Eterno gargalo

'Execução fiscal custa caro, e portaria do CNJ permite tratar tema com seriedade'

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19 de novembro de 2023, 9h49

Segundo dados do Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça, 2022 encerrou com 27,3 milhões de execuções fiscais pendentes tramitando nas Justiças estadual e federal. A taxa de congestionamento dos processos é de 88%. Ou seja, de cada 100, só 12 andam.

Spacca
Daniel Saboia
Daniel Saboia

O problema levou o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal e do CNJ, a afirmar que as execuções fiscais são a maior causa de demora no andamento dos processos judiciais. Para solucionar o problema, o CNJ, a Advocacia-Geral da União, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e os seis Tribunais Regionais Federais assinaram uma portaria conjunta que dispõe sobre procedimentos e estratégias para aprimorar o fluxo de execuções.

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, os procuradores da Fazenda Nacional João Henrique Chaufaille Grognet e Daniel Saboia afirmaram que a portaria tem o potencial de diminuir o número de execuções em curso e possibilita que juízes priorizem os processos economicamente viáveis.

Spacca
João Henrique Chaufaille Grognet
João Henrique Chaufaille Grognet

“O que a portaria faz e o que faltava era trazer seriedade para a coisa: tratar de maneira não séria a execução fiscal custa muito caro ao nosso país, não só porque ela, sozinha, custa caro, mas também porque é preciso tornar efetivo o processo de recuperar o dinheiro que é usado na promoção de políticas públicas”, disse Grognet, que ocupa o cargo de procurador-geral adjunto de gestão de dívida ativa da União e do FGTS.

Para além da portaria, o procurador destacou a importância de medidas de autocomposição para diminuir o número de processos que inunda o Judiciário, entre elas a transação tributária, que permite que devedores façam acordos para quitar os débitos. A possibilidade passou a valer a partir da Medida Provisória 889/2019, que posteriormente foi convertida na Lei
13.988/2020. Para ele, trata-se da política pública mais eficaz para evitar litígios.

“Você resolve o passivo do contribuinte sem propor uma execução e regulariza milhões de contribuintes com essa política. É uma prática observada internacionalmente. Em valores de crédito, foram R$ 515 bilhões de reais transacionados. De fato, a transação hoje é a política pública mais eficaz e efetiva em termos de número de acordos para evitar o litígio dentro e fora do Judiciário.”

Saboia, coordenador do Laboratório de Ciências de Dados e Inteligência Artificial da PGFN, destaca a importância que investimentos em tecnologia tiveram para que os procuradores da Fazenda pudessem fazer a distinção entre execuções viáveis e inviáveis. Segundo ele, a partir de 2016, a PGFN optou por só utilizar o Judiciário em casos viáveis.

“A PGFN foi pioneira, o primeiro órgão a, antes mesmo da Emenda Constitucional 113/2021, permitir a utilização dos precatórios para liquidar ou amortizar dívidas. A partir de 2016, com base em uma interpretação de economicidade, dissemos: agora a gente só vai ajuizar aquilo que, previamente, se provou viável em termos de retorno econômico. Hoje, fazemos essa análise antes de propor a execução fiscal, e não mais depois de fazer a propositura. Há a análise de economicidade antes da propositura da execução fiscal.”

Leia a seguir a entrevista:

ConJur Recentemente, o ministro Roberto Barroso afirmou que as execuções são o motivo para a demora do andamento dos processos. Qual o tamanho desse problema hoje? 
João Henrique Chaufaille Grognet — Hoje temos 27,3 milhões de execuções fiscais pendentes tramitando na Justiça Estadual e Federal. A maioria dos processos estão digitalizados, mas muitos ainda são físicos. Se considerarmos todos os processos da Justiça, o CNJ concluiu que a taxa de congestionamento é de 88%. Ou seja, 12 processos andam, enquanto 88 não andam, considerando o acervo total. 

Se desconsiderarmos as execuções fiscais, esse valor cai para 66,9%. Por isso se considera que as execuções fiscais degradam o índice de congestionamento da Justiça, e isso de fato é um drama. 

No entanto, não me recordo de nenhum presidente do Supremo e do CNJ com um compromisso tão firme de resolver o problema das execuções fiscais, o que não significa acabar com as execuções, afinal de contas estamos cobrando tributos, e tributo é o que financia o Estado, é o que financia políticas públicas. O que o ministro Barroso propõe é tornar mais efetivo e mais racional esses processos. E isso envolve uma série de desafios, por exemplo estruturar o Judiciário, conscientizar as procuradorias e conselhos. 

O problema que vemos no Brasil hoje é realmente dramático e não se reproduz em outros países, sobretudo os da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), porque os países em desenvolvimento e desenvolvidos adotam outra sistemática de recuperação dos seus ativos. Portugal, EUA, Alemanha, Itália, França, México e o norte da África usam uma forma administrativa. Então a execução não se torna um processo judicial. A nossa sistemática ainda é muito judicial. E, por isso, gera esse drama. 

Daniel Saboia — Essas 27,3 milhões de execuções são em todo o Brasil e em todas as esferas de Justiça. Estamos falando de execuções que o município move contra um contribuinte, que o estado e que a União movem. São vários credores que utilizam as Justiças federal, estadual e eleitoral. Na PGFN, identificamos 1,4 milhão de execuções. Dessas, 437 mil podem ser extintas. 

ConJur — A solução para o problema passa por medidas de autocomposição, como as transações tributárias ou o uso de precatórios para pagamento de dívida?
João Henrique Chaufaille Grognet — Uma das soluções para resolver o problema do litígio é exatamente estabelecer medidas de autocomposição, e a mais bem sucedida delas é exatamente a transação tributária. Já fizemos mais de dois milhões de acordos, o que significa que você ou interrompe a execução fiscal em curso ou sequer propõe a execução. Você resolve o passivo do contribuinte sem propor uma execução e regulariza milhões de contribuintes com essa política. É uma prática observada internacionalmente. Em valores de crédito, foram R$ 515 bilhões de reais transacionados. De fato, a transação hoje é a política pública mais eficaz e efetiva em termos de número de acordos para evitar o litígio dentro e fora do Judiciário.

O precatório é outra coisa. É um título formado em desfavor da Fazenda Pública. Um particular demanda a União, Estado ou município em juízo e, se ganhar a ação, tem o direito de ganhar um valor. E esse valor não é pago imediatamente, ele é pago por precatório. Na vanguarda da regulamentação dos precatórios, a Procuradoria, desde 2019, início de 2020, tem aceitado que o contribuinte oferte esse precatório para liquidar os seus débitos inscritos em dívida. Então, se determinada pessoa deve R$ 1 milhão em tributo e tem um precatório de R$ 1 milhão, ela pode ofertar o precatório para pagar seu tributo em atraso. Essa também é uma medida importante de autocomposição. 

Se somos credores de determinado contribuinte e ele também é credor da União, nada mais razoável do que permitir essa espécie de encontro de contas. Esse assunto ganhou outra dimensão quando veio a emenda constitucional que alterou o regime de precatórios em 2021. Ela começou na própria Procuradoria em 2020, de modo espontâneo, e quem concebeu esse aproveitamento foi o próprio Daniel Saboia, lá em 2020, e fomos na vanguarda para que o contribuinte faça esse encontro de contas. Hoje isso está andando muito bem e já temos milhões de reais em precatórios aceitos para liquidar o passivo inscrito em dívida ativa. Essas duas políticas foram, sim, responsáveis pelo encerramento de importantes litígios aos quais a gente estava submetido. 

Daniel Saboia —  De fato a PGFN investiu muito em tecnologia para atacar essas duas frentes. A primeira é a redução da taxa de congestionamento do Judiciário, no sentido de evitar o ajuizamento de novas execuções fiscais que reputamos infrutíferas. Desde 2016, investimos muito em não usar o Judiciário em processos que já identificamos que não haveria viabilidade. Vemos claramente a tendência de queda. A gente só busca o socorro do Judiciário quando necessário. Além disso, há o investimento nos meios consensuais de resolução do litígio, como a transação tributária. A PGFN foi pioneira, o primeiro órgão a, antes mesmo da Emenda Constitucional 113/2021, permitir a utilização dos precatórios para liquidar ou amortizar dívidas. Já alcançamos R$ 515 bilhões em créditos transacionados, 2,1 milhões de acordos e 5,6 milhões de dívidas transacionadas. 

Esse é o resultado do investimento tecnológico em soluções consensuais. Se for considerar os últimos seis anos, mais 2023, a PGFN já recuperou, em valores sem correção pela inflação, R$ 204 bilhões em créditos. Isso permite a execução de política pública sem aumento de carga tributária. Se considerarmos os valores corrigidos pelo IPCA desde 2003, a PGFN recuperou R$ 368 bilhões. Desses, R$ 204 foram nos últimos 6 anos, para você ver como houve de fato um investimento maciço para recuperação de ativos. Se o valor for corrigido, dá 557 bilhões em valores recuperados de 2003 a 2023. Ou seja, mais de meio trilhão recuperados, promovendo justiça fiscal, que é recuperar de quem deve e não aumentar a carga tributária de quem paga. Esse é o grande aspecto da Justiça Fiscal. 

ConJur — Os senhores mencionaram que há execuções inviáveis e muitas poderia ser extintas, seja porque foram pagas, vão prescrever ou porque não há mais interesse pela cobrança. O que são essas execuções inviáveis? E se há execuções que poderiam ter sido extintas, porque ainda não foram? 
Daniel Saboia —  Antigamente, pela legislação, quando recebíamos o crédito, éramos obrigados a propor a execução fiscal. A gente ajuizava tudo e isso encharcava o Judiciário, porque não havia a menor possibilidade de, nesse volume, você localizar patrimônio e utilizar a máquina do Judiciário para isso. 

O IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) fez um estudo em 2012 dizendo que cada execução custava, naquela época, R$ 20 mil. Se atualizar para valores atuais, dá mais de R$ 50 mil, isso só no Judiciário. Se considerar a PGFN, dava mais R$ 20 mil. Corrigido, dá mais de R$ 100 mil, só na PFGN e Judiciário. Então é caro propor uma execução. Para compensar, temos que ter uma expectativa de retorno de ao menos R$ 101 mil, digamos, porque aí teriamos R$ 1 mil de diferença entre o que será gasto e arrecadado. A partir de 2016, com base em uma interpretação de economicidade, dissemos: agora a gente só vai ajuizar aquilo que nós, previamente, identificamos a possibilidade de ter esse retorno em termos de valor econômico. Ou seja, identificamos se o contribuinte tem um veículo, um imóvel que pode ser levado a leilão etc. 

Hoje fazemos essa análise antes de propor a execução fiscal, e não mais depois de fazer a propositura. Há a análise de economicidade antes da propositura da execução fiscal. E aquela em que a análise não for favorável, não propomos a execução, o que não significa que não vamos cobrar. Usamos outros métodos mais adequados, métodos que o próprio mercado usa: protesto, ICMS, carta. Então há diversos meios administrativos e só usamos o Judiciário quando há viabilidade. E agora isso virou lei. Foi acrescentado na Lei 10.522/2002, e o nome ficou conhecido como “ajuizamento seletivo de execuções fiscais”. Inclusive estendida a experiência da União aos estados, municípios e outros órgãos credores. 

ConJur — Como o Judiciário pode ajudar? A portaria conjunta com o CNJ se insere em uma boa iniciativa nesse sentido?
João Henrique Chaufaille Grognet — A portaria do CNJ tem três grandes eixos e funciona como um grande pacto envolvendo 10 atores: o CNJ, representado pelo ministro Barroso; o Conselho da Justiça Federal, representado pela ministra Maria Thereza de Assis Moura, que é presidente do Superior Tribunal de Justiça; o advogado-geral da União, Jorge Messias; a procuradora-geral da Fazenda Nacional, Anelize de Almeida; e os seis Tribunais Regionais Federais.

É um pacto de 10 atores para implementar três grandes estratégias. A primeira é a de trocar dados: solicitar a distição de processos em que a inscrição já está paga ou extinta por algum motivo. Nossa expectativa é que a gente encerre 400 mil processos nesse primeiro eixo da portaria conjunta com a distinção. O segundo eixo, que depende essencialmente do poder Judiciário, é o de criação de gestão de processos suspensos. Você imagina um juiz que lida com 20 mil processos de execução. Você tem dois mil economicamente viáveis, e uma maioria não economicamente viáveis ou que estão sendo parcelados, que precisam esperar o contribuinte terminar o parcelamento. A ideia da portaria é pegar os processos que não têm viabilidade agora — mas que podem ter amanhã —, e os parcelados ou transacionados, e colocar em uma central de gestão, porque aí o juiz que tinha 20 mil processos, vai lidar só com dois mil. Em termos gerenciais, é um ganho de capacidade de processo de trabalho fenomenal. Mas depende mais do Judiciário. A ideia é que exista uma central por TRF e que as centrais concentrem essa massa volumosa de processos. O terceiro eixo é uma dificuldade em identificar, dentro dessas pilhas de processos, aqueles que de fato interessam. 

O que a portaria faz e o que faltava era trazer seriedade para a coisa: tratar de maneira não séria a execução fiscal custa muito caro ao nosso país, não só porque ela, sozinha, custa caro, mas também porque é preciso tornar efetivo o processo de recuperar o dinheiro que é usado na promoção de políticas públicas. Então a portaria traz uma correção de rumo para garantir efetividade à cobrança e à defesa do jurisdicionado. Não é correto dizer que é uma medida exclusivamente arrecadatória. A intenção é que o processo tenha um desfecho mais rápido, seja favorável ao contribuinte ou à Procuradoria. Nosso compromisso é resolver, com justiça fiscal, esse dramático problema envolvendo as execuções fiscais. 

Daniel Saboia —  Esse acordo com o CNJ vem para que a gente consiga escalar ainda mais essa ideia de tirar processos do Judiciário para resolução de litígios. Dos processos encaminhados pelo CNJ, daqueles 27 milhões de processos, identificamos 1,4 milhão de execuções fiscais (NA PFGN). Dessas, identificamos 437 mil execuções que podem ser extintas com base no acordo. O objetivo é dar agilidade a essas extinções. 

Também temos a perspectiva de créditos que vão prescrever nos próximos 90, 60 ou 30 dias. Ou seja, com base nessa parceria, conseguimos e conseguiremos, além de extinguir processos que já podem ou estão prestes a ser extintos, priorizar as cobranças com maior viabilidade. Os pilares são: desjudicialização, investimento em tecnologia e investimento em soluções alternativas de conflito. 

A Procuradoria começou a se orientar por dados há 10 anos. Hoje, qualquer política pública que a PFFN tente implementar ou melhorar, e a transação é uma delas, sempre tem a orientação por dados e evidências. Quando a gente resolve diminuir a litigiosidade a partir de soluções consensuais, existe toda uma maturidade em relação a identificar o contribuinte que tem o potencial de negociar, calcular quanto de desconto ele vai ter, entre outras coisas. Para chegar nesse ponto, temos por trás toda uma estrutura de dados para dizer que um contribuinte tem viabilidade, enquanto outros não. Isso não é feito arbitrariamente. Outro elemento que também é importante é que ninguém faz nada só. Então a cooperação interinstitucional acelera a entrega de serviços públicos mais eficientes. 

ConJur — Priorizar os processos com garantia de bens também é viável?
João Henrique Chaufaille Grognet — Com a portaria, começamos a estabelecer o que seriam as 100 maiores execuções viáveis, para que fossem priorizadas no Judiciário. Essas 10 maiores execuções representam centenas de bilhões de reais. É importante que o Judiciário entregue um desfecho, o quanto antes, dessa execução.

Priorizar o que é economicamente viável nesse cenário todo — e é uma minoria dos processos —  é fundamental para que a gente garanta efetividade para o resultado do processo e para o processo de recuperação de ativos, que, no final das contas, vai pagar a conta do nosso país e garantir orçamento para políticas de educação básica, segurança, melhor alimentação etc. Essa conexão da atividade relacionada à execução fiscal com o fim que se propõe, de financiamento de estado, é muito relevante. Estamos falando de dinheiro público.

ConJur — Hoje não há lei que regulamente a atuação da PGFN com arbitragem. Mas esse também é um caminho possível no futuro para reduzir as execuções fiscais? 
João Henrique Chaufaille Grognet — A fase atual é de concepção de um modelo de arbitragem, para que essa política pública possa ser implementada. A Procuradoria participa, com uma comissão de juristas, de um projeto para regulamentar a arbitragem, e um projeto de execução fiscal, que é o PL 2.488, que dentro dele tem também imbutida a execução fiscal extrajudicial. 

Ambos são na linha do que se conhece internacionalmente. Há poucos paradigmas de recuperação de ativos no mundo em que judicializa-se tanto quanto no Brasil. Por isso propomos a execução fiscal extrajudicial lá no PL da execução fiscal. Como acontece internacionalmente, a intenção é que alguns atos sejam praticados pela administração tributária. Mas isso não afasta a possibilidade de o contribuinte se socorrer ao Judiciário caso entenda que aquela cobrança tem alguma ilegalidade. Além da possibilidade do contribuinte se defender administrativamente, se ele quiser fazer isso judicialmente, ele pode a qualquer momento. 

Essa é a grande discussão: pode a administração tributária praticar atos de constrição do patrimônio para satisfazer seu crédito? Não há problema constitucional com isso, desde que a gente garanta o acesso à Justiça caso o contribuinte se sinta vulnerado em algum ponto. 

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