Opinião

O controle de convencionalidade no direito europeu e alemão

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25 de abril de 2024, 11h17

Um tema que vem progressivamente tomando corpo na cultura jurídica nacional é o controle jurisdicional de convencionalidade. Não por acaso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 7 de janeiro de 2022, instituiu a Recomendação nº 123 [1], que exorta os órgãos do Poder Judiciário brasileiro à observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos e ao uso da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Corte Europeia de Direitos Humanos

Esta recomendação normativa deu ensejo a institucionalização da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das Decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (UMF/CNJ) no âmbito do Pacto Nacional do Judiciário pelos Direitos Humanos, que abrange cinco pontos centras:

  • a) concurso nacional de decisões judiciais e acórdãos em direitos humanos;
  • b) inclusão da disciplina de direitos humanos nos editais de concursos públicos nas carreiras da magistratura;
  • c) fomento a programas de capacitação em direitos humanos e controle de convencionalidade nas Escolas judiciais estaduais e federais;
  • d) publicação dos cadernos de jurisprudência do STF: concretizando direitos humanos;
  • e) seminário internacional sobre direitos humanos e diálogos jurisdicionais, com ministros do STF, do STJ e da Corte Interamericana de Direitos Humanos [2].

A tese, sedimentada jurisprudencialmente entre nós [3], da hierarquia supralegal, ou da posição preferencial dos Tratados e Convenção sobre Direitos Humanos em face da legislação infraconstitucional, confere maior legitimidade e estímulo ao controle de convencionalidade das leis no Brasil, inclusive pela via difusa e concreta, independente da aferição propriamente constitucional.

Na Alemanha, a questão do controle de convencionalidade é mais antigo, gestado na própria construção do sistema jurídico europeu, em especial desde a institucionalização do Conselho da Europa [4], em maio de 1949. Ao contrário da União Europeia, cuja atuação radica na harmonização legislativa em termos políticos e econômicos do bloco, como um sistema político e jurídico autônomo [5], o Conselho da Europa atua na promoção dos direitos humanos e da democracia no continente.

Por intermédio do Tratado de Lisboa (2009), a União Europeia aderiu à Convenção Europeia de Direitos Humanos, de modo que as suas decisões podem agora ser questionadas perante a Corte Europeia de Direitos Humanos [6].

A Convenção Europeia de Direitos Humanos, promulgada em 1950, e em vigor desde 1953, vincula juridicamente os 46 países membros do Conselho da Europa, servindo como standard mínimo inderrogável por decisões judiciais, políticas públicas e leis nacionais.

A convenção não é à evidência uma Constituição para a Europa [7], principalmente por não prever a configuração de poderes independentes, e a organização administrativa de um poder executivo. Porém, constitui um padrão mínimo protetivo no âmbito específico dos direitos humanos, conferindo, por vezes, uma margem de apreciação ajustável, a depender da configuração política e jurídica específica de cada Estado-membro e da gravidade da violação dos direitos humanos.

Uma vez que o conteúdo moral dos direitos humanos faz parte da sua própria fundamentação, a implementação de tais direitos é em parte obstaculizada em países de cultura distinta aos valores ocidentais [8].

O caso Görgülü no direito alemão

Um dos principais julgados da Corte Constitucional alemã nos últimos anos é o assim designado “caso Görgülü” [9], cujo mérito, curiosamente, também foi objeto de julgamento pela Corte Europeia de Direitos Humanos [10], em 2004, numa perspectiva de proteção multinível de direitos.

O caso envolveu um nacional turco, residente na Alemanha, Kazim Görgülü, e sua busca pela guarda paterna e acesso ao seu filho. A mãe, de nacionalidade alemã, e que não era casada com Görgülü, deu o filho em adoção logo após o nascimento, de forma unilateral.

O Juízo de primeira instância — Amtsgericht —, da comarca de Wittenberg, deferiu o pleito paterno para a guarda do filho. Nada obstante, o Tribunal de Naumburg — Oberlandesgericht —, de segunda instância, anulou reiteradas vezes as decisões favoráveis pela guarda paterna, porquanto a separação da criança de sua família adotiva traria graves danos psicológicos, principalmente pelos laços afetivos e emocionais já sedimentados. A reclamação para a Corte Constitucional — Verfassungsbeschwerde — foi indeferida.

Spacca

Neste contexto, após o exaurimento da jurisdição doméstica alemã, a Corte Europeia de Direitos Humanos foi acionada por requerimento individual. Analisando o caso, a Corte Europeia, através da 3ª Seção, afirmou o direito paterno de guarda do filho, consignando que a decisão do Tribunal de Naumburg violava o artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos [11]. Conforme a Corte, todo Estado signatário da Convenção é obrigado a trabalhar para a reunificação de um pai natural com seu filho.

Neste contexto, conforme a Corte Europeia, o juízo ad quem de Naumburg não teria examinado se a reunificação de Görgülü com seu filho legítimo poderia ser organizada de tal forma que as consequências negativas para a criança resultantes da separação de sua família adotiva seriam menores do que o Tribunal alegava.

Além disso, o tribunal de segunda instância alemão não teria levado em consideração as consequências de longo prazo que poderiam resultar da separação permanente da criança de seu pai biológico. Ao excluir o direito de acesso ao filho, fora tornada impossível qualquer forma de reunificação familiar e o estabelecimento de uma vida familiar contínua. Por fim, a Corte Europeia fixou uma indenização moral de € 15.000,00 em favor do reclamante.

Diálogos das cortes e o controle de convencionalidade

Avulta em significância a decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão no contexto do caso Görgülü [12], no sentido de que os tribunais da Alemanha estão estritamente vinculados às decisões da Corte Europeia de Direitos Humanos, da mesma forma e intensidade que ao direito e à legislação alemã em vigor. Assim, a jurisdição alemã não pode simplesmente desconsiderar a Convenção Europeia de Direitos Humanos e as decisões da Corte Europeia, à semelhança das leis e da Constituição (artigo 20, § 3º, da LF/49).

Desta forma, o Tribunal Constitucional da Alemanha anulou a decisão do tribunal de segunda instância de Naumburg por estar em contradição com o que fora decidido pela Corte Europeia em julgado posterior. Criou-se, assim, uma abertura da jurisdição nacional aos órgãos judiciais internacionais, potencializando a concreção prática da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que passou a vincular expressis verbis à Justiça alemã em relação aos indivíduos e a seus direitos fundamentais.

Dentre nós, este diálogo internacional de cortes, e a abertura para uma jurisdição multinível e unificada, possui amplo lastro jurídico e normativo, como, por exemplo, a recente Recomendação nº 123, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que prevê a observância da Convenção Americana de Direitos Humanos e as decisões de sua Corte pelo Poder Judiciário brasileiro.

O que falta, contudo, é o fortalecimento da cultura jurídica nacional, principalmente nos Juízos de primeira instância, de aplicação nos casos concretos da Convenção Americana de Direitos Humanos e a utilização de sua jurisprudência como parâmetro decisório, e mesmo como arquétipo normativo para a realização do controle jurisdicional de convencionalidade na aplicação concreta da lei [13].

Isto vale pari passu para a atuação dos advogados, que devem levar os casos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como jurisprudência vinculativa, e referir nas petições a Convenção Americana de Direitos Humanos como direito vigente, e que ostenta primazia hierárquica defronte à legislação infraconstitucional.

 


[1] A natureza jurídica das Recomendações do CNJ, enquanto fonte legítima de Direito, é não-vinculativa e não-mandatória em relação ao aplicador do Direito (juízes), embora vinculante e mandatório quando utilizadas como ratio decidendi pelo magistrado. Alegoricamente, indicam-se as Recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em relação ao Estado brasileiro, porquanto apenas são mandatórias e vinculantes a partir da ulterior ratificação congressual. Cf., FONTOURA, Jorge; GUNTHER, Luiz Eduardo. A Natureza Jurídica e a Efetividade das Recomendações da OIT, in: Revista do Tribunal Superior do Trabalho TST, Brasília, vol. 67, n. 1, jan/mar 2001. Concernente à chamada ratio decidendi, v. MITIDIERO, Daniel. Ratio Decidendi: Quando uma Questão é Idêntica, Semelhante ou Distinta? São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.

[2] Disponível em: “https://www.cnj.jus.br/poder-judiciario/relacoes-internacionais/monitoramento-e-fiscalizacao-das-decisoes-da-corte-idh/pacto-nacional-do-judiciario-pelos-direitos-humanos/>. Acesso em 06.04.2024.

[3] RE 466.343/SP, min. rel. Cezar Peluso, j. 03.12.2008. Curiosamente, o resultado concreto do referido julgado condicionou a interpretação do art. 5º, inciso LXVII, da CF/88 ao art. 7º, § 7º, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose), numa posição claramente deferente ao direito internacional em face da Constituição (hierarquia supraconstitucional).

[4] O Conselho da Europa e a União Europeia são organizações separadas, e desempenham funções diferentes, porém complementares. O primeiro, após a exclusão da Rússia, é formado por 46 Estados-membros, com sede em Estrasburgo (França), enquanto o segundo, após a saída do Reino Unido, é formado por 27 Estados-membros, com sede em Bruxelas (Bélgica). O Tribunal de Justiça da União Europeia, com sede em Luxemburgo, diferentemente da Corte Europeia de Direitos Humanos, tem como função primacial a aplicação homogênea da legislação da União Europeia entre os países membros, e a obediência das Instituições e dos Países da União ao direito comum.

[5] Cf., SCHMIDT, Siegmar; SCHÜNEMANN, Wolf J. Europäische Union – Eine Einführung. Baden-Baden: Nomos Verlag, 2009. p. 45 e ss.

[6] Disponível em: https://edoc.coe.int/en/different-roles-shared-values/6332-leaflet-the-council-of-europe-and-the-european-union-partners-in-promoting-human-rights-and-democracy.html. Acesso aos 16.04.2024.

[7] Cf., NUSSBERGER, Angelika. A Convenção Europeia de Direitos Humanos: Uma Constituição para a Europa? In: Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, vol. 14, n. 42 (2020), pp. 49-73. Tradução do alemão por Italo Roberto Fuhrmann.

[8] PERRY, Michael J. The Morality of Human Rights, in: Human Rights Quarterly 42 (2020), pp. 434-478.

[9] BVerfGE 111, 307.

[10] Görgülü v. Germany, application n. 74969/01.

[11] CEDH, art. 8º:  Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.

[12] BVerfGE 111, 307.

[13] Cf., par excellence, o caso Cabrera García y Montiel Flores v. México. Sentença de 26 de novembro de 2010. IACtHR – Série C, n. 220.

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