Opinião

Sem causa não há efeito: improbidade e prescrição do ressarcimento ao erário

Autor

  • Adriano Tavares da Silva

    é advogado mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa especialista em Direito Público pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (Cesusc) conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina e procurador-geral do Instituto dos Advogados de Santa Catarina.

19 de abril de 2024, 13h24

Na memorável obra de Ernest Hemingway O Sol Também se Levanta, Bill indaga a Mike: “Como você chegou à bancarrota?”. Mike retruca: “De duas formas: Primeiro lentamente, e então de repente”. Ao ser interrogado sobre os fatores que o levaram a tal estado, Mike atribui sua ruína financeira aos seus “amigos, os não verdadeiros” [1] e a uma grande quantidade de dívidas.

Mutatis mutandis, o mesmo se aplica aos direitos fundamentais. Primeiro lentamente, e então de repente, eles podem ser corroídos e terem sua eficácia limitada. Assim, como diria TS Eliot, as coisas acabam “not with a bang but a whimper” (não com um estrondo, mas com um lamento) [2].

Essa breve digressão literária vem ao caso diante de algumas ações ajuizadas pelo Ministério Público com a pretensão de ressarcimento ao erário por conta de ato doloso de improbidade, mesmo nos casos em que, paradoxalmente, o ato ímprobo sequer foi reconhecido judicialmente por meio de um direito fundamental mínimo: o devido processo legal.

Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) 1.475.101

Nesse sentido, é relevante a decisão monocrática [3] do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, no ARE 1.475.101, no qual enfatiza que apenas com o reconhecimento do ato doloso de improbidade administrativa é que se pode falar em danos ao erário, alinhando-se, assim, à tese do Tema 897 de repercussão geral. Na prática, isso significa que, na ausência de reconhecimento de ato doloso de improbidade, não se pode alegar danos ao erário para evitar a prescrição.

Essa decisão é relevante sobretudo porque, no referido Tema 897, fixou-se a tese segundo a qual são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa. Dessa maneira, em conformidade com a interpretação adotada pelo Ministério Público, poder-se-ia ajuizar a ação de ressarcimento deste tipo a qualquer tempo, vez que imprescritíveis, desde que houvesse a menção à improbidade.

De forma complementar, é de se ressaltar que o ministro Teori Zavascki, no Tema 666, fixou entendimento no sentido de que é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil.

O motivo para essa distinção, conforme o ministro Teori, se funda no fato de que a imprescritibilidade prevista no artigo 37, §5º da Constituição “diz respeito apenas a ações de ressarcimento de danos decorrentes de ilícitos tipificados como de improbidade administrativa e como ilícitos penais”.

Spacca

Em outros termos: é insustentável juridicamente valer-se da noção de improbidade, não reconhecida no devido processo legal, para obter-se a imprescritibilidade.

Justamente por isso, o ministro Alexandre de Moraes foi categórico no ARE 1.475.101: “diferentemente do que alega o MP, a condenação pela prática do ato de improbidade é sim pressuposto do reconhecimento da imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário. No caso, reconhecida a prescrição da ação de improbidade, não há como se aplicar a tese do Tema 897 da repercussão geral [no sentido de se aplicar a imprescritibilidade – inserção nossa]”.

Garantia do devido processo legal

Este entendimento traz luz a uma questão frequentemente debatida no Direito Administrativo: a impossibilidade de classificar condutas como atos de improbidade administrativa sem a devida observância do processo legal, com o intuito de impedir a prescrição. A ideia subjacente aqui, portanto, é garantir um direito fundamental: o devido processo legal, como enfatiza o próprio ministro na redação do Tema 897:

“Com efeito, o Plenário decidiu, com toda a clareza, que: (…) compete ao Ministério Público comprovar a prática do ato de improbidade administrativa doloso, desde que tipificado na Lei 8.429/1992, e não somente a existência do dano, garantindo-se ampla defesa ao réu”.


Trata-se, em última análise, de uma afirmação quase que logicamente necessária: para se exigir a reparação ao erário por ato atribuível a ato reputado ímprobo é preciso a comprovação do ato, com o devido dolo subjetivo, assim como o dano efetivamente causado, tudo isso em um processo conforme as disposições legais.

Em termos jurisprudenciais, o Tribunal de Justiça de São Paulo, reconheceu a validade desse modus pensandi na decisão que deu origem ao ARE 1.475.101, nos seguintes termos:

“Condutas imputadas aos réus que não foram declaradas ímprobas judicialmente. Pretensão punitiva prescrita, nos termos no artigo 23, da Lei 8.429/92, diante do decurso de prazo superior a cinco anos entre as datas do desligamento do corréu Ademir do cargo de Secretário Municipal de Saúde e do término do contrato celebrado com a empresa Home Care Medical Ltda e o ajuizamento da ação. Prescrição. Ocorrência. Processo extinto, com resolução do mérito (artigo 487, II, do CPC). Prejudicado o pedido de conversão da ação de improbidade em ação civil pública de ressarcimento ao erário. Agravo de instrumento provido.” (TJ-SP – AI: 20474061720228260000 SP 2047406-17.2022.8.26.0000, relator: Paulo Galizia, data de julgamento: 18/8/2022, 10ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 18/8/2022)

O raciocínio aqui é claro: uma vez constatada a prescrição da improbidade, não há que se falar na imprescritibilidade do ajuizamento da pretensão de ressarcimento fundada em ato doloso de improbidade, vez que uma é requisito da outra.

Entendimento do STJ

Não sem razão, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do REsp 1.634.627, fixou entendimento de que o “ressarcimento ao erário tem como causa de pedir a ocorrência de um ato de improbidade administrativa, inocorrente na hipótese, à míngua do elemento subjetivo”, ou seja, a Corte infraconstitucional já firmava, em seus precedentes, a necessidade de reconhecimento da prática de ato de improbidade administrativa tipificado na Lei 8.429/1992 para que se pudesse falar em imprescritibilidade da ação de ressarcimento ao erário (verbi gratia: AgInt no REsp 1.532.741/ES, rel. ministro Gurgel de Faria, 1ª Turma, julgado em 10.08.2020, DJe 13.08.2020).

Portanto, mais do que reconhecer a validade de um raciocínio jurídico básico (i. e., de que sem a causa não há o efeito), trata-se aqui de, verdadeiramente, proteger o direito fundamental ao devido processo legal.

E, justamente nesse sentido, é de se admitir que, sem seguir o devido processo legal, é inviável classificar, em uma ação de ressarcimento ao erário, as ações dos réus como atos de improbidade administrativa para impedir o reconhecimento da prescrição, sob pena de se violar esses direitos fundamentais.

Assim, evita-se que os direitos fundamentais acabem como um lamento, para retomar TS Eliot.

 


[1] HEMINGWAY, Ernest. The Sun also rises. Estados Unidos da América: JAD Publishing Ltds, 2022

[2] ELIOT, T.S. The Waste Land. London: Faber & Faber, 1922.

[3] Agravo Interno interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, o qual objetiva a reforma de uma decisão monocrática. Pautado para julgamento no Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal no dia 2 de abril de 2024, houve a manifestação dos Ministros Alexandre de Moraes, na qualidade de Relator, e Cristiano Zanin, ambos posicionando-se pelo não provimento do agravo, mantendo, assim, a decisão agravada em seus termos originais. Contrapondo-se a esta corrente, os Ministros Cármen Lúcia e Flávio Dino votaram pelo provimento do recurso, defendendo a procedência do pedido formulado pelo Ministério Público. Neste contexto, diante da necessidade de um exame mais aprofundado dos autos, o Ministro Luiz Fux requereu vista, suspendendo temporariamente o julgamento, sem data de julgamento.

Autores

  • é advogado, sócio fundador do escritório Tavares & Advogados Associados (Florianópolis), mestrando em Ciência Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa (UAL), pós-Graduado em Direito Eleitoral pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e em Direito Público pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (Cesusc), conselheiro estadual da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional de Santa Catarina (OAB-SC), vice-presidente do Conselho Deliberativo do Instituto dos Advogados de Santa Catarina (Iasc), presidente da Comissão de Assuntos Legislativos da OAB-SC e membro da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina (Aacrimesc).

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