Opinião

Tribunal do Júri: deliberação entre os jurados aumenta a qualidade das decisões

Autores

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

1 de abril de 2021, 9h13

O Tribunal do Júri é um órgão especial do Poder Judiciário no qual a jurisdição é exercida por cidadãos recrutados diretamente do povo. Não há necessidade de qualquer atributo técnico ou jurídico. Vale o fundamento democrático-participativo da República (CR, artigo 1º, parágrafo único). Representando por amostragem todos os segmentos sociais (ao menos idealmente), os jurados são investidos do poder de julgar os casos penais afetos à sua competência, de maneira sigilosa, soberana e sem fundamentar suas decisões.

A ausência de fundamentação das decisões do Conselho de Sentença é tema que divide a doutrina. Para alguns, trata-se de legítima exceção ao disposto na Constituição (artigo 93, IX), eis que estaríamos tratando de uma jurisdição leiga e, ainda, política (James Tubenchlak [1]). Para outros (como Aury Lopes Jr. e Lenio Streck [2]), a carência de fundamentação é vício que assesta para a inconstitucionalidade da instituição. O desacordo, nos parece, envolve mais uma vez o transplante — sempre parcial — de um júri de sólida tradição anglo-americana para uma experiência romano-germânica.

No entanto, deixando de lado a polêmica, é fato notório que o nosso atual sistema legal não exige a fundamentação do veredicto dos jurados, o qual é alcançado — intimamente — pela maioria de votos a cada quesito proposto. Tal regra, por outro lado, não impede a busca pelo aperfeiçoamento do júri e das decisões do Conselho de Sentença. Aqui reside um ponto importante, pois a decisão por íntima convicção se ampara na incomunicabilidade entre os jurados — a qual, se violada, importa na imposição de sanção pecuniária (CPP, artigo 466, §1º) e de nulidade (CPP, artigo 564, III, "j") — não se coaduna com os ideais democráticos que iluminam o júri.

A premissa de que a decisão introspectiva e individual de cada jurado, livre da influência de outro, conduz a um mais perfeito julgamento, mostra-se equivocada. Não é possível pensar-se numa decisão democrática sem alinhá-la a uma deliberação com equivalentes oportunidades de fala entre iguais, momento em que o aporte de argumentos racionais entre pessoas de conhecimentos díspares possam aparar equivocadas apreciações dos fatos, dissipar preconceitos, desbaratar pré-julgamentos, preencher lacunas no próprio raciocínio e resgatar de maneira mais precisa a memória dos fatos, expurgando possíveis erros fáticos e lógicos de premissas previamente tomadas como certas. Portanto, "a regra básica da democracia deliberativa é a de que a normatividade seja justificada no debate público entre cidadãos livres e iguais em que prevaleça a força do melhor argumento" [3].

Conforme sublinha o saudoso professor René Ariel Dotti, a incomunicabilidade dos jurados na sala especial de votação corresponde a um "anacronismo de nosso sistema que não mais se justifica em face dos tempos modernos que exigem o debate de infinitas questões de interesse público e quando os meios de comunicação e o exercício da liberdade de informação permitem que os jurados tomem conhecimento antecipado de muitos detalhes do processo que irão examinar" [4].

A deliberação interna entre jurados que verdadeiramente representam a comunidade e que compartilham minimamente os valores do seu tempo é um importante instrumento de aprimoramento das decisões, pois ao ofertar o seu entendimento a respeito do caso, o jurado é obrigado a pensar e articular boas razões em um contexto público (mesmo que interno entre os próprios jurados), colocando em teste a sua convicção, pois, "ninguém pode convencer os outros em público acerca do seu ponto de vista se não for capaz de explicar por que aquilo que parece ser bom, plausível, justo e conveniente para ele pode ser também considerado assim a partir do ponto de vista de todos os envolvidos" [5].

O exame crítico e compartilhado da prova e das teses se amolda a uma forma de fundamentação interna das decisões e, à luz da sociedade, agrega uma maior legitimidade e imparcialidade ao processo de tomada da decisão.

Partimos do pressuposto que, a sós, na sala especial de votação, os jurados não tratem uns aos outros como um mero objeto de manipulação de suas preferências individuais, mas atuem em um intercâmbio de igualdade e simetria, aceitando ou rejeitando as razões levantadas no procedimento deliberativo [6], mas sem a necessidade do encontro de uma unanimidade interpretativa [7].

É importante destacar que a deliberação entre os jurados não constitui nenhuma novidade no nosso sistema de justiça criminal, eis que já era prevista no Código do Processo Criminal, de 1832, nos artigos 243 ("Jury de Accusação") e 270 ("Jury de Sentença"); foi mantida pela Lei 261, de 3/12/1841 (artigo 54); referendada pelo Regulamento nº 120, de 31/1/1842, o qual regulava a execução da parte policial e criminal da Lei 261/1841 (artigo 373); foi prevista na Lei de 20/9/1830 (artigo 21), que regulava o abuso da liberdade de imprensa; e o Decreto 848, de 11/10/1890 (que organiza a Justiça Federal), em seu artigo 91, igualmente acatou a comunicabilidade entre os jurados, asseverando que a decisão seria tomada pela maioria absolta de votos. Apenas com o início do Estado Novo e da era "getulista" extingue-se a comunicabilidade entre os jurados, conforme previsto no Decreto-Lei 167/38: "Artigo 75  Fechadas as portas, o conselho, sob a presidência do juiz, assistido do escrivão, que servirá de secretário, do promotor e do advogado, que se conservarão nos seus lugares, sem intervir nas discussões e votações, e de dois oficiais de justiça, passará a votar os quesitos que lhe forem propostos observada completa incomunicabilidade dos jurados".

A esperança do retorno da deliberação entre os jurados foi plantada com o Projeto de Lei de Reforma do Código de Processo Penal (PLS nº 156/2009, hoje tramitando na Câmara sob o número 8.045/2010), o qual admite que, internamente, os jurados se reúnam reservadamente e por até uma hora após a leitura e explicação dos quesitos e antes de sua votação:

"Artigo 397  Antes da votação, o presidente lerá os quesitos e indagará das partes se têm requerimento ou reclamação a fazer, devendo qualquer deles, bem como a decisão, constar da ata. Parágrafo único. Ainda em plenário, o juiz presidente explicará aos jurados o significado de cada quesito.
Artigo 398  Não havendo dúvida a ser esclarecida, os jurados deverão se reunir reservadamente em sala especial, por até uma hora, a fim de deliberarem sobre a votação. Parágrafo único. Na falta de sala especial, o juiz presidente determinará que todos se retirem, permanecendo no recinto somente os jurados".

A previsão de uma fase de deliberação secreta entre os jurados — que, após, continuarão a votar os quesitos individualmente e de forma secreta, conforme o projeto de lei citado acima — é um alento na busca de decisões qualitativamente legítimas, funcionando como um refinamento necessário do procedimento do júri. Sempre ressaltamos a necessidade de reflexão do Tribunal do Júri no caminho da implementação de uma maior racionalidade, coerência lógica e justiça das decisões do Conselho de Sentença, substituindo a decisão solipsista de um único jurado, pela tomada de vereditos ponderadas num ambiente verdadeiramente mais democrático e participativo.

* Este artigo faz parte da série "Tribunal do Júri", produzida pelos professores de Processo Penal Rodrigo Faucz Pereira e Silva e Daniel Ribeiro Surdi de Avelar, autores das obras "Plenário do Tribunal do Júri" e "Manual do Tribunal do Júri", da Editora RT.

 


[1] Para o autor, "(…) [o Júri] não se submete à imposição constitucional de fundamentar suas decisões (artigo 93, IX, da CF); é órgão político, como afirmara Rui, e não meramente um órgão estatal que deva, pela fundamentação, prestar contas de seus atos. Os Jurados são cidadãos exercendo sua cidadania, tal como sucede no momento do exercício do voto." (TUBENCHLAK, James. Tribunal do Júri. Contradições e soluções. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 09).

[2] Destaca-se a entrevista com os autores na ConJur em 24/01/2021, disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jan-24/entrevista-lenio-streck-aury-lopes-jr-professores-advogados.

[3] WERLE, Denílson Luís. Democracia deliberativa e os limites da razão pública. In: COELHO, Vera Schattan P; NOBRE, Marcos (orgs.). Participação e deliberação. Teoria democrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora 34, 2004. p. 139.

[4] DOTTI, René Ariel. A publicidade dos julgamentos e a "sala secreta" do júri. Revista dos Tribunais, vol. 81, nº 677, p. 330-337, mar.1992, p. 330-331.

[5] BENHABIB, Seyla. Sobre um modelo deliberativo de legitimidade democrática. Org. e Trad. WERLE, Denilson Luis; MELO, Rúrion Soares. In: Democracia deliberativa. São Paulo: Singular, Esfera Pública, 2007. p. 55..

[6] Trata-se do que Rawls identifica como fairmindedness, ou seja, o dever de civilidade e disposição de ouvir os outros e uma "equanimidade (…) ao decidir quando seria razoável fazer ajustes em suas próprias concepções". (WERLE, Denílson Luís. Democracia deliberativa e os limites da razão pública. In: COELHO, Vera Schattan P; NOBRE, Marcos (orgs). Participação e deliberação. Teoria democrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo, Ed. 34, 2004, p. 145).

[7] Por mais que, por exemplo, nos Estados Unidos da América, haja a necessidade de que as decisões dos jurados sejam unânimes, aquele modelo não prevê a resposta individual de quesitos, como no Brasil. Sendo assim, entendemos, ao menos neste momento, analisar ferramentas de aperfeiçoamento do júri que sejam possíveis ser implementadas a partir de leis ordinárias. Conforme já manifestado anteriormente, "O procedimento deliberativo não se legitima com a unanimidade, mas sim, com a possibilidade do cidadão poder participar, influenciar e ser influenciado no momento da tomada de decisões (give and take of reasons), pois, diante da complexidade da vida social e, em especial, diante de toda a amplitude do julgamento de um crime doloso contra a vida, dificilmente um indivíduo isolado disporia de todas as informações necessárias para, sozinho, deliberar sobre a inocência ou culpa do acusado. Por essa razão, o julgamento pelo Conselho de Sentença deve ser oxigenado pelo diálogo interno!". AVELAR, Daniel R. S. de. A democracia deliberativa e a busca pelo diálogo no Tribunal do Júri brasileiro. Inº Coleção Direito Constitucional Brasileiro, cood. Clèmerson Merlin Clève. São Paulo: Revista dos Tribunais: 2014,  p. 602.

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    é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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    é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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