Tribunal do Júri

A unanimidade e a deliberação no júri

Autores

  • Lisandra Panzoldo

    é pós-graduanda em Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio e em Direito Probatório no Processo Penal pela Escola da Magistratura Federal (Esmafe) estagiária da Defensoria Pública de São Paulo - Unidade Júri (DPESP) e autora do livro O Tribunal do Júri no Brasil e na Argentina. Estudo Comparado" (também publicado na Argentina).

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

5 de novembro de 2022, 8h00

Há séculos que nos países de common law a unanimidade dos veredictos no tribunal do júri é exigida para condenar ou absolver, sem que isso jamais tenha sido um entrave para a tomada de decisão. No entanto, as razões para a exigência de unanimidade não são claras, embora algumas teorias tentem explicá-las. Em Apodaca vs. Oregon, a Corte Suprema de Justiça dos Estados Unidos cita algumas de suas possíveis origens.

Spacca
A primeira delas remete ao julgamento por compurgadores, em que o juiz ia somando jurados ao painel inicial composto de doze pessoas, até atingir doze votos a favor de uma das partes no caso. Após o abandono desse método, permaneceu a regra de que os doze jurados devem chegar a um veredicto por unanimidade.

Outra hipótese é a de que a exigência de unanimidade surgiu para com­pensar o réu pela falta de regras legais e processuais suficientes que garantissem um julgamento justo, tendo em vista que as penas para os condenados eram muito severas e a unanimidade proporcionaria uma proteção ao acusado.

Uma terceira teoria surge do fato de que na época medieval os jurados tinham conhecimento pessoal dos fatos do caso e, por isso, acreditava-se que apenas uma visão seria a correta. Assim, caso não se chegasse à una­nimidade, os jurados (fossem maioria ou minoria) receberiam uma puni­ção por perjúrio, o que incentivava consideravelmente a decisão unânime [1].

Spacca
A decisão Ramos vs Louisiana em 2020 trouxe à tona novamente a discussão da importância da unanimidade frente a um veredicto por maioria absoluta. Explica-se. O acusado Evangelisto Ramos foi condenado por um veredicto de 10 a 2 no Tribunal do Estado da Louisiana e a ele foi imposta pena perpétua sem direito a liberdade condicional. Ramos impugnou a condenação, visto que o veredicto não foi unânime, o que negava o direito constitucional disposto na 6ª emenda [2].

Com o voto do juiz Gorsuch, o Tribunal Supremo dos Estados Unidos concluiu que o direito a "julgamento por um júri imparcial", contido na 6ª Emenda, exige um veredicto unânime para aqueles acusados de crimes graves. Seguindo a mesma linha, o juiz Thomas concluiu que a condenação não unânime de Ramos era inconstitucional.

Essa decisão deixa clara a íntima relação da unanimidade com a imparcialidade do julgamento, especialmente no voto do juiz Neil Gorsuch:

"[…] o texto e a estrutura da Constituição sugerem claramente que a expressão ‘julgamento por um júri imparcial’ trazia com ela al­gum significado sobre o conteúdo e os requisitos de um julgamento pelo júri. Um destes requisitos era a unanimidade. Onde quer que possamos investigar para determinar o que significava a expressão ‘julgamento por um júri imparcial’ no momento da adoção da Sexta Emenda – quer seja no direito comum, nas práticas estatais na época da fundação ou em opiniões e tratados escritos pouco tempo depois – a resposta é inequívoca: um júri deve chegar a um veredito unânime para condenar" [3].

Trazendo a discussão para o cenário brasileiro, onde se condena ou absolve com tão somente quatro votos, é urgente debater o tema se queremos assegurar mais garantias ao julgamento, visto o peso que se dá em decisões protegidas pela soberania (artigo 5º, XXXVIII, "c", CRFB/88). Precisa-se ponderar se uma decisão por 4 a 3 (por maioria simples) deve ostentar o caráter de soberana. Em que momento se assegura a presunção de inocência e o standard da dúvida razoável neste cenário? Será que uma maioria simples não gera apenas uma probabilidade de acerto do veredicto, o que é inaceitável e insuficiente em um Estado de Direito?

Em tese, os veredictos por maioria viabilizam a ocorrência de erros decisórios. Ao se condenar alguém por maioria de votos é aceitar o standard probatório do direito civil "preponderância de evidência" (preponderance of evidence) em que a verdade será aquela que se mostrar "mais provável que não", muito longe do standard "além da dúvida razoável" exigido no processo penal, pois neste é necessária uma certeza quase absoluta para fundamentar a condenação [4], ou a comprovação objetiva da imputação para além de dúvidas razoáveis [5].

No entanto, a reflexão sobre a exigência da unanimidade deve estar acompanhada também de uma reflexão sobre a deliberação, no intuito de buscar uma tomada racional da decisão, eis que tal instituto substitui "a decisão solipsista de um único jurado, pela tomada de vereditos ponderadas num ambiente verdadeiramente mais democrático e participativo" [6] A partir desta ótica, diversas são as funções representadas pela unanimidade: 1. Fomenta a deliberação centrada na prova; 2. Faz com que a opinião minoritária seja escutada; 3. Fortalece a qualidade da deliberação; 4. Resguarda a garantia constitucional de inocência; 5. Legitima o veredicto; 6. Sensação dos jurados de que cumpriram seus deveres; 7. Força o processo de discussão probatória [7].

Claro que para além da unanimidade seria imprescindível que os jurados fossem instruídos sobre, dentre outros aspectos, a presunção de inocência e a dúvida razoável, e o indispensável processo deliberativo.

Mas o que acontece caso não se alcance a unanimidade? Ocorre o chamado hung jury [8] nos países de common law ou jurado estancado na Argentina [9]. O julgamento é suspenso, dissolve-se o conselho de sentença e o acusado será submetido a novo júri ante um novo corpo de jurados [10]. É a possibilidade de veto de apenas um membro do júri, e uma maneira de fazer justiça, dando voz às minorias, sendo algo positivo e necessário, pois frente a um caso de provas frágeis, o estacamento é visto como uma correção, evitando tanto uma absolvição precipitada quanto a condenação de um inocente [11].

Essa situação ocorre geralmente quando há possíveis preconceitos éticos ou raciais. Além disso, a recusa de um integrante para embasar seu veredicto nas provas apresen­tadas (por serem elas fracas ou ambíguas), a complexidade do caso e a consequente dificuldade para alcançar a unanimidade, e uma série de outras proposições dificultam o entendimento sobre se as provas falam mais a favor da defesa ou da acusação [12].

A unanimidade gera uma maior confiança da sociedade nas decisões do tribunal do júri, pois se sabe que, para atingir o veredicto, os jurados passaram por um criterioso e rigoroso balanço de tudo o que foi exposto. Sendo fruto de uma profunda deliberação, a unanimidade também garante uma fundamentação racional do veredicto [13]. O fato de se ter um veredicto unânime, por si só, não é uma garantia absoluta contra decisões parciais ou mesmo de erros judiciários; no entanto, combinado a outros elementos de garantias, tem-se um sistema mais justo que os modelos que permitem veredictos por maioria de votos [14].

 


[1] GLASSER, Michael H. Letting the Supermajority Rule: Nonunanimous Jury Verdicts in Criminal Trials, 24 Fla. St. U. L. Rev. 659 (1997).

[2] Já abordamos brevemente esta questão anteriormente (A decisão por maioria de votos), inclusive sugerindo a leitura do texto Diogo Malan (MALAN, Diogo. Direito fundamental ao tribunal do júri e veredito condenatório unânime. In Desafiando 80 anos de processo penal autoritário. Orgs. Antonio Santoro, Diogo Malan, Flávio Mirza. Belo Horizonte: D’Plácido, 2021. p. 253-270).

[3] Suprema Corte Dos Estados Unidos. "Ramos vs. Louisiana", 590 U.S. 2020. n.º 18-5924. p. 4.

[4] KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2007.

[5] "O reconhecimento prático da dúvida razoável dar-se-á quando se tornam identificáveis dúvidas extraídas da hipótese contrária, alternativa ou diversa da original, que ultrapassem o patamar da dúvida inerte, através da aferição analítica dos elementos de prova, justamente pelo several test reconhecido no processo penal imposto pelo princípio da presunção de inocência." SAMPAIO, Denis. Valoração da Prova Penal. O problema do livre convencimento e a necessidade de fixação do método de constatação probatório como viável controle decisório. 1ª ed. Florianópolis: Emais, 2022, p. 516.

[7] HARFUCH, Andrés. El veredicto del jurado 1ª ed., Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Ad-Hoc, 2019. págs. 455 a 461.

[9] PANZOLDO, Lisandra. O Tribunal do Júri no Brasil e na Argentina. Estudo Comparado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.

[10] Na Argentina, uma vez declarado o "estancamento" o juiz deve obrigatoriamente perguntar à acusação se deseja seguir com a ação penal. Em caso negativo, o juiz deve imediatamente absolver o acusado. Em caso afirmativo, o juiz dissolve o conselho de sentença e o caso será julgado ante um novo júri. Se após o novo julgamento o júri não chegar em uma decisão unânime para condenar, deve-se absolver o acusado, conforme o princípio in dubio pro reo. Ver artigos 87 e 88 da Lei 2364-B de Juicio por Jurados del Chaco. https://observatoriovsp.chaco.gov.ar/backend/carpeta/Ley%20N%C2%B0%202364-B%20-%20(Antes%20Ley%20N%C2%B0%207661).pdf

[11] HARFUCH, Andrés (director). La unanimidad de los veredictos del jurado. Ad-Hoc, Buenos Aires, 2021.

[12] HANNAFORD-AGOR, Paula; HANS, Valerie P.; MUNSTERNMAN, Thomas. How Much Justice Hangs in the Balance? A New Look at Hung Jury Rates. 83 Judicature, 59, 1999.

[13] LETNER, Gustavo. El veredicto Unánime y sus efectos sobre el funcionamiento del jurado. II Congreso Internacional de Juicio por Jurados 1ª ed. — Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Editorial Jusbaires, 2015.

[14] De forma mais abrangente: DIAMOND, Shari. Las múltiples dimensiones del juicio por jurados. Estudios sobre el comportamiento del jurado. Jurado Penal y Civil. Ad-Hoc, Buenos Aires, 2016, p. 81 e ss

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    é bacharelanda em Direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT), estagiária da Defensoria Pública de São Paulo — Unidade Júri e autora do livro "O Tribunal do Júri no Brasil e na Argentina. Estudo Comparado" (publicado também na Argentina).

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    é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

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    é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal.

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