Opinião

Parâmetros para o juízo político no caso Gutierrez Navas e outros vs. Honduras

Autor

  • Yara Singulano

    é advogada do escritório Naves Fleury mestra em Famílias Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano e Social pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).

23 de abril de 2024, 17h19

A Corte Interamericana de Direitos Humanos fez, no dia 1º de abril, a solenidade de notificação [1] da sentença proferida no “caso Gutierrez Navas e outros vs. Honduras”. O julgamento, que ocorreu em 29 de novembro de 2023 [2], trata-se de mais um caso em que o tribunal condena um Estado pela destituição arbitrária de magistrados de seus cargos.

No caso em questão, os juízes José Antonio Gutiérrez Navas, Francisco Ruiz Gaekel, Gustavo Enrique Bustillo Palma e Rosalinda Cruz Sequeira haviam sido designados como magistrados da sala constitucional da Corte Suprema de Justiça de Honduras para ocupar o cargo de janeiro de 2009 a janeiro de 2016.

Não obstante, em 2012, após os quatro magistrados terem votado a favor da declaração de inconstitucionalidade de dispositivos da Ley Especial para la Depuración Policial, foram alvo de críticas diretas do então presidente da República, Porfirio Lobo, que utilizou os meios de comunicação nacionais para questionar se os juízes estavam do lado da população, ou “do lado dos delinquentes” [3].

O Congresso hondurenho, por sua vez, criou uma comissão especial para averiguação da conduta dos quatro magistrados. Essa comissão concluiu que sua atuação foi contrária ao interesse público e à política de segurança e sugeriu a destituição e substituição dos magistrados — recomendação esta acolhida pela maioria dos deputados hondurenhos, em votação que aconteceu durante a madrugada e enquanto o prédio do Poder Legislativo estava cercado por militares e policiais. Assim, os quatro juízes foram destituídos de seus cargos [4].

Os recursos internos interpostos pelas vítimas, visando reverter a sua destituição, tiveram sua análise recusada por diferentes órgãos judiciais, até a formação de um grupo ad hoc, que negou o recurso sob a alegação de que os membros do Congresso não são funcionários públicos e sim unicamente titulares da função legislativa, motivo pelo qual seus atos não seriam suscetíveis de amparo [5].

Posteriormente, já em 2014, o presidente do Congresso Nacional assumiu ter discutido com o presidente da República a questão, e que chegaram à conclusão de que a destituição era necessária “para o bem do país” [6].

O Estado de Honduras reconheceu parcialmente a sua responsabilidade perante a Corte IDH “pela violação das garantias judiciais, do princípio da legalidade, dos direitos políticos, do direito à proteção judicial e do direito ao trabalho das vítimas”, assumindo que a destituição foi “arbitrária e ilegal” [7].

A Corte IDH, por sua vez, considerou, por unanimidade, o Estado responsável pelas seguintes violações à Convenção Americana sobre Direitos Humanos:

  1. Das garantias judiciais, do princípio da legalidade, dos direitos políticos e do direito à proteção judicial, tendo sido arbitrária e ilegal a decisão do Congresso Nacional que destituiu os magistrados [8];
  2. Dos direitos à integridade pessoal, às garantias judiciais e à proteção judicial [9], uma vez que o Estado descumpriu seu dever de investigar as ameaças e o assédio que as vítimas sofreram após sua destituição, bem como deixou de adotar medidas de proteção, e de julgar e punir os responsáveis por tais atos [10].

E, por cinco votos a dois [11], a Corte IDH considerou o Estado responsável também pela violação do direito ao trabalho das vítimas, igualmente tutelado pela Cadh.

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A sentença do “caso Gutierrez Navas e outros vs. Honduras” reforça o entendimento da Corte de que “a independência judicial é um dos pilares básicos das garantias do devido processo em um Estado de direito, o qual resulta afetado quando a permanência no cargo dos juízes se interrompe de maneira arbitrária” [12].

A decisão reitera, ainda, que “o Juízo político ou a eventual destituição de quem exerce a magistratura não deve fundar-se no conteúdo das decisões que tenham proferido”, em razão da proteção conferida à independência judicial — regra que somente pode ser excepcionada quando as decisões infrinjam intencionalmente o ordenamento jurídico, ou no caso de comprovada incompetência do Juízo prolator [13].

A sentença destaca que “os procedimentos de nomeação, promoção, suspensão e demissão de funcionários públicos devem ser objetivos, razoáveis e respeitar as garantias de um processo justo” [14]. E, no mesmo sentido, afirma que o direito ao trabalho, protegido pelo artigo 26 da Cadh inclui a garantia de estabilidade no emprego, de modo que a dispensa do trabalhador de seu posto de trabalho deve ser realizada por razões devidamente justificadas — o que não aconteceu no caso dos quatro magistrados [15].

Os juízes Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México) e Rodrigo Mudrovitsch (Brasil) apresentaram, em conjunto, voto individual convergente, reforçando a argumentação da sentença proferida [16]. O voto se divide em quatro seções:

Sobre a jurisprudência interamericana a respeito de juízos políticos:

Para os magistrados, a natureza materialmente sancionatória dos juízos políticos enseja que sejam aplicadas, de forma concomitante, tanto as garantias derivadas do artigo 8.1 da Cadh, quanto as garantias mínimas previstas em matéria penal, conforme o artigo 8.2 da Convenção [17].

Analisando casos anteriormente julgados pela Corte, aduzem no voto:

48. A par desse aspecto, a travessia por esse significativo universo de casos envolvendo juízos políticos de magistrados permite identificar, em meio às suas singularidades, determinados traços comuns. Por exemplo, o fato de que, na maioria deles, os processos movidos contra juízes foram motivados pela inconformidade da coalizão política dominante com o conteúdo de determinadas decisões judiciais que afrontavam leis e atos do Executivo e do Legislativo.

49. Diretamente relacionada a essa situação está outra característica comum: não se tratou de julgamentos individualizados, mas de destituições coletivas, levadas a cabo com o propósito não de coibir eventuais condutas irregulares dos magistrados, e sim de mudar a composição da cúpula do Tribunal Constitucional ou do Poder Judicial para torná-la mais amigável aos demais poderes. Para esse fim, serviram muito bem a ausência de procedimentos claros e a invocação de hipóteses de afastamento vagas, permitindo esconder sob a imprecisão da lei o verdadeiro intuito de manipulação do sistema de justiça.[18]

O voto convergente conclui que o “caso Gutierrez Navas e outros” mantém o traço fundamental da jurisprudência interamericana: tais garantias não constituem simples proteção subjetiva de quem ocupa o cargo de magistrado, mas, sim, tutelam a dimensão institucional do princípio da independência judicial [19].

Sobre as obrigações dos estados de promover a proteção do devido processo legal, do princípio da legalidade e do direito à proteção judicial no contexto dos juízos políticos:

O voto convergente examina os standards que devem pautar a regulamentação procedimental dos juízos políticos, em conformidade com a jurisprudência da Corte IDH, a partir de três aspectos: a ampla aplicabilidade das garantias judiciais; a afirmação do princípio da legalidade; a proteção do direito a um recurso efetivo no âmbito dos juízos políticos.

Concluem os dois magistrados da Corte:

130. Esse cenário recorrente com o qual a Corte IDH vem se deparando desde o caso Tribunal Constitucional vs. Peru permitiu ao Tribunal consolidar standards fundamentais que devem ser observados pelos Estados em matéria de regulamentação de juízos políticos e de proteção à independência judicial, sobretudo em sua dimensão institucional.

131. Disso decorrem as obrigações estatais de promover a observância plena das garantias judiciais previstas nos artigos 8.1 e 8.2 da Convenção no curso dos juízos políticos; assegurar aos acusados o direito a um recurso efetivo contra violações ao devido processo legal, nos termos do art. 25.1 da Convenção; garantir o direito dos magistrados à permanência no cargo público e à estabilidade laboral, em consonância com os artigos 23.1.c e 26 da Convenção; e zelar para que os procedimentos que conformam o juízo político, bem como as condutas que o autorizam, estejam previstos em lei de forma clara, em observância ao princípio da legalidade prescrito no art. 9 da Convenção. [20]

Sobre as garantias de não repetição outorgadas pela Corte em relação à reforma da Ley Especial de Juicio Político de Honduras:

Aqui, os magistrados aprofundam-se nos fundamentos que autorizam a Corte IDH a examinar o referido ato normativo interno, mesmo tendo sido promulgado posteriormente aos fatos sob análise, e que justificam a necessidade de adequá-lo aos padrões derivados da jurisprudência da Corte em matéria de Juízos políticos.

No voto convergente, os dois juízes lembram que a jurisprudência da Corte tem demonstrado que muitos dos casos de juízos políticos são levados a cabo pelo Poder Legislativo, fruto de uma mobilização consciente para alterar a composição dos órgãos superiores do Judiciário, a fim de “neutralizar o exercício contramajoritário da função jurisdicional” — e que foi justamente isso o que ocorreu também no “caso Gutierrez Navas e outros vs. Honduras” [21].

O voto convergente afirma que “em uma região onde, historicamente, tais processos têm sido utilizados para minar a independência judicial, parece particularmente importante clarificar os parâmetros normativos que definem a inconstitucionalidade da utilização da destituição como subterfúgio para minar o Estado de direito democrático” [22].

Diante dessa conjuntura fática, a Comissão Interamericana solicitou à Corte, como garantia de não-repetição, a “adequação da legislação interna para assegurar que os processos disciplinares contra as autoridades do Poder Judiciário sejam compatíveis com os standards em matéria de independência judicial” [23], em conformidade com as garantias do devido processo e o princípio da legalidade. O pedido foi acatado por unanimidade pela Corte.

A respeito, o voto convergente conclui:

117. Os eixos que orientam as garantias de não repetição ordenadas pela Corte IDH na sentença mostram a persistência das mesmas causas que deram origem às violações identificadas: a possibilidade de destituir coletivamente magistrados por emitirem decisões contrárias às políticas dos Poderes Executivo e Legislativo e a falta de recursos efetivos no âmbito dos julgamentos políticos.

118. Neste contexto, o reconhecimento da violação do artigo 2.º da Convenção seria de pouca utilidade para a proteção dos direitos humanos se o Tribunal não estabelecesse soluções adequadas e suficientes para evitar a repetição de situações semelhantes às que ocorreram com as vítimas. As reparações concedidas na sentença são, portanto, o melhor exemplo da dimensão preventiva que os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos devem ter. [24]

Sobre a violação aos direitos das vítimas à estabilidade laboral e à permanência em cargos públicos:

 Na última seção, os magistrados discorrem sobre a “hermenêutica integral e não excludente” [25] que deve guiar a aplicação dos dispositivos convencionais. Afirmam que “cada direito tem seu próprio âmbito de proteção, o que permite sua incidência simultânea e não excludente, sob uma concepção global e integral da proteção da pessoa humana” [26]. Nesse sentido, aduzem:

[…] É evidente que um funcionário público é um trabalhador, mas nem todo trabalhador é um funcionário público; por isso, entendemos que existe uma dupla proteção, dos artigos 23.1.c (direitos políticos) e 26 (direito ao trabalho), no caso dos trabalhadores no exercício da função pública que sejam vítimas de dispensas arbitrárias. De fato, os juízes, no exercício das funções de operadores de justiça, devem gozar de estabilidade no emprego como condição elementar e reforçada da sua independência para o desempenho das suas funções. [27]

A sentença do “caso Gutierrez Navas e outros vs. Honduras” é um importante precedente que fortalece a jurisprudência sobre a necessidade de regulamentação dos Juízos políticos, reafirmando o entendimento da Corte de que a destituição arbitrária de magistrados viola não apenas direitos individuais dos juízes destituídos, mas fragiliza a independência do sistema judicial como um todo, o que coloca em risco o próprio Estado de direito.

 


[1] Acto de Notificación de Sentencia en el Caso Gutiérrez Navas y otros Vs. Honduras. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=V9HpADOD0KM. Acesso em: 05 abr. 2024.

[2] SENTENCIA DE 29 DE NOVIEMBRE DE 2023 (Fondo, Reparaciones y Costas). Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_514_esp.pdf. Acesso em: 05 abril 2024. Tradução livre.

[3] Idem, p. 15.

[4] Idem, p. 16 e 17.

[5] Idem, p. 02.

[6] Idem, p. 20.

[7] RESUMEN OFICIAL EMITIDO POR LA CORTE INTERAMERICANA, p. 02. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_514_esp.pdf. Acesso em: 05 abr. 2024. Tradução livre.

[8] SENTENCIA, p. 52.

[9] Idem, p. 52.

[10] RESUMEN, p. 01.

[11] Os votos parcialmente dissidentes foram proferidos pelo juiz Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia) e pela juíza Patricia Pérez Goldberg (Chile), e podem ser consultados ao final da sentença.

[12] RESUMEN, p. 03.

[13] RESUMEN, p. 03.

[14] Idem.

[15] Idem.

 [16] VOTO CONCURRENTE de los jueces  Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot  y Rodrigo Mudrovitsch. https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/votos/vsc_ferrer_mudrovitsch_514_esp.docx. Acesso em: 05 abr. 2024. Tradução livre.

[17] Idem, p. 10.

[18] Idem, p. 13.

[19] Idem, p. 13.

[20] VOTO CONCURRENTE, p. 35.

[21] Idem, p. 32.

[22] Idem, p. 35.

[23] SENTENCIA, p. 46.

[24] VOTO CONCURRENTE, p. 33.

[25] Idem, p. 03.

[26] Idem, p. 33.

[27] Idem, p. 34.

Autores

  • é advogada do escritório Naves Fleury, mestra em Famílias, Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano e Social pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).

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