Opinião

Reforma tributária: texto, contexto e a valsa de Ano Novo

Autores

  • Celso Alves Feitosa

    é advogado especialista em Direito Tributário consultor jurídico sócio fundador de Alves Feitosa Advogados Associados ex-juiz do TIT-SP (1988 a 2015) e ex-conselheiro no Conselho de Contribuintes/Carf (1987 a 2004).

  • Walter Alexandre Bussamara

    é advogado e sócio do escritório Bussamara e Silveira Advogados mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da PUC-SP

11 de novembro de 2023, 7h00

Uma vez aprovado o texto da Proposta de Emenda à Constituição [PEC] nº 45Reforma Tributária —, agora, com modificações pelo Senado, avalizado por sua CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), o que mais esperam sobretudo os empresários e entes políticos da nação é uma célere reavaliação sua pela Câmara dos Deputados por conta das alterações feitas ao texto-base outrora lá aprovado considerando ser a completa concordância entre as duas casas do Congresso Nacional condição sine qua non para derradeira validação da proposta.

Debates de várias ordens a respeito florescem, de forma ininterrupta na tentativa de cada setor da economia e entes federados buscarem até o último minuto adequar o quanto (a ser) aprovado aos seus reais interesses na esfera tributária. Ou seja, garantirem “a sua fatia do bolo, preferencialmente, doce”. Aliás, como bem afirmado pelo senador Rogério Marinho (PL-RN), “Quem teve mais condição de gritar, de brigar, de fazer o lobby funcionar está contemplado com inserções dentro do projeto em tela”.

A questão de incorporar tantas reivindicações à proposta agradando a gregos e a troianos, de fato, tem sido tarefa mais árdua do que a própria construção originária do projeto. Algo, esperado.

Mudanças foram feitas pelo Senado Federal no texto-base antes aprovado, valendo destacar a ampliação do leque de exceções com tributação mais vantajosa, além da ampliação do cashback obrigatório (devolução do imposto) também em meio ao consumo de gás de cozinha por famílias de baixa renda, o que antes se via previsto apenas para o consumo por elas de energia elétrica.

No campo das isenções tributárias, da alíquota zero, dos benefícios fiscais e das imunidades, com alguns desses pontos inseridos originariamente na proposta pelo próprio Senado, merecem ênfase as isenções atinentes à aquisição de automóveis por pessoas com deficiências inclusive portadoras do espectro autista e por taxistas. Já quanto à alíquota zero, vale citar a aquisição de medicamentos e aparelhos médicos pela Administração Pública e entidades de assistência social sem fins lucrativos. Quanto a demais benefícios, registre-se a sua concessão a montadoras que destinem investimentos em veículos movidos à álcool ou, a manutenção da concessão de créditos tributários para produção de veículos elétricos, cujas fábricas sejam aprovadas ou implantadas até dezembro de 2025. Em tema de imunidade, ressalte-se que passará a alcançar também o IPVA em face de embarcações que exerçam atividades econômicas.

No que tange à cesta básica nacional, pós análise da Câmara Alta do Congresso, será repartida em duas situações: 1) uma, social, composta de alimentos de primeira necessidade a serem definidos sem qualquer incidência de impostos, e, 2) outra, estendida, mais “geral”, com tributação reduzida e devolução (cashback) para famílias de baixa renda.

Ganha destaque, ainda, para calafrios do Ministério da Fazenda, a viabilização da redução em 30% para profissionais liberais (cf. LC), no que tange à alíquota padrão para prestadores de serviços, a exemplo de outros setores, ora ampliados pelo Senado Federal, prestigiados com a possibilidade de tributação em 60% de sua alíquota geral, como educação, saúde, medicamentos, acessibilidade, alimentos destinados ao consumo humano, produtos de higiene pessoal, dentre outros âmbitos.

A conformação atual do texto ainda prevê uma trava para a cobrança de impostos sobre o consumo, impondo limite a não ser ultrapassado.

Por outro lado, vale refletir se as pessoas políticas (26 estados e DF) ainda terão espaço e tempo para continuarem pugnando pelo fim de um Conselho Federativo ao menos com a força decisória que lhe foi conferida, afinal de contas a ele caberá justamente a divisão da arrecadação do novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) entre os insaciáveis entes políticos.

Do lado dos contribuintes, a ampliação de exceções para uma tributação privilegiada pode gerar problemas, já que aqueles que dela ficarem de fora provavelmente pagarão a conta final, a compensar uma equação aritmética de fato obscura.

A proposta de reforma tributária, portanto, da forma como ora aprovada em meio a tantos atropelos, mudanças de última hora, pressão de todos os lados, pensada por quem não é efetivamente da área, ou seja, fortemente trôpega em discussões verdadeiramente especializadas, lança-nos aos “dias de luta, dias de glória” [Charlie Brow Jr.] em que os partícipes desta grande “convenção desorganizada” veem-se individualmente empenhados levantando a todo custo bandeiras próprias de seus interesses para, de alguma forma, conseguirem cravá-las gloriosamente no solo fértil da derradeira reforma, a serem acalentados pelo novel sistema tributário nacional por vir.

Esse caos estrutural da proposta, por certo, é um grande e anunciado preço a ser pago por se tentar erguer uma reforma tributária sem reverberação prévia suficiente por parte do mundo técnico-jurídico-tributário que, agora, bate cabeças para bem compreender o incerto. A questão preocupa.

Mais de  três décadas de expectativas (tomando-se como parâmetro apenas a CF/88) para uma reforma tributária simplificadora do sistema tributário estão visivelmente cedendo lugar à uma proposta que poderá lançar sobre a nação, em sua conformação presente, um apanhado rebuscado de normas indigestas, incoerentes, sem interconexão, e, discutíveis (inconstitucionais), que, longe de gerar simplificação e maior eficiência ao sistema tributário nacional, com maior geração de investimentos e desenvolvimento econômico, mais se aproximará a um possível caos e desequilíbrio no plano operacional tributário que desembocará, por certo, num já enfastiado Judiciário, a colocar em risco os próprios fins que legitimariam uma reforma intentada.

Algumas reflexões inquisitivas minimamente essenciaissobre o momento presente valeriam aqui, nesse contexto, algum compartilhamento:

1) trará o texto por ora aprovado, as desejadas simplificações, estabilidades e transparências em meio à atividade arrecadatória de tributos, além do fim de desigualdades regionais a despeito do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional?

2) seria crível não se ter, ainda, alíquotas previamente definidas dentro desse novo “sistema”?

3) seria prudente uma Lei Complementar dispor praticamente sobre todas as questões dependentes de regulação por lei?

4) o que dizer, ainda, de um Comitê Gestor que ditaria o futuro de estados e municípios, até então acostumados ao estofo da autonomia?

5) passaria tal Comitê Gestor a posto mais alto do que o dos próprios Poderes de Estado (executivo, legislativo e judiciário)?

6) a tão almejada simplicidade seria garantida em meio a tantas necessidades de regulamentação das alterações via lei complementar e leis correlatas?

7) estaríamos diante de ruptura do pacto federativo (autonomias), impassível de alteração até mesmo por emenda à Constituição, por ser cláusula pétrea constitucional? e,

8) o número ampliado de exceções de setores beneficiados com tributação mais vantajosa cumprirá a meta da neutralidade da reforma tributária já que os abatimentos concedidos certamente precisarão ser compensados com uma alíquota geral talvez maior para os demais produtos e serviços em relação à já estimada alíquota de 27%?

Questões que, sinceramente, não vemos com tanta positividade. De uma forma geral, porém, eis o que temos para o momento:

a) Novos tributos (sistema IVA dual + IS): PIS/COFINS, IPI, ICMS, e, ISS são substituídos por: 1) Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS federal (englobando PIS/Cofins/IPI), 2) Imposto sobre Bens e Serviços – IBS subnacional – competências estadual e municipal (unindo ICMS e ISS) e, 3) Imposto Seletivo (IS) federal;

b) Incidências: CBS/IBS: terão incidência sobre operações e importações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou sobre serviços (ou seja, mesmos fatos geradores). IS: terá incidência sobre a produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, definidos em lei, com finalidade extrafiscal;

c) Alíquotas: CBS/IBS: diferenciadas conforme bens e serviços específicos;

d) Base de cálculo: CBS/IBS: ampla e calculadas “por fora”, não podendo integrar a sua própria base;

e) Redução de alíquotas: CBS/IBS: possibilidade de redução de alíquota em determinados serviços e produtos;

f) Local de Incidência: Tributação será no destino/consumo. Critérios para definição de destino definidos em lei complementar;

(g) Gestão compartilhada – Comite Gestor: IBS: com gestão compartilhada entre Estados, DF e municípios

h) Regimes específicos de tributação: Combustíveis e lubrificantes; instituições financeiras, imóveis, planos de saúde; compras governamentais, cooperativas; turismo;

i) Tratamentos especiais: Manutenção da Zona Franca de Manaus e do SIMPLES; crédito presumido aos adquirentes dos produtos rurais de pequeno produtor rural pessoa física;

j) Benefícios fiscais: Regimes diferenciados e de alíquotas reduzidas serão instituídos por lei complementar e deverão ser uniformes em todo o território;

k) Cashback: Mecanismo de devolução dos tributos a famílias de baixa renda, a ser disciplinado em legislação infraconstitucional;

l) Cesta Básica Nacional de Alimentos: Cesta básica sob duas situações, uma sem tributação e outra, com tributação reduzida;

m) Incentivos ICMS: Incentivos convalidados serão mantidos até 2032 (LC 160/17);

n) Créditos: Possibilidade de utilização de saldos homologados para pagamento do IBS ou restituição. Possibilidade de concessão de créditos presumidos da CBS e IBS;

o) Regras de transição: CBS/IBS entram em vigor – teste, a partir de 2026, com alíquota federal de 0,9% e subnacional de 0,1% compensável com PIS/Cofins. Em 2027, ocorrerá a extinção do PIS/COFINS e IPI com entrada do CBS e redução a zero das alíquotas do IPI (exceto Zona Franca de Manaus). De 2029-2032:  Entrada proporcional do IBS e extinção escalonada do ICMS e do ISS. Em 2033, serão extintos o IPI, ICMS e o ISS com Vigência integral do novo sistema;

p) IPVA: Exceções à incidência do IPVA em relação a tratores, máquinas agrícolas etc. Incidência sobre embarcações e aeronaves. Imunidade diante de embarcações que exercem atividades econômicas. Progressividade sobre veículos em razão do impacto ambiental;

q) ITCMD: Progressivo com ampliação da base de tributação sobre heranças. Imunidade em determinadas doações. Sobre bens e heranças no exterior haverá regras provisórias até edição de lei complementar para sucessões abertas até promulgação da EC;

r) Zona Franca de Manaus: Serão definidos mecanismos de manutenção do diferencial da região em termos competitivos;

s) IPTU: A base de cálculo do IPTU poderá ser atualizada pelo Poder Executivo (decreto), a partir de critérios gerais previstos em lei municipal; e,

t) Simples Nacional: Gerará crédito ao adquirente de bens e serviços de quem esteja sob tal regime. Inclusão do IBS e CBS no regime de recolhimento unificado.

Tamanha revolução, porém, não será de um dia para o outro. E sua implementação não sairá barata. As chamadas regras de transição da reforma, acima referidas, têm, de fato, importância suprema diante do cenário que dela decorrerá e o tempo alargado para que ela efetivamente se implemente, praticamente 10 anos, da presente data, trará custos de várias ordens aos seus partícipes, entendendo-se, como tais, os contribuintes de impostos, sobretudo, custos administrativos e fiscais.

Segundo a multiplataforma de notícias de negócios Bloomberg Línea [1], tais custos não serão, assim podemos dizer, para amadores. Segundo estimativas, mais de R$ 200 bilhões em gastos a cada ano serão necessários para sustentar “equipes de tributaristas, softwares e assessoria jurídica”, isso sem considerarmos os litígios em massa que, provavelmente, da reforma surgirão, além dos custos de reorganização dos chamados compliances fiscais diante de tantas alterações legislativas.

Quanto ao longo período de transição, em termos objetivos das mudanças vindouras, a Assessoria Especial de Comunicação Social do Ministério da Fazenda traz de forma didática sua dinâmica temporal: 1) uma etapa preparatória e, 2) outra, de fato, de transição, com início em 2026, finalizando em 2033, quando passará a viger de forma plena, então, o novel sistema tributário brasileiro. Basicamente, haverá um período de um ano para teste (2026), uma transição mais célere para a CBS (2027) e uma gradual para o IBS (2027 a 2033).

Ou seja, trata-se de transição longa, e, pensando-se estar sendo ela inserida num país cujas operações tributárias já vêm naufragando em mares de custosa burocracia, faz-se legítimo, para o novo modelo, agora, da atual proposta de reforma, repleto de lacunas, obscuridades e já, de uma pré-guerra entre os vários setores econômicos em busca de salvação, um sentimento de verdadeiro temor daquilo que, de fato, estará por vir, afinal de contas anos e anos de “pensamentos e omissões” sobre a reforma se transformaram em repentina pressa, a todo custo, sem efetivos debates, sem técnica, e sem critérios legítimos de transformação.

E, somente uma década após aprovação do texto da reforma [sim, mais uma década por vir], é que o novel sistema tributário nacional estará implantado, sendo sete anos dela, de total malabarismo fiscal por parte dos setores econômicos que terão de manejar, o “velho” e o “novo”, juntos, até total decantação de uma forma única de contabilização de seus deveres tributários.

Quantas incertezas jurídicas e econômicas teremosA que custo tudo isso se sustentará? Ou, “o quanto isso refletirá no desenvolvimento do país”? Só o tempo responderá. Consignamos aqui que não somos contrários à uma reforma tributária, mas, desde que deixasse o sistema de fato mais simplificado e menos custoso em burocracias e obrigações acessórias, em paralelo a necessários cortes de gastos, o que seria possível e alcançável em nível meramente legislativo e não constitucional (CARRAZZA[1]), além de não corromper regras originárias constitucionais (federalismo e competências autônomas dos estados, municípios e DF), como parece ocorrer, em favor da UF, com seu cheque em branco via IBS.

A situação não é tão translúcida como quis fazer parecer o presidente do SenadoRodrigo Pacheco, ao asseverar que a reforma “se impôs porque o Brasil não podia mais conviver com o atraso”, ou, o que é pior, que o “amadurecimento do debate foi fundamental para que a população, as empresas, os entes federados e os agentes públicos pudessem entender a necessidade da reforma”.

Esse sentimento, talvez, exista somente entre os subscritores da proposta aprovada, pois vis-à-vis com a realidade, nossa situação estaria mais para a famosa e septuagenária valsa de “Ano Novo” [“adeus, ano velho, feliz ano novo”], de David Nasser e Francisco Alves, numa transição do “velho” para o “novo”, porém, que durasse, aqui, nada mais, nada menos, do que dez longos anos previstos, a lhe extrair toda e qualquer sorte de significação e segurança jurídica: “Adeus ano velho…e, quem viver verá”. E isso tudo, sem contar com a própria reforma do imposto de renda que ainda se seguirá.

Que o manicômio tributário de Alfredo Becker não se instaure.


https://www.bloomberglinea.com.br/brasil/por-que-a-reforma-tributario-nao-tera-impacto-amplo-para-empresas-tao-cedo/

[1] “Eu sou contrário a uma reforma constitucional tributária radical. Eu sou favorável a uma reforma tributária tópica, mais até em nível legislativo que em nível constitucional. Alguém poderia me objetar dizendo que o sistema tributário não está funcionando a contento. Eu até concordo, mas, em rigor, penso eu, não por culpa da Constituição, mas por culpa dos seus aplicadores.” Entrevista com Monitor Mercantil. 23/5/23. https://monitormercantil.com.br/a-visao-do-tributarista-roque-carrazza-sobre-a-reforma-tributaria/)

Autores

  • é advogado especialista em direito tributário, consultor jurídico, sócio-fundador de Alves Feitosa Advogados Associados, ex-juiz do TIT-SP (1988 a 2015) e conselheiro no Conselho de Contribuintes/Carf (1987 a 2004).

  • é advogado e sócio do escritório Bussamara e Silveira Advogados, mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da PUC-SP

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