Opinião

Tribunal do Júri: as instruções e o aperfeiçoamento dos julgamentos

Autores

  • Marcella Mascarenhas Nardelli

    é doutora em Direito Processual pela Uerj professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri" da Editora Lumen Juris.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

29 de abril de 2021, 9h03

O Código de Processo Penal brasileiro foi idealizado para que os jurados apreciem os fatos e o juiz presidente aplique o Direito. O artigo 497 do CPP enumera uma gama de atribuições do magistrado, as quais podem ser divididas em funções administrativas (incisos III, VII, VIII e XII), de polícia (incisos, I, II, VI) e de decisão (incisos IV, V, IX, X, XI). As matérias ligadas ao poder/dever de decisão do magistrado são tipicamente de Direito, como resta claro da leitura do inciso X: "Resolver as questões de Direito suscitadas no curso do julgamento". Já a decisão do Conselho de Sentença se circunscreve à matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido (CPP, artigo 482). Tal raciocínio desconsidera a dificuldade de se separar, em todos os casos, a apreciação das questões de fato das de direito e, acima de tudo, a impossibilidade de aplicar corretamente o Direito sem determinar adequadamente os fatos. Desta forma, partindo-se da falsa premissa de que fato e direito seriam questões passíveis de uma clara demarcação, o sistema estabelece uma barreira entre as funções do juiz e dos jurados, pressupondo que a adoção do modelo de decisão seriada por meio de quesitos tornaria desnecessária a compreensão do Direito pelos cidadãos. Por outro lado, acaba também incorrendo na falácia de considerar que as questões de direito inerentes à decisão — atribuídas ao juiz — se resumiriam àquelas relacionadas à aplicação da pena.

O modelo de júri da common law, por sua vez, delega aos jurados a função de decidir sobre a responsabilidade do acusado em sentido amplo, o que fazem por meio dos chamados general verdicts — que se limitam a indicar a culpa ou inocência em cada imputação formulada [1]. Desse modo, os cidadãos analisam não somente questões puramente fáticas, mas, também, as classificações jurídicas relacionadas à conduta e as questões de direito interligadas com a caracterização do fato previsto na lei como punível. Entretanto, sobre todos esses pontos os cidadãos estarão sujeitos às instruções do juiz presidente.

O caráter leigo dos cidadãos é inerente ao juízo popular e por meio deste se espera que os padrões da comunidade, juntamente com seus valores de justiça e equidade sejam aplicados aos julgamentos. Entretanto, segundo a lógica norte-americana, isso não importa admitir que devam os jurados realizar esse papel sem qualquer direcionamento ou orientação. Em outras palavras, o sistema não consente que os jurados exerçam de forma totalmente livre a atividade de valoração da prova e de decisão sobre os fatos, segundo a sua própria intuição ou simples "íntima convicção". Ao contrário, procura fornecer aos mesmos os parâmetros legais de valoração e decisão aceitáveis, de modo que sejam capazes de lidar com a vasta gama de informações apresentada em juízo e raciocinar adequadamente a partir dela. Daí se justificam todos os esforços dos tribunais no sentido de sistematizar — por meio de extensos manuais — as principais instruções que devem ser apresentadas aos jurados nas diversas fases do procedimento [2].

Algumas instruções do juiz presidente aos jurados são procedimentais (por exemplo, não discutir a prova até o momento inicial da fase de deliberação); outras são de orientação, inclusive no que se refere aos parâmetros de valoração da prova (por exemplo, como o depoimento de um perito deve ser avaliado e como certas provas podem ou não ser valoradas para um propósito específico); e algumas envolvem o direito aplicável ao caso (apresentando cada elemento da infração a ser provado pela acusação e as definições dos principais termos jurídicos utilizados) e também sobre a presunção de inocência, o standard e o ônus da prova [3].

Como regra, as instruções são apresentadas antes do início da deliberação dos jurados. Porém, é comum o magistrado advertir o júri no início e no decorrer do próprio julgamento, por exemplo: 1) esclarecendo que os jurados apenas devem levar em consideração as provas apresentadas durante o julgamento e não outras informações; 2) pontuando que as afirmações das partes — e do próprio juiz — não representam meios de prova; 3) aduzindo que as provas são constituídas do relato das testemunhas, documentos, objetos admitidos ao processo e acordos entre as partes. Outrossim, os jurados são orientados para que mantenham a mente aberta durante a fala das partes e quando da apresentação das provas, evitando discutir o caso antes do momento formal de deliberação [4].

A preocupação em educar os cidadãos quanto aos aspectos essenciais de um julgamento perante o júri é considerada uma das funções primordiais inerentes à própria lógica da participação popular na administração da justiça. A natureza imotivada dos veredictos e a hipótese de que os jurados possam, ao final, não compreender ou não se orientar pelas instruções do juiz não são circunstâncias capazes de afastar a premissa de que é obrigação do sistema instrui-los. Ademais, esse aspecto da configuração do modelo denota a atmosfera construtiva [5] que se estabelece entre o tribunal e os cidadãos. Ao mesmo tempo em que essa dinâmica das instruções se configura como uma forma de controle sobre a racionalidade dos veredictos, também demonstra a confiança do sistema na capacidade dos cidadãos de compreender e aplicar adequadamente os parâmetros e princípios ao caso em análise. 

Voltando ao sistema brasileiro, o juiz presidente raramente se comunica com os jurados. Os momentos em que tal aproximação ocorre estão restritos aos esclarecimentos sobre os impedimentos, suspeição e incompatibilidade (CPP, artigo 466, caput); a advertência quanto à incomunicabilidade e à impossibilidade de manifestar opinião a respeito do caso penal (CPP, artigo 466, §1º.); bem como quando da exortação legal (CPP, artigo 472).

O CPP admite que os jurados façam perguntas ao ofendido, testemunhas e ao acusado por intermédio do juiz presidente (CPP, artigo 473 e 474, §2º), porém, não determina que o magistrado explique aos jurados a forma como as perguntas devem ser feitas, se oralmente ou por escrito, por exemplo. Também não é comum que os jurados requeiram ao orador que indique a folha (movimento) dos autos onde se encontra a peça por ela lida ou citada, permanecendo por vezes sem examinar com atenção um elemento importante para a solução do caso (CPP, artigo 480).

Os únicos momentos de real interlocução entre magistrado e jurados ocorrem ao final do julgamento, fase em que a legislação determina que o juiz pergunte aos jurados se estão habilitados a julgar ou se necessitam de outros esclarecimentos (CPP, artigo 480, §1º); e, na sequência, após a leitura dos quesitos em plenário, explique aos jurados o significado de cada quesito (CPP, artigo 484, parágrafo único).

O modelo brasileiro precisa avançar no caminho de melhor informar e esclarecer aos jurados, ao menos, a respeito do exercício da sua função e dos atores processuais; das normas básicas que estruturam o nosso sistema de justiça — em especial, a presunção de inocência em suas dimensões de regra de tratamento e de julgamento; das fases do Tribunal do Júri.

Contudo, consideramos que o silêncio da atual legislação não impede uma postura ativa por parte do magistrado, o qual possui competência para esclarecer ao Conselho de Sentença sobre os princípios e regras fundamentais que estruturam o nosso sistema de justiça e que devem ser aplicadas ao caso [6]. No sentindo de melhor preparar os jurados, a exibição do vídeo institucional [7] elaborado pelo CNJ (Recomendação n. 55, de 8/10/2019), que objetiva ambientar o jurado a respeito da sessão de julgamento é uma excelente prática! E seria ainda melhor se os jurados, após alistados, fossem convocados para se dirigir até o Tribunal do Júri e lá recebessem um treinamento prévio, ministrando-se conhecimento a respeito da função e incentivando-o a assistir um julgamento ao vivo ou transmitido pelas redes sociais. Tais orientações seriam elementares para evitar o receio de julgar crimes contra a vida e propiciariam uma melhor adaptação quanto ao rito do julgamento.

Acreditamos que o esclarecimento das regras do fair trial deve ser uma preocupação constante do magistrado, evitando que o desconhecimento possa gerar uma decisão apressada ou equivocada (tanto em benefício da acusação quanto da defesa). Veja-se, por exemplo, a entrega da pronúncia aos jurados (CPP, artigo 472, parágrafo único) sem qualquer explicação sobre a sua natureza jurídica e alcance processual. Tal fato tem o condão de fomentar um prejulgamento antes mesmo do início da instrução. Para tanto, basta verificar que muitas vezes é nominada como "sentença" e, em seu corpo, encontra-se fundamentada a materialidade e os indícios suficientes de autoria ou participação. Caso o juiz não explique a sua real função de mera admissão da acusação, os jurados podem, mesmo inconscientemente, acabar influenciados pelo seu teor, mesmo quando não formalmente evidenciada a nulidade prevista no artigo 478, I, do CPP. Sendo assim, sugerimos que os magistrados expliquem aos jurados da seguinte forma:

"Prezados membros do Conselho de Sentença, a partir desse momento, os senhores terão acesso ao relatório do processo e também à decisão de pronúncia. Esclareço que a decisão de pronúncia representa um mero juízo de admissibilidade da versão acusatória, sem a qual o acusado não poderia ser julgado perante o Tribunal do Júri. Em hipótese alguma, constitui um prejulgamento do caso e não deverá ser considerada pelos Srs. como um argumento de autoridade apto a qualquer juízo de valor a respeito do mérito do processo que está sendo aqui julgado na data de hoje. Por mandamento constitucional, depois da devida instrução e sustentações orais em plenário, o Conselho de Sentença é soberano para, sigilosamente, apreciar as teses que envolvem o presente caso, livre de qualquer influência de terceiros ou mesmo da justiça togada. A sociedade espera dos Srs. uma decisão justa, imparcial, livre de qualquer preconceito e amparada nos elementos de prova trazidos aos autos e nas alegações das partes. Para que os Srs. possam fazer a leitura das peças já referidas, suspendo a sessão por ______ minutos" [8].

De maneira similar ao que se dá no sistema norte-americano, a intervenção pontual do magistrado precisa ocorrer também quando dos debates, especialmente diante de abusos e excessos de linguagem (CPP, artigo 497, III), contribuindo para evitar nulidades a partir do uso de argumentações vedadas pela lei (CPP, artigo 478) e outras criadas à luz da jurisprudência de nossos tribunais. É o que poderia ocorrer — seguindo a orientação do STF — caso as partes fizessem uso da tese da "legítima defesa da honra". Aliás, no corpo do voto exarado pelo ministro Dias Toffoli na ADPF 779/DF, resta claro que a nulidade apenas ocorreria caso não obstada pelo presidente do júri [9].

A propósito, a intervenção do magistrado nesses casos já era obrigatória antes mesmo da decisão na ADPF 779/DF, pois, nos termos do disposto no CPP, artigo 201, §6º, é dever do magistrado adotar as "providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido". Nesse caso, seria importante que o juiz também se valesse de instrução específica ao final dos debates, alertando os jurados, de maneira comedida e técnica, sobre a inconstitucionalidade da referida tese.

As instructions são consideradas elemento essencial do juízo por jurados no âmbito da common law, desempenhando um papel fundamental em meio a um sistema destinado a conjugar a ânsia pela racionalidade com a atuação de julgadores leigos [10], no qual a garantia do acusado ao julgamento pelo júri compreende seu direito a que o juiz instrua adequadamente seus membros sobre os critérios legais que devem ser atendidos para que um veredicto justo seja alcançado [11].

Sendo assim, precisamos reconhecer que as instruções são importantes instrumentos de aprimoramento da atuação do Conselho de Sentença e de garantia da racionalidade de seus veredictos e, desta forma, sua utilização necessita ser expandida no modelo brasileiro.

Este artigo faz parte da série "Tribunal do Júri", produzida pelos professores de Processo Penal Rodrigo Faucz Pereira e Silva e Daniel Ribeiro Surdi de Avelar, autores das obras "Plenário do Tribunal do Júri" e "Manual do Tribunal do Júri", da Editora RT.

 


[1] Para um aprofundamento sobre o tema: NARDELLI, Marcella Mascarenhas. A prova no Tribunal do Júri: uma abordagem racionalista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. Ver também: https://www.conjur.com.br/2020-jun-12/limite-penal-sistema-brasileiro-juri-admite-absolvicao-clemencia

[3] VIDMAR, Neil; HANS, Valerie P. American Juries. The Verdict. New York: Prometheus Books, 2007, p. 161.

[4] JONAKAIT, Randolph . The American Jury System. Nem Haven and London: Yale Univesity Press, 2003, p. 199.

[5] MANNHEIM, Hermann. Trial by Jury in Modern Continental Criminal Law. In: Law Quarterly Review. nº LIII, 1937, p. 106.

[6] A discussão a respeito da melhor maneira de operacionalizar as instruções merece a nossa total atenção, sendo certo que devemos buscar a introdução de informações claras, inteligíveis ao leigo e que evitem direcionamentos. Somos cientes da dificuldade vivenciada no sistema norte-americano quando os magistrados buscam explicar aos jurados o standard do beyond a reasonable doubt. Porém, os benefícios advindos das instructions superam grandemente os riscos de não informar os jurados a respeito das regras do jogo.

[7] Segue o vídeo exibido no Estado do Paraná desde 18/11/2019: https://bit.ly/3xlOeEU.

[8] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Plenário do Tribunal do Júri. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 233. A parte II desta obra contém um roteiro prático para juízes, com diversas instruções que os juízes presidentes podem e devem fazer aos jurados, no intuito de aumentar a qualidade das decisões do júri.

[9] "Dessa forma, caso a defesa lance mão, direta ou indiretamente, da tese inconstitucional de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese), seja na fase pré-processual, processual ou no julgamento perante o tribunal do júri, caracterizada estará a nulidade da prova, do ato processual ou até mesmo dos debates por ocasião da sessão do júri (caso não obstada pelo Presidente do Júri), facultando-se ao titular da acusação recorrer de apelação na forma do artigo 593, III, a, do Código de Processo Penal."

[10] ALLEN, Ronald J.; SWIFT, Eleanor; SCHWARTZ, David S.; PARDO, Michael S.; STEIN, Alex. An Analytical Approach to Evidence: Text, Problems and Cases. 6th ed. New York: Wolters Kluwer, 2016, p. 128.

[11] PÉREZ CABADERA. María-Ángeles. Las instrucciones al jurado. 2001. 688 f. Tese (Doutorado em Direito) — Facultad de Ciencias Jurídicas y Económicas, Universidad Jaume I de Castellón. Castellón de la Plana, 2001, p. 177.

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    é doutora em Direito Processual pela Uerj, professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri", da Editora Lumen Juris.

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    é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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    é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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