Opinião

Agravo interno, 'precedente' e multa: reflexões sobre o Tema Repetitivo 1.201

Autores

  • Benedito Cerezzo Pereira Filho

    é advogado do escritório Eduardo Ferrão Advogados Associados e professor de Direito da Universidade de São Paulo

  • Rodrigo Nery

    é doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) (com ênfase em Direito Processual Civil) pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPq/UnB Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) integrante e orador da primeira equipe da UnB na 1ª Competição Brasileira de Processo (CBP) e advogado.

  • Mayk Chayenne Gomes Fonseca

    é mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) com ênfase em Direito Processual Civil e Constitucional e membro do Grupo de Pesquisa de Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos (GEPC-UnB).

16 de novembro de 2023, 21h21

Em breve o STJ (Superior Tribunal de Justiça) analisará o Tema Repetitivo 1.201, que versa sobre os critérios de aplicação da multa prevista no §4º do artigo 1.021 do CPC. Esse dispositivo refere-se à hipótese de um agravo interno ser reconhecido como manifestamente inadmissível ou manifestamente improcedente, em decisão unânime.

Do que se sabe até agora, o objetivo da referida Corte é deliberar sobre as seguintes Teses: 1) Aplicabilidade da multa prevista no §4º do artigo 1.021 do CPC quando o acórdão recorrido baseia-se em precedente qualificado (artigo 927, III, do CPC); 2) Possibilidade de se considerar manifestamente inadmissível ou improcedente (ainda que em votação unânime) agravo interno cujas razões apontam a indevida ou incorreta aplicação de tese firmada em precedente qualificado.

Embora pareça um simples debate interno do Judiciário, o Tema em questão está indubitavelmente longe de ser um ponto irrelevante no cenário jurídico nacional. Em verdade, trata-se de questão fundamental, a merecer necessária a atenção não somente da doutrina nacional, mas também de toda a população brasileira.

Nas linhas que se seguem, explicaremos alguns aspectos a respeito desse Tema, de modo a propiciar a devida reflexão sobre o que efetivamente estará pendente de decisão. As opiniões aqui expostas têm o intuito exclusivamente acadêmico, o que não as impede de também apontar a relevância social e prática da discussão que será travada no STJ nesse caso.

De acordo com o atual CPC, é possível a aplicação de multa em agravo interno julgado manifestamente inadmissível ou julgado improcedente (ou seja: com negativa de provimento) em votação unânime.

Além de ser polêmica e, a nosso ver, desnecessária (ante as diversas previsões de sanções decorrentes de abuso de direito de litigar previstas no CPC, vide artigos 79 e 80, VII), aqui se entende que essa possibilidade de multa deve ser objeto de interpretação restritiva, sob pena de inviabilizar um recurso que, em muitos dos casos, é a única forma de levar uma questão ao colegiado, não somente das nossas Cortes Superiores, mas também de todos os Tribunais jurisdicionais do nosso país.

É que, com o estabelecimento de mecanismos que permitem decisões meritórias de natureza monocrática nos Tribunais, com base em entendimentos fixados em “precedentes” [1] (artigo 932, IV e V, do CPC), considerando os mais diversos temas já fixados pelas nossas Cortes Superiores, a possibilidade de uma decisão monocrática ser proferida num recurso (seja de apelação, seja de outra espécie) é ampla. Ademais, a incerteza dos parâmetros que permitem também ao ministro do STJ ou do STF decidir monocraticamente o mérito dos recursos especial ou extraordinário torna ainda mais corriqueira a ocorrência desse tipo de decisão monocrática [2].

Assim, em sendo ampla, como dito, a possibilidade de decisão monocrática, estabelecer multa com base no fato de um agravo interno ser julgado “manifestamente” improcedente, e fixar que essa  “manifesta” improcedência se dá em razão de entendimento do julgador de que estaria havendo afronta a “precedente qualificado” é, no mínimo, problemática. Eis algumas razões.

Em primeiro lugar: com a proliferação do plenário virtual, é muito comum não haver deliberação efetiva dos Ministros ou, ao menos, falta transparência quanto a essa deliberação. Com todas as venias possíveis, acaba sendo um equívoco grave desconsiderar que o julgamento no plenário virtual, ou por lista, ou por qualquer outra forma que não seja presencial e que permita o efetivo debate, se configura como uma espécie de procedimento que simplesmente ratifica o voto do relator na maioria dos casos, isso num contexto de milhares de processos tramitando nas nossas Cortes [3].

De fato, e a prática pode confirmar isso, não há deliberação, discussão ou debate. Muitas vezes sequer se oportuniza a sustentação oral — ou, às vezes, disponibiliza-se apenas a possibilidade de envio da sustentação oral “gravada”, sem qualquer garantia de que o julgador ou mesmo sua assessoria efetivamente acessaram a sustentação. Logo, o que ocorre, na prática, é a ocorrência de um voto pelo Relator que não é objeto de deliberação pelos demais Ministros. Além de gerar deturpação e variação de entendimentos dentro da própria Corte (pois não raro há entendimentos contraditórios por parte dos próprios julgadores, a depender de quem será o relator, esse que poderá ser seguido pelos demais sem que eles sequer tenham oportunidade de analisar aprofundadamente a questão e divergirem), isso faz com que, em alguns casos, um equívoco de um eventual julgador não seja corrigido.

E é com base nessa última premissa que se constata o segundo ponto a ser destacado: é possível o julgador se equivocar quanto à pretensão do recorrente. Ele, tal como qualquer outro ser humano, pode cometer erros.  O agravo interno pode estar legitimamente impugnando precedente que precisa ser superado (não precisamos nem lembrar a importância de reviravoltas jurisprudenciais com base em superação de precedentes), assim como pode estar legitimamente apontando uma distinção entre o caso do recurso e o precedente. Nessas hipóteses, se o relator se equivocar, e proferir voto que sequer poderá ser debatido de forma eficiente nos julgamentos virtuais, como ficará a situação do jurisdicionado? Será multado injustamente?

Inclusive, no âmbito de um determinado julgamento virtual, por exemplo, até onde se sabe, sequer é possível ter ciência do teor do voto do Relator, previamente disponibilizados aos demais ministros, até o final do julgamento. Como saber, então, qual será o conteúdo do voto que está sendo proferido? Como saber se o Relator não se equivocou, até para permitir o convencimento de outro Ministro acerca da correta interpretação da pretensão recursal? Isso, somado ao fato de que há uma grande dificuldade até mesmo de despacho com os julgadores, havendo casos em que o gabinete informa ao advogado que somente atenderá processos pautados e de Relatoria do próprio Ministro/desembargador, ou que não poderá anteder, somente agrava toda a situação aqui relatada.

Soma-se a isso o fato de que, pela Emenda Regimental nº 41 de 2022, o STJ revogou o dispositivo de seu regimento interno que permitia que as partes solicitassem a exclusão da pauta virtual e a inclusão na pauta presencial (artigo 184-D, II). Assim, tem-se firmado na referida Corte a posição de que, em razão da revogação do dispositivo e a inclusão da sustentação oral “gravada“, o julgamento de Agravos Internos só não ocorrerá em ambiente virtual quando um dos componentes do colegiado, ou o próprio Relator, assim deliberar, em virtude do artigo 184-D, I, RISTJ [4].

Por fim, vale destacar também que as possibilidades de teses elecandas no referido tema, da maneira como estão redigidas, evidenciam um marcante equívoco conceitual. Elas confundem análise meritória com verificação de requisitos processuais. Conforme se defende, a análise da conformidade da decisão recorrida com precedente de uma Corte Superior (ou de qualquer Corte que não esteja hierarquicamente “abaixo” da que está julgando) possui natureza meritória. Ao decidir que a decisão recorrida está em harmonia com um determinado precedente, o Tribunal está dizendo que o recorrente (que impugnou a referida decisão) não têm razão em seu recurso. Trata-se, portanto, de uma declaração implícita da improcedência de pleito recursal.

Considerando a ponderação acima, não é coerente, em termos técnicos, sequer debater se um recurso cuja pretensão afronte precedente (aplicado na decisão recorrida) deveria ser declarado manifestamente “inadmissível”, tal como sugere uma das teses. Não se trata de análise de admissibilidade. Trata-se de análise meritória, tal como a análise que nega seguimento por afronta a entendimento fixado em Repercussão Geral e Repetitivos, e tal como a análise realizada com base na Súmula 83 do STJ. Aqui não se nega, claro, que nem o atual Código e nem a própria jurisprudência do próprio STJ estabelecem uma efetiva identificação da natureza das análises mencionadas. Entretanto, à luz da melhor doutrina [5], não há como ignorar que se trata sim de verificação do mérito da postulação recursal.  

Ademais, não podemos olvidar o fato de que os jurisdicionados são obrigados a impugnar todos os fundamentos autonômos da decisão que sustentam o capítulo impugnado (artigo 1.021, §2º c/c artigo 932, III, do CPC), sob pena de não terem seu recurso conhecido. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, inclusive, tem-se a aplicação por analogia da Súmula 182 do STJ, que versa sobre a necessidade de impugnação específica de todos os fundamentos da decisão de admissibilidade, sob pena de não conhecimento do respectivo Agravo [6].

Indo além, é necessário pensar também na aplicação ou não dessa multa  quando a parte interpõe agravo interno contra decisão que nega seguimento ao seu recurso especial (artigo 1.030, I, alínea “b”, e §2º, do CPC/2015), a fim de demonstrar a distinção ou superação de determinado precedente. Ela poderia ser penalizada pelo ato? A superação de um precedente envolve necessariamente debate sobre a sua aplicação ao longo do tempo. Por vezes, os julgamentos dos tribunais superiores criam entendimentos e interpretações diversas sobre um mesmo precedente, sendo perfeitamente possível que tenha indevida ou incorreta aplicação. Nesses casos, também o jurisdicinoado deverá ser penalizado?

À luz do que foi exposto acima, a mensagem que deixamos é a de que precisamos refletir sobre os mecanismos necessários ao controle dos precedentes criados pelas mais altas cortes do país. Se, de um lado, esses Tribunais já não mais admitem o ajuizamento de reclamação para o controle da aplicação indevida ou não aplicação de precedentes, por outro lado, também não podem recusar a utilização legítima de agravo interno pela parte prejudicada que busca demonstrar um erro de aplicação, superação ou distintção do precedente, ainda que, posteriormente, seja negado provimento ao recurso.

Não é por meio de multas que se resolverá o grande problema dos acervos jurisdicionais. Da mesma forma, não é por meio de punição que se resolverá o problema do desrespeito aos precedentes judiciais, seja lá o que eles forem.


[1] Deixamos entre aspas pois, de fato, há, no Brasil, uma grande confusão doutrinária a respeito do que seria efetivamente um precedente judicial. Sobre o tema, cf. PEREIRA FILHO, B. C.; NERY, R.; ROCHA CORRÊA, L.; MAZARELLO NÓBREGA DE SANTANA, G. DE POLISSEMIA A METONÍMIA: A INCERTEZA SOBRE O QUE É UM PRECEDENTE NO DIREITO BRASILEIRO. Direito.UnB – Revista de Direito da Universidade de Brasília[S. l.], v. 7, nº 1, p. 201–227, 2023. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/article/view/43119. Acesso em: 11 nov. 2023.

[2] Há diversos julgados do STJ segundo so quais a reapreciação do recurso, por meio de agravo interno, pelo órgão colegiado torna superável eventual nulidade da decisão monocrática em desacordo com os parametros previstos no artigo 932 do CPC. Ver: AgInt no REsp nº 1.915.194/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 2/10/2023, DJe de 6/10/2023; AgInt no REsp nº 2.033.791/SP, relator ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 9/10/2023, DJe de 11/10/2023; AgRg no AREsp nº 1.195.079/SP, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 5/9/2023, DJe de 11/9/2023.

[3] Sobre o tema, vale recordar o vídeo no qual o Ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, aponta uma certa dificuldade de lidar com o plenário virtual, especialmente no contexto da ampla defesa: https://www.migalhas.com.br/quentes/385747/lewandowski-critica-julgamento-virtual-no-stf . Eis a transcrição de uma parte da fala, feita pelo portal Migalhas: “Nas últimas semanas da minha judicatura no STF, julgamos 600 processos virtualmente. Minha assessoria veio me apresentar um problema: ‘se 10% desses processos tivessem sustentação oral de 15 minutos, nós não teríamos tempo hábil de ouvir os 10% dessas sustentações orais até o término do prazo de julgamento’. Portanto, me parece sob o aspecto da ampla defesa, já é algo que deve ser repensado”. (idem).

[4] RtPaut no REsp n. 1.975.857, ministro Assusete Magalhães, DJe de 19/09/2023; RtPaut no AREsp n. 2.299.306, ministra Nancy Andrighi, DJe de 07/08/2023; RtPaut no AREsp n. 2.230.238, Ministro Herman Benjamin, DJe de 20/06/2023

[5] Por todos, menciona-se aqui a lógica defendida por José Carlos Barbosa Moreira, cuja compreensão permite a efetiva distinção entre mérito e admissibilidade no âmbito recursal. Cf. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Que significa “não conhecer” de um recurso? In: Temas de direito processual – Sexta série. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 125 e passim.

[6] AgRg no AREsp nº 2.027.738/SP, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 10/5/2022, DJe de 13/5/2022.

Autores

  • é advogado e professor de Direito da Universidade de São Paulo.

  • é doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) com ênfase em Direito Processual Civil, pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito, membro do Grupo de Pesquisa Processo Civil, Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos (CNPq FD/UnB) e da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC).

  • é mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) com ênfase em Direito Processual Civil e Constitucional e membro do Grupo de Pesquisa de Processo Civil, Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos (GEPC-UnB).

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