Opinião

Taxatividade dos tipos do artigo 11 da LIA a partir da Lei 14.230/2023

Autor

  • Rita Tourinho

    é doutora em Direito Público pela UFBA mestre em Direito Público pela UFPE professora assistente de Direito Administrativo da UFBA promotora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio de Proteção ao Patrimônio Público do MPBA.

16 de abril de 2024, 9h26

A submissão da atuação estatal aos princípios administrativos é norma constitucional explícita no artigo 37, caput, da Constituição. Assim, tanto na atuação vinculada, quanto na atividade discricionária, os agentes públicos têm o dever de atuar pautados em princípios administrativos.

Ocorre que não adianta determinação constitucional de obediência aos princípios administrativos sem que haja um meio eficaz de punir sua violação. Segundo Von Ihering, “o direito não é mero pensamento, mas sim força viva. Por isso a Justiça segura, numa das mãos, a balança, com a qual pesa o direito, e na outra a espada, com a qual o defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é a fraqueza do direito” [1].

Nessa perspectiva, o artigo 11 da Lei n° 8.429/1992, na sua versão original, determinou sanções de natureza pessoal ao agente público que violasse princípios administrativos. A Lei de Improbidade seria, então, considerando a abordagem de Von Ihering, a espada voltada a garantir a observância dos princípios administrativos que estariam na balança.

Ocorre que a interpretação literal do caput do artigo 11 também era capaz de levar a acoimar como ímprobas condutas meramente ilegais, gerando cenário de insegurança jurídica.

Segurança, princípios e improbidade

Celso Antônio Bandeira de Mello, manifestando-se quanto ao princípio da segurança jurídica, afirma que “a ordem jurídica corresponde a um quadro normativo proposto precisamente para que as pessoas possam se orientar, sabendo, pois, de antemão, o que devem ou o que podem fazer, tendo em vistas as ulteriores consequências imputáveis a seus atos” [2].

Spacca

Como bem destaca Humberto Ávila [3], enquanto as regras são normas imediatamente descritivas, na medida em que estabelecem obrigações, proibições ou permissões, os princípios são normas imediatamente finalísticas, ou seja, determinam a realização de um fim jurídico. Assim, “os princípios estabelecem um estado ideal de coisas a ser atingido (state of affairs, idealzustand), em virtude do qual deve o aplicador verificar a adequação do comportamento a ser escolhido ou já escolhido para resguardar tal estado de coisas” [4]. Por certo que a carga de significados que acompanha os princípios administrativos acaba por gerar certa insegurança quanto ao atingimento dos propósitos finalísticos contemplados.

No âmbito da improbidade administrativa, tal desencontro de posições quanto à efetiva infração principiológica refletia-se em divergências de entendimentos jurisprudenciais. Por exemplo: a inaplicabilidade do percentual mínimo destinado aos recursos direcionados à saúde ou à educação constitui ato de improbidade por violação de princípios? A afronta legal viola a finalidade da norma a ponto de caracterizá-la como improbidade?

Pesquisa jurisprudencial é capaz de indicar posições opostas entre os tribunais [5], o que confirma a ausência de uniformidade quanto às condutas caracterizadoras de improbidade por violação de princípios na redação original da LIA.

LIA, Lindb e Lei nº 14.230/2021

A Lindb, com as inovações trazidas pela Lei nº 13.655/2018, trouxe limites à interpretação do artigo 11, da Lei nº 8.429/1992. O artigo 22 prevê a possibilidade de o julgador considerar as circunstâncias de ordem prática que turbem a aplicação dos comandos normativos como causa excludente de ilicitude ou de culpabilidade em razão da inexigibilidade de conduta diversa [6].

Por outro lado, o artigo 20 impôs, para caracterização da improbidade por violação de princípios, a necessidade de se relacionar o princípio violado ao caso concreto, estabelecendo qual o verdadeiro risco de dano ao interesse público em virtude da afronta. Ademais, como o dolo é elemento subjetivo exigido na qualificação desse tipo de improbidade, o propósito livre e consciente de atuação em desacordo com a principiologia empregada deverá ser demonstrado, o que envolve a afronta à moralidade administrativa.

Observou-se, então, que no campo da violação dos princípios tanto o Ministério Público como a magistratura encetaram avanços na aplicação do artigo 11, da Lei nº 8.429/1992. Viu-se com maior clareza o hiato entre a violação objetiva da lei e o ato de improbidade; o tempo permitiu maior consolidação da doutrina [7] e da jurisprudência [8] acerca do conteúdo dos princípios administrativos, retirando, se não todas, muitas impurezas na aplicação da norma repressora neste caso.

No entanto, a partir da Lei nº 14.230/2021 decidiu-se por alterar a dinâmica legal, estabelecendo o artigo 11 como tipo taxativo, com a descrição das condutas caracterizadoras da violação. Exigiu-se, também, no § 1º do referido artigo, a comprovação, na conduta funcional do agente público, do “fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade”.

Por certo que a alteração não é de todo criticável. Acredita-se, inclusive, que tal dinâmica se aproxima da segurança jurídica tão almejada pelos administradores públicos.

Com a nova redação legal, os dez incisos estabelecidos exemplificativamente no artigo 11 passam a ser oito dispositivos taxativos. Assim, quatro foram revogados (I, II, IX e X), quatro tiveram suas redações alteradas (III, IV, V e VI), mantendo-se a redação original de apenas dois incisos (VII e VIII), com o acréscimo de dois novos (XI e XII).

Lacuna

No entanto, ao fixar taxativamente as condutas caracterizadoras da improbidade administrativa por violação de princípios, o artigo 11 deixou de fora diversas condutas, observadas de forma reiterada na administração pública, muitas, inclusive, violadoras do princípio da dignidade da pessoa humana, que ficarão desguarnecidas no âmbito da lei.

Inicia-se abordando o assédio no serviço público, que não mais caracteriza prática de improbidade por violação de princípios.

O assédio moral no trabalho é considerado como “qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude…) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa” [9].

Nessa situação, antes da alteração da Lei nº 8.429/1992, o Superior Tribunal de Justiça considerou como ato de improbidade administrativa, enquadrado no artigo 11, caput, da LIA, o assédio moral, em razão do evidente abuso de poder, desvio de finalidade e malferimento à impessoalidade, ao agir deliberadamente em prejuízo de alguém [10].

Mas não é só. Tem-se também o assédio sexual, covardemente praticado em ambientes de trabalho, normalmente por quem se vale de posição hierárquica superior. Quanto a esta hipótese, o Superior Tribunal de Justiça também se manifestou, afirmando que configura ato de improbidade administrativa por violação de princípios, a conduta de professor da rede pública de ensino que aproveitando-se dessa condição, assedie sexualmente seus alunos [11].

Saliente-se que não cabe o argumento segundo o qual “o abusador será responsabilizado administrativamente”. Sabe-se que, em muitos casos, o assédio é cometido por agentes políticos, como secretários de Estado, que não se sujeitam à responsabilidade disciplinar em virtude das peculiaridades próprias de seus cargos.

Pode-se, ainda, abordar a utilização do cargo público para solicitar vantagem indevida. Conforme sabido tal prática configura crime de corrupção passiva, constante do artigo 327, do Código Penal, no entanto, o legislador entendeu que não mais caracteriza ato de improbidade administrativa.

Conclusão

Conforme já externado, andou bem o legislador ordinário ao transformar o artigo 11, da Lei nº 8.429/1992 em tipo taxativo, porém não atentou aos direitos fundamentais acolhidos pela Constituição de 1988.

Esqueceu-se que o assédio, de qualquer espécie, praticado no âmbito do serviço público afronta a dignidade da pessoa humana, da mesma forma que atinge o particular que se vê frente a pedidos ilícitos para ter acesso a serviços públicos que lhes são gratuitamente garantidos pela Carta Constitucional.

Errar é da natureza humana, mas é preciso que erros sejam reconhecidos e corrigidos. Não se pode falar em probidade administrativa, deixando-se condutas que ferem de morte valores acolhidos no nosso ordenamento jurídico fora do alcance do artigo 11, da lei nº 8.429/1992.

É preciso que o legislador ordinário cumpra a promessa feita perante aqueles que lhes confiaram seu voto, acreditando que estariam contribuindo para reforçar nossos valores constitucionais, garantindo a proteção dos cidadãos, inclusive em face de agentes públicos inescrupulosos.

 


[1] IHERING, Rudolf Von. A Luta pelo Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2001.p. 27

[2] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo Juspodivm/Malheiros, 2021. p. 108.

[3] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 95.

[4] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 96.

[5] Decisão monocrática nº 1335745, Min. Mauro Campbell, considerou como caracterizada a improbidade por violação de princípios a não aplicação do percentual mínimo na saúde. Em sentido contrário, decisão do STF no Recurso Extraordinário com Agravo: ARE nº 743.560-PR.

[6] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo Juspodivm/Malheiros, 2021. p. 109.

[7] Segundo Emerson Garcia “não se nega, é evidente, a necessidade de cautela no manuseio do art. 11 da Lei de Improbidade, pois, como dissemos anteriormente, as noções de improbidade formal e de improbidade material não ocupam, necessariamente, o mesmo plano existencial, sendo plenamente factível a presença da primeira desacompanhada da segunda” (GARCIA, Emerson, ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 424).

[8] Decidiu o Superior Tribunal de Justiça que “(…)cediço que a má-fé é premissa do ato ilegal e ímprobo. Consectariamente, a ilegalidade só adquire status de improbidade administrativa quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração Pública coadjuvados pela má-fé do administrador. A improbidade administrativa, mais que um ato ilegal, deve traduzir, necessariamente, a falta de boa-fé, a desonestidade, o que não restou comprovado nos autos pelas informações disponíveis no acordão recorrido, calcadas, inclusive, nas conclusões da Comissão de Inquérito” (1ªT, REsp. n. 480.387/SP, rel. min. Luiz Fux, j. em 16/03/2004, DJU 24/5/2004.

[9] HIRIGOYEN, Marie France. A violência perversa do cotidiano. Tradução: Maria Helen Huhner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 65.

[10] STJ – REsp: 1286466 RS 2011/0058560-5, relator: ministra ELIANA CALMON, Data de Julgamento: 03/09/2013, 2ª Turma, ata da publicação: 18/09/2013.

[11] STJ. 2ª Turma. REsp. 1255120-SC, rel. min. Humberto Martins, julgado em 21/5/2013 (inf. 523).

 

 

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