que desconstruam a literalidade da lei. Mas sabemos que reformas são necessárias, especialmente aquelas que possam expor os seus pontos de atrito e fomentar um debate sério sobre o julgamento popular.

De qualquer modo, sempre importante apontar aquilo que poderia, desde já, contribuir para o real aperfeiçoamento do júri, como: (1) um aprimoramento do modelo de seleção de jurados que possibilite que todos os extratos sociais estejam representados na lista geral [7]; (2) a utilização de um sistema de questionário para os jurados sorteados, excluindo aquelas pessoas que devam ser eximidas ou não estejam qualificadas para a função; (3) adoção da audiência de voir dire (ou modelo similar) [8], dispensando-se daquele julgamento em particular os jurados que, potencialmente, possam estar comprometidos com um específico resultado, mesmo antes de iniciada a sessão de julgamento; (4) a utilização de instruções [9] que viabilizem que os jurados compreendam a dinâmica do iter procedimental, os ônus e cargas probatórias, facilitem a análise da prova, assimilem o sistema de nulidade (CPP, artigo 478) e de teses vedadas (STF-ADPF nº 779); (5) a construção de um standard probatório capaz a ser utilizado pelo jurado para aferir se as provas apresentadas se mostraram necessárias para um veredicto condenatório; (6) por fim, o retorno ao modelo deliberativo [10] com um maior número de jurados [11] e a adoção de um quorum qualificado para o reconhecimento de tipos básicos e formas qualificadas [12], ou seja, mudanças aptas a possibilitar uma maior oxigenação na análise probatória, legitimidade na tomada de decisões e segurança no decisum.

 


[1] "Article 6. Right to a fair trial. 1. In the determination of his civil rights and obligations or of any criminal charge against him, everyone is entitled to a fair and public hearing within a reasonable time by an independent and impartial tribunal established by law. Judgment shall be pronounced publicly but the press and public may be excluded from all or part of the trial in the interest of morals, public order or national security in a democratic society, where the interests of juveniles of the protection of the private life of the parties so require, or to the extent strictly necessary in the opinion of the court in special circumstances where publicity would prejudice the interests of justice. 2. Everyone charged with a criminal offence shall be presumed innocent until proved guilty according to law. 3. Everyone charged with a criminal offence has the following minimum rights: (a) to be informed promptly, in a language which he understands and in detail, of the nature and cause of the accusation against him; (b) to have adequate time and facilities for the preparation of his defense; (c) to defend himself in person or through legal assistance of his own choosing or, if he has not sufficient means to pay for legal assistance, to be given it free when the interests of justice so require; (d) to examine or have examined witnesses against him and to obtain the attendance and examination of witnesses on his behalf under the same conditions as witnesses against him; (e) to have the free assistance of an interpreter if he cannot understand or speak the language used in court."

[2] § 90.

[3] § 92.

[4] VIDMAR, Neil; HANS, Valerie P. American Juries. The Verdict. United States: Prometheus Books, 2007, p. 225. Aqui na coluna também discorremos sobre o tema: "O jury nullification (Parte 1)", "O jury nullification (Parte 2)" e "O jury nullification — parte final".

[5] CONRAD, Clay S. Jury Nullification. The Evolution of a Doctrine. Washington: Cato Institute, 2014, pos. 474.

[6] Ibid, pos. 490.

[7] Sobre o tema, sugerimos os Capítulos: "9.2.2. O perfil dos jurados e a representatividade", "9.2.3. A busca pela representatividade social", e "9.2.4. Propostas para um melhor alistamento dos jurados", do Manual do Tribunal do Júri (2ª Edição), de autoria de Rodrigo Faucz e Daniel Avelar, publicado pela Thomson Reuters – Editora Revista dos Tribunais.

[8] Discutimos sobre o aperfeiçoamento do júri em diversos artigos aqui na Coluna. Sobre o voir dire, por exemplo: "O voir dire como ferramenta para a seleção de jurados imparciais".

[12] Algumas discussões foram feitas nesta coluna, no artigo "A unanimidade e a deliberação no júri".

Autores

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

  • é advogado criminalista, habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da Pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • é defensora pública do Estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

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