Público & Pragmático

(Ir)retroatividade da nova LIA à luz das cortes de direitos humanos

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19 de novembro de 2023, 8h00

No início deste mês de novembro, a Lei Federal nº 14.230/2021 completou o seu segundo ano de vigência. Como era de se esperar, haja vista a dimensão das reformas promovidas na Lei de Improbidade Administrativa, os primeiros anos de vigência do novo regime jurídico foram marcados por debates intensos e polarizados sobre os rumos do microssistema de tutela da probidade administrativa e do combate à corrupção no Brasil.

Nesse contexto, uma das questões que se mostrou mais relevante e desafiadora diz respeito à (ir)retroatividade da Lei Federal nº 14.230/2021, a nova LIA (Lei de Improbidade Administrativa). A razão para isso tem origem no artigo 5º, XL, da Constituição de 1988, que consubstancia o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica. Em linhas gerais, alegava-se que o referido princípio não se limitaria à legislação penal propriamente dita, abrangendo todos os âmbitos de exercício do poder punitivo pelo Estado, incluindo o chamado Direito Administrativo Sancionador, dentro do qual estaria o microssistema de tutela da probidade administrativa.

Pelo impacto que as alterações legislativas trazidas pela Lei Federal nº 14.230/2021 poderiam causar nas ações em curso e até mesmo naquelas já transitadas em julgado, a questão assumiu contornos polêmicos. Isso porque, diagnosticando um cenário de excessos e indo na contramão da jurisprudência sobre a matéria, o novo regime legal trouxe regras voltadas à contenção do poder punitivo, e que poderiam beneficiar, imediatamente, os agentes demandados pela prática de atos de improbidade administrativa.

Entre essas regras, merecem destaque a exigência de dolo específico para a configuração de ato de improbidade administrativa, em todas as suas modalidades, e a modificação das regras de prescrição, com a criação de uma modalidade intercorrente. Com efeito, a aplicação retroativa dessas regras e das demais modificações legislativas poderia minar as ações em curso ou já transitadas em julgados. Diante disso, a aplicação retroativa da Lei Federal nº 14.230/2021 foi profundamente criticada por parte daqueles que acompanhavam as discussões, sob o argumento de que tal possibilidade seria um retrocesso no combate à corrupção.

Inevitavelmente, a questão chegou no Plenário do Supremo Tribunal Federal que, ante a necessidade de apresentar respostas, fixou o Tema 1.199, abaixo transcrito:

“1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO;

2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;

3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente;

4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.”

Trata-se de uma solução intermediária. De um lado, diz-se que as normas mais benéficas da Lei Federal nº 14.230/2021 não se aplicam de forma retroativa e que não se sobrepõem ao manto da coisa julgada, nem se aplicam aos processos de execução das sanções. De outro, diz-se que a Lei Federal nº 14.230/2021 se aplica aos atos de improbidade administrativa praticados sem dolo, desde que não tenha se sucedido o trânsito em julgado da decisão condenatória.

Ou seja, as normas mais benéficas da Lei Federal nº 14.230/2021 se aplicam a fatos anteriores à sua publicação, mas apenas quando a ação de improbidade administrativa tenha sido ajuizada por conduta culposa — o que, antes das modificações legislativas, não só era possível, como também era comum —, e nas quais não haja decisão condenatória transitada em julgado. Dessa forma, os efeitos da retroatividade foram recepcionados de forma mitigada.

A tese fixada neste julgamento se deu a partir do acolhimento, por maioria, dos fundamentos do voto do relator, ministro Alexandre de Moraes. Na oportunidade, os ministros André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski posicionaram-se pela retroatividade total da Lei Federal nº 14.230/2021 (com pequenas diferenças quanto à extensão desses efeitos em cada posição), enquanto os ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber e Cármen Lúcia posicionaram-se pela irretroatividade total da referida Lei, e o ministro Luiz Fux acompanhou o relator.

As diversas posições defendidas neste julgamento e a ausência de unanimidade no Plenário evidenciam a complexidade do tema. Em meio a isso, neste artigo, pretende-se chamar atenção para uma questão que, embora levantada durante o julgamento, talvez não tenha recebido a atenção que merece: o que dizem os tratados e as cortes internacionais sobre a (ir)retroatividade das normas sancionatórias?

Para enfrentar tal questão, é relevante tecer alguns comentários sobre o valor normativo dos tratados e dos entendimentos das cortes internacionais na aplicação do direito interno. Quanto aos tratados em que o Estado brasileiro for signatário, em regra, atribui-se o valor normativo equivalente ao de leis ordinárias. Contudo, se versarem sobre direitos humanos, esses tratados assumem status de norma supralegal [1], podendo até mesmo serem equiparados às emendas constitucionais, caso observado o procedimento legislativo previsto no artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal.

Aos entendimentos das cortes internacionais, por sua vez, reserva-se o papel auxiliar na interpretação e delimitação das regras contidas nos tratados, costumes e princípios gerais de direito — que se constituem, esses sim, como fontes primárias do Direito Internacional, consoante artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. A despeito disso, não se pode negar o crescente prestígio das decisões proferidas pelos tribunais internacionais, até mesmo aqueles cuja competência não abrange o Estado brasileiro, que por vezes têm seus entendimentos utilizados como fundamento decisório nos tribunais pátrios, o que se justifica em face do relevante papel que desempenham.

Nesse cenário, entende-se que os tratados e as decisões proferidas pelas cortes internacionais possuem relevância na discussão sobre a (ir)retroatividade das previsões trazidas na Lei Federal nº 14.230/2021, sobretudo quando se considera a ampliação do conteúdo jurídico do princípio da retroatividade da lei sancionatória mais benéfica que, em âmbito internacional, extrapola a esfera penal, e quando se considera que a aplicação dessa garantia se insere no âmbito dos direitos humanos, cuja normatividade extrapola as fronteiras do direito interno.

Muito embora essa relevância da jurisdição internacional para o enfrentamento da matéria tenha pautado o voto dos ministros Nunes Marques, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, o argumento somente foi enfrentado pela ministra Rosa Weber, que lhe colocou em oposição às garantias do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada fora do âmbito do direito penal, para justificar a razão pela qual não poderia prosperar. Essas garantias, todavia, constituem-se como direitos fundamentais dos indivíduos em face do Estado, não oponíveis por este àqueles, sob pena de subversão da lógica clássica dos direitos humanos como garantia da dignidade humana, em seu valor intrínseco [2].

Isso posto, quanto à extensão do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica ao microssistema de tutela da probidade administrativa, remete-se ao artigo 9º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica, da qual o Estado brasileiro é signatário, e que compõe o ordenamento jurídico com status de norma supra legal, dispondo que: “Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinquente será por isso beneficiado”.

Sem restringir a aplicação deste princípio-garantia à esfera penal, a referida norma lhe estende para todos os campos em que se manifesta o exercício do poder punitivo estatal, inclusive no campo das improbidades administrativas [3]. Essa interpretação deflui diretamente da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já reproduziu tal entendimento em mais de uma oportunidade.

A título de exemplo, vale citar o julgamento Tribunal Constitucional v. Perú, ocorrido em 2001, no qual a referida corte reconheceu como ilícita toda forma de exercício do poder que vá de encontro com as garantias estabelecidas no Pacto de São José da Costa Rica, sobretudo em processos que envolvam o exercício do poder punitivo pelo Estado, independentemente da natureza – penal, administrativa ou civil – atribuída às sanções.[4]

No mesmo ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou o caso Baena Ricardo y otros v. Panamá, ocasião em que reconheceu a aplicação do artigo 9º do Pacto de São José da Costa Rica às sanções administrativas, na medida em que essas, assim como as sanções penais, expressam o exercício do poder punitivo pelo Estado e, em muitos casos, têm natureza semelhante e são tão — ou mais – graves quanto aquelas previstas na legislação penal [5]. Esse entendimento foi reiterado em 2016, no julgamento do caso Maldonado Ordoñez v. Guatemala [6].

Esse entendimento também é recepcionado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos desde 1984, quando julgado o paradigmático caso Öztürk v. Alemanha. Nesta oportunidade, reconheceu-se o Direito Administrativo Sancionador como “autêntico subsistema penal” [7], razão pela qual os princípios e garantias que vigoram no sistema penal também deveriam ser observados na aplicação de sanções de natureza administrativa.

Quanto à proibição de acumulação de sanções penais e administrativas — ne bis in idem —, até hoje, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos adota os parâmetros estabelecidos no caso Engel e outros v. Países Baixos, de 1976, para distinguir a natureza de cada sanção. Esses parâmetros, chamados de “Critérios Engel”, são: (1) classificação legal da infração; (2) natureza da ofensa; e (3) grau de severidade da sanção.

Nessa sistemática, o primeiro parâmetro possui valor relativo, de modo que, embora o ordenamento qualifique determinada infração como civil ou administrativa, a sua natureza e o grau de severidade da sanção podem revesti-la de caráter penal, como ocorreu em diversos precedentes deste Tribunal nos quais aplicou-se a garantia do ne bis in idem — e nos quais se poderia cogitar a aplicação da retroatividade da lei sancionatória mais benéfica —, a saber: Gradinger v. Áustria (1995), Franz Fischer v. Áustria (2001), Sergey Zolotukhin v. Russia (2009) e Grande Stevens v. Itália (2014) [8].

Nesse sentido, tanto a natureza das improbidades administrativas quanto o grau de severidade das sanções previstas reforçam a intersecção que há entre esse microssistema punitivo e o Direito Penal. Para sustentar tal conclusão, basta uma breve análise das sanções previstas no artigo 12 da Lei de Improbidade Administrativa que, não raro, repercutem em consequências mais nocivas do que aquelas previstas na legislação penal – como a perda de função pública, a suspensão de direitos políticos por até 14 anos e a proibição de contratar com o poder público.

Não à toa, o § 4º do artigo 1º da Lei Federal nº 14.230/2021 previu expressamente a aplicação dos “princípios constitucionais do direito administrativo sancionador” nas improbidades administrativas, e o artigo 17-D desta Lei caracterizou a ação por improbidade como “repressiva, de caráter sancionatório”, distinguindo-a, expressamente, das ações de natureza civil. Tais previsões evidenciam que a mens legislatoris ratifica o entendimento pela retroatividade dessa norma, em consonância com o posicionamento das cortes internacionais de direitos humanos.

Por tais razões, verifica-se que há uma verdadeira incompatibilidade entre a tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 1.199 e os entendimentos das cortes internacionais de direitos humanos sobre o tema, que estendem a aplicação dos princípios e garantias que vigoram em âmbito penal — entre os quais, a retroatividade da lei mais benéfica ao demandado — para outras esferas em que se manifesta o exercício do poder punitivo pelo Estado, como é o caso do microssistema de tutela da probidade administrativa.


[1] STF (Plenário). RE 466.343/SP. Relator: min. Cezar Peluso. Julgado em: 3/12/2008.

[2] CARDOZO, José Eduardo; LOPES, Eduardo L. Prado. Por que o Brasil corre o risco de ser condenado pela Corte IDH? Jota, São Paulo, ago. 2022. Disponível em:

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/por-que-o-brasil-corre-o-risco-de-ser-condenado-pela-corte-interamericana-de-direitos-humanos-idh-16082022#_ftn8. Acesso em: 14/11/2023.

[3] Não por outro motivo, na II Jornada de Direito Administrativo promovida pelo Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA), aprovou-se o seguinte enunciado: “37. A tese fixada pelo STF no Tema 1199 sobre a irretroatividade da revogação da modalidade culposa do ato de improbidade para ações transitadas em julgado contraria o art. 9º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos por recusa de retroatividade da norma sancionatória mais benéfica ao acusado.”.

[4] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (IDH). Caso Tribunal Constitucional v. Perú. São José da Costa Rica, 31/01/2001, parágrafo 68. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_71_esp.pdf. Acesso em: 14/11/2023.

[5] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (IDH). Caso Baena Ricardo y otros v. Panamá. São José da Costa Rica, 02/02/2021, parágrafo 105. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_72_esp.pdf. Acesso em: 14/11/2023.

[6] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (IDH). Caso Maldonado Ordoñez v. Guatemala. São José da Costa Rica, 03/05/2016, parágrafo 89. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_311_esp.pdf. Acesso em: 14/11/2023.

[7] OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. Direito de intervenção e direito administrativo sancionador: o pensamento de Hassemer e o direito penal brasileiro. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. p. 128.

[8] MICHELOTTO, Mariana Nogueira. Ne bis in idem na aplicação cumulativa das penas de multa na ação de improbidade e processo penal. Dissertação (mestrado) – Fundação Getúlio Vargas. São Paulo, 2022. p. 58-71.

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