Opinião

Trabalho escravo: uma chaga indesejável

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27 de abril de 2024, 15h22

O tráfico de pessoas escravizadas africanas para o continente americano, ao longo de mais de 350 anos, foi “a mais vasta e duradoura migração forçada de toda a história“.

O Brasil foi o último país americano a abolir a escravidão.

E se, de um lado, admitiu a atrocidade cometida; por outro, nenhuma reparação ofertou aos escravizados ou seus descendentes.

Outrossim, o Estado não outorgou garantias ou envidou esforços no sentido de implementar políticas públicas pela inserção dos negros na sociedade.

Quando da abolição, ninguém se sentia responsável pela barbárie, nem o governo, nem os senhores de escravizados, nem a igreja católica — que deu suporte à tese da inferioridade dos negros e indígenas por muitos anos.

Destarte, ao decreto de abolição da escravatura não se seguiu qualquer medida política que respaldasse a ascensão do negro à nova “condição jurídica” que lhe foi decretada e o inserisse, de fato e de direito, à sociedade.

E foi assim que a despeito da cessação da escravidão, o negro foi legado à sua própria sorte e se viu desempregado, sem moradia e sem condições de se integrar à sociedade, saindo da senzala direto para a favela.

A ausência de reparação é o que diferencia os descendentes de escravizados dos filhos e netos de europeus, especialmente italianos e alemães, que passaram a aportar no país a partir do final do século 19.

Reprodução

Ao contrário dos africanos escravizados, os europeus foram atraídos ao Brasil por uma forte e estrondosa campanha publicitária, bem como por incentivos financeiros (passagens subvencionadas pelo governo brasileiro, doação de lotes de terras, etc).

Com isso, esperava-se não padecer de mão de obra com a abolição da escravatura, ou seja, fazer a transição do trabalho escravizado ao assalariado — o que, a propósito, poderia ter sido feito com os ex-escravizados, o que não ocorreu, contudo.

Nessa linha, os europeus já chegaram no Brasil com a garantia de que receberiam um pedaço de terra para dar início à nova vida na “América”; ao contrário do que ocorreu com os negros, que não tinham direito à propriedade quando eram escravizados e continuarem sem tê-lo quando “libertados”.

Assim, “(…) do passado escravocrata restou para a população negra os estigmas de povo inferior e menos capaz que o branco e, considerando seu ponto de partida mais difícil decorrente da total ausência de políticas públicas integracionistas quando da abolição da escravatura, que viabilizasse a sua inserção na sociedade de maneira competitiva, restaram ao negro brasileiro as posições sempre mais baixas na escala laboral e na estrutura de classes” (Vanessa Strowitzki Goto, “A herança histórica do negro brasileiro e o dilema entre políticas públicas redistributivas e de reconhecimento“).

Políticas de reparação

A falta de políticas de reparação fez com que o impacto da trajetória do escravismo no Brasil se prolongue até os dias atuais, havendo disparidades visíveis entre brancos, negros, pardos e seus descendentes, valendo citar o acesso à educação, à moradia, passando pelo processo de gentrificação, o que impõe que os “herdeiros” da escravatura sejam novamente lançados no mercado de trabalho escravo, em um looping cruel e injusto.

Entre 1995 e 2022, mais de 610 mil pessoas foram resgatadas de condições de trabalho análogas à escravidão no Brasil.

No primeiro trimestre de 2023, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) resgatou o número recorde de 918 trabalhadores escravizados, uma alta de 124% em relação ao mesmo período de 2022.

Lamentavelmente, o trabalho escravo tem recrudescido no brasil e no mundo.

Acompanhamos perplexos, horrorizados e nos sentindo impotentes com a quantidade absurda de resgates de trabalhadores escravizados nos últimos anos.

Mas a notícia boa é que a atuação das instituições responsáveis pelo combate ao trabalho escravo no brasil tem evoluído e se aperfeiçoado.

Mutirões de combate, grupos móveis de fiscalização, política de colaboração entre os órgãos, capacitação de agentes, a lista suja de quem lança mão do trabalho escravo, condenações na Justiça do Trabalho, tudo tem contribuído para dar visibilidade a essa triste realidade e combatê-la.

Sem esquecer da atuação da Conatrae (Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo), criada após o Brasil ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso dos trabalhadores escravizados na fazenda Brasil Verde, no Pará.

Para os que não lembram: entre 1989 e 2002, mais de 300 pessoas vítimas de trabalho escravo foram resgatadas da referida fazenda.

E em 2016, a Corte Interamericana de Direitos Humanos acolheu denúncia promovida pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil/Brasil) e responsabilizou internacionalmente o Brasil por não prevenir a prática de trabalho escravo moderno e de tráfico de pessoas.

A corte também condenou o Brasil ao pagamento de indenizações, que somavam mais de US$ 4,69 milhões, em valores da época, além de custas e gastos. Por fim, a corte determinou que fossem adotadas “as medidas necessárias para garantir que a prescrição não seja aplicada ao delito de Direito Internacional de escravidão e suas formas análogas”.

Diante disso, duas reflexões indagativas se impõem:

Os marcos jurídicos cruciais no trato dos direitos humanos no Brasil, e aqui eu falo de direitos em geral, em sentido amplo, e não somente do direito ao trabalho decente, estão sendo observados?

Esses marcos seriam, dentre outros, a CF de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), o Estatuto do Idoso,  a Lei Antirracismo (nº 7.716/890, a Lei Maria da Penha (nº 11.340/06), a lei que reconhece como mortos os desaparecidos políticos, decisões do STF e do CNJ em relação às pessoas LGBTQIA+, como, por exemplo, equiparando juridicamente as relações homossexuais às heterossexuais, a decisão a respeito da mudança de gênero no registro civil, a obrigação de os cartórios a realizarem o casamento entre pessoas do mesmo sexo, enfim, a decisão do STF de enquadrar os crimes de homofobia e transfobia na lei de racismo, classificando-os como crimes imprescritíveis e inafiançáveis, a definição de trabalho escravo contemporâneo no artigo 149 do Código Penal, as Convenções nº 29 e 105 da OIT, que tratam do trabalho escravo, a Emenda Constitucional nº 81/2014, que trata da expropriação da propriedade flagrada com trabalho escravo, sem direito à indenização (artigo 243 da Constituição).

O que podemos fazer para imprimir concretude, ou seja, para fazer valer todo esse arcabouço jurídico, que é tão bonito, que temos no nosso pais e extirpar definitivamente essa chaga que é o trabalho escravo?

Como fazer valer as regras da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o princípio da dignidade humana e os valores sociais do trabalho, que têm assento constitucional e constituem alicerces do Estado democrático de direito, todas as convenções e tratados internacionais sobre a matéria, e mais o dever de proteção integral à criança e ao adolescente, previsto na CF, fazer valer o artigo 149 do código penal e a legislação trabalhista, os objetivos de desenvolvimento sustentável previstos na agenda 2030 da ONU, notadamente aqueles relacionados ao trabalho decente?

Isso passa pelo debate, pelo fortalecimento das instituições, pelo empoderamento do ser humano, quer pela educação, quer pela instituição de mecanismos como a renda básica universal, que poderia afastar os trabalhadores de trabalhos degradantes, exploratórios e análogos à escravidão.

Passa pelo fortalecimento das estratégias de divulgação da lista suja das pessoas e empresas que lancem mão de trabalho escravo, cometendo dumping social e da ampla publicização da lista das empresas que prestem serviço ou comercializem produtos que tenham por trás a exploração humana.

Envolve não só a fiscalização dos processos produtivos por parte do Estado, incluindo o atento exame das etapas terceirizadas, mas também o questionamento da sociedade civil acerca da origem dos produtos que consome, sejam esses alimentos, roupas, etc, podendo fazer uso, para isso, de aplicativos como o “moda livre” e o “Do Pasto ao Prato“.

Enfim, temos muito o que pensar.

Relações de trabalho

A Comissão de Direitos Humanos do TRT da 4ª Região, e todas as Comissões nessa área nos demais Tribunais Regionais, estão seriamente empenhadas em estudar de que forma podemos contribuir para implementar os direitos humanos nas relações de trabalho, minimizando os efeitos do crescente desmantelamento dos direitos sociais que a gente tem assistido nos últimos tempos, combatendo as premissas do neoliberalismo, que é  hostil aos direitos humanos ao preconizar o estado mínimo, enfim, tentando estudar mecanismos de enfrentamento da violação dos direitos humanos no Brasil e no mundo.

Por fim, cumpre registrar: não podemos desanimar com eventuais retrocessos.

Sabemos que os direitos humanos não caminham em uma linha reta, são luzes e sombras, avanços e retrocessos.

E sua implementação não depende unicamente da normatização no plano jurídico. Como enfatizava o Professor Joaquín Herrera Flores, os direitos humanos transcendem, por sua universalidade, a dimensão normativa. São processos que inauguram espaços de luta pela busca da redução das assimetrias de poder que caracterizam as sociedades neoliberais, com o fim último de se alcançar a dignidade humana.

Todos temos que lutar para concretizar a ideia de que o trabalho não é uma mercadoria, e também a ideia da ética dos direitos humanos: que é de enxergar no outro um igual em consideração e respeito.

Urge, pois, que sejam implementadas políticas sociais que promovam a construção de uma sociedade “livre, justa e solidária”, com redução das “desigualdades sociais”, sem “preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, nos termos do que assenta de forma imperativa o artigo 3º, incisos I, III e IV da Constituição.

Afinal, trata-se da implementação do princípio da dignidade humana, sedimentado no artigo 1º, inciso III, da Carta Magna, que assenta a igualdade das pessoas no plano formal — não somente no material, inspirado que foi tal dispositivo no artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”).

O enfrentamento da herança legada pela escravidão não é fácil, mas deve ser fortemente buscado, até mesmo como mecanismo de construção da cidadania de nosso povo.

E apenas quando nos dermos conta de que todos somos iguais em dignidade e direitos, não apenas perante a lei, mas de fato, vivendo em uma sociedade livre, justa, fraterna e solidária, é que poderemos soltar a voz e dizer que o Brasil aboliu de fato e de direito a escravidão, não mais sendo um país racista.

Afinal “ninguém nasce odiando o outro pela cor de sua pele, ou por sua origem ou sua religião. Para odiar as pessoas precisam aprender, e se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto” (Nelson Mandela, “O longo caminho para a liberdade”).

É urgente falar sobre o trabalho escravo em nosso País!

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