Opinião

Projeto de regulamentação da reforma tributária é extremamente proveitoso

Autor

  • Yann Santos Teixeira

    é mestre em Teoria do Direito pela New York University School of Law. Graduado em Direito pela UnB (Universidade de Brasília) com formação complementada por graduação sanduíche na Justus-Liebig Universität Gießen. Graduando em Filosofia pela UnB. Consultor e advogado.

2 de maio de 2024, 6h31

A discussão relativa aos universais e aos particulares configura uma constante nas reflexões humanas – Platão [1] apresentou nas palavras de Sócrates a Teoria das Ideias; Aristóteles [2], por sua vez, criticou o seu professor suscitando que o universal configura uma qualidade comum aos respectivos particulares. Em 24 de abril de 2024, o Poder Executivo Federal apresentou projeto de lei complementar para regulamentar a EC nº 132/2023, a conhecida reforma tributária.

Muitas dúvidas ainda pairam sobre o tema, especialmente em relação a como será a forma de tramitação do projeto (relatoria, regime etc.). Contudo, ainda que se trate de tema relevantíssimo, uma vez que demanda reflexões acerca do processo legislativo em nosso arranjo institucional e a devida participação da sociedade, esse aspecto não será abordado neste breve artigo.

Noutro plano, o objeto da presente reflexão é exatamente avaliar se o Projeto de Regulamentação da Reforma Tributária (ao qual vamos [3] nos referir como “regulamentação” [4]) consubstancia um caso particular do manicômio tributário brasileiro.

Manicômio: significado e impactos

Em relação ao universal manicômio tributário, a expressão foi trazida ao senso comum [5] do Direito Tributário nacional por Alfredo Augusto Becker [6] a partir da doutrina italiana acerca da tributação [7]. Explorar a obra de Becker em breve artigo seria, no mínimo, temerário. De toda forma, em síntese, o autor nos presenteou com reflexões sobre a tributação que envolvem tanto axiomas que adotamos de forma irrefletida ao examinar o fenômeno até mesmo de hermenêutica jurídica. Contudo, o importante para o presente texto diz respeito à sua reflexão acerca do contexto jurídico que envolve a tributação, em que as normas tributárias podem se tornar tão complexas que causam um cenário de inequívoca incompreensão e iniquidade [8], com elevados gastos de conformidade tributária – isto é, ao cenário de manicômio tributário.

Os custos decorrentes de ambiente de extensa produção normativa – a qual, inevitavelmente, causa divergências interpretativas – são deveras elevados. Nesse sentido, o relatório Contencioso Tributário no Brasil 2020, do Insper, apontou que o contencioso tributário judicial e administrativo no Brasil alcançava 75% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2019 [9].

Spacca

Pode parecer conflitante que alguém que trabalha nesse sistema complexo suscite que se deve torná-lo mais claro e simples. Contudo, o dispêndio de esforços e as discussões que se perdem para definir qual caminho menos propenso de gerar riscos fiscais não são benéficos para a economia. As pessoas dispostas a promover atividade econômica poderiam focar mais seu tempo em refletir sobre produtos e serviços disruptivos, como aumentar seu market share, ampliando sua operação e correspondentes funcionários. Contudo, por vezes reuniões acerca de expansão de negócios se voltam apenas para aspectos tributários que, ainda que relevantes e interessantes (ao menos para quem escreve este artigo), não deveriam ditar as pautas de investimento em nosso país.

Conteúdo do projeto

Ao nos depararmos com a regulamentação, observa-se um texto com 499 artigos, os quais agregam mais uma centena de incisos, parágrafos e alíneas. Há igualmente 24 anexos, que tratam desde lista de produtos que estão abarcados em regimes especiais até composição das alíquotas e distribuição de receitas do Simples Nacional.

Estaríamos, assim, diante da reprodução do cenário de manicômio tributário? Para responder à pergunta, avaliar-se-á: (1) o que o projeto visa suplantar (passado); e (2) o que objetiva alcançar (futuro).

No tocante ao que visa que se torne o passado, temos as normas que regulamentam os tributos sobre o consumo em nosso país. Nesse sentido, o projeto objetiva regulamentar o regime que suplantou cinco tributos (contribuição para o PIS/Pasep, Cofins, IPI, ICMS e ISSQN) para sistema de três tributos (IBS, CBS e IS), com redução da competência legislativa dos diferentes entes federativos, assumindo com premência a noção de norma tributária nacional.

Em síntese, o caso do ICMS ilustra o objetivo, notadamente ao invés de se ter 27 Regulamentos do ICMS no âmbito dos estados e do Distrito Federal, haverá uma Lei Complementar regulamentando a matéria. Ao examinarmos a regulamentação, a resposta é que de fato está consonante com seu objetivo de suplantar o sistema passado, uma vez que apenas o RICMS de São Paulo possui 606 artigos (sem contar as normas das disposições transitórias) e 22 anexos.

Em relação ao futuro, verifica-se que a regulamentação procurou tratar de forma extensa as situações de referência (pense em operações-padrões) e os regimes especiais (as operações que estão sujeitas a regime diferenciado, a exemplo dos serviços profissionais). Inclusive, trata dos parâmetros para que o debate acerca da viabilidade e do interesse dos regimes especiais seja promovido, o que se revela algo positivo, pois aponta para um interesse prospectivo da regulamentação. Assim, o projeto aponta que está em linha com o paradigma de efetiva mudança de um sistema confuso e que, portanto, gera iniquidades para um sistema eficiente.

Boas intenções

Desse modo, não nos parece que a regulamentação foi redigida sob estado mental que se direciona para o manicômio tributário. Pelo contrário, há inequívoca tentativa de consolidar a legislação em um documento, o que é extremamente proveitoso. Inclusive, nesse sentido, entende-se que uma reflexão importante será a possibilidade de o projeto de lei complementar que será relacionado a aspectos específicos de gestão e administração do IBS ser aglutinado ao texto projeto de regulamentação já apresentado.

Por fim, faltou abordar um aspecto temporal – é claro, o presente. Precisar o que configura o agora sempre foi uma questão espinhosa [10]. Em todo caso, para fins de nossa reflexão, adota-se como o presente a tramitação da regulamentação enquanto proposta legislativa. Nesse sentir, entende-se que duas medidas são prementes:

  • Promover uma revisão da redação dos dispositivos a partir de uma leitura não-dogmática do texto. O objetivo é que o texto fique mais compreensível para o público, até porque da leitura do texto se verifica que há ausência de clareza em diversos trechos – por exemplo, se está delimitando requisitos, se está ampliando outras situações de regime especial
  • Apresentar, ao longo da tramitação do projeto, como será a operacionalização da tributação sobre o consumo. É nesse momento que as dúvidas interpretativas surgem, os problemas de execução aparecem e as soluções são desenhadas. O momento de regulamentação demanda visualizar o real, passou o tempo de idealizar o sistema, devendo apresentar como será executado.

[1] Em especial, o Livro VII da República (§514-541): PLATÃO. A República. 9 ed. Tradução: Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.

[2] ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução. Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2006.

[3] Adota-se a primeira pessoa no presente texto porque o autor, assim como o leitor, está imerso nessa monumental alteração político-social que configura a reforma tributária. Desse modo, parece-nos mais adequado adotar a citada regência para afastar qualquer pretensão de verdade absoluta das reflexões aqui apresentadas.

[4] Ao finalizar o presente texto havia acabado de ser atribuída numeração ao referido Projeto de Lei Complementar, notadamente PLP nº 68/2024.

[5] Referência à crítica de Warat, que explorando a absorção da teoria de Kelsen, demonstra a perda das singularidades teóricas quando sua aplicação é realizada de forma dissociada às premissas e ao contexto que aquela se referia. WARAT, Luís Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In: Revista sequência, v. 3, n. 5. Santa Catarina: Universidade Federal de Santa Catarina, 1982.

[6] Conferir: BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 7 ed. São Paulo: Noeses, 2018, p. 6.

[7] Becker utiliza outros termos para se referir ao estado e à prática que gera o manicômio tributário. Ainda que possa ser criticável como anacronismo, prefere-se não reproduzir os referidos termos por não representarem o pleno exercício da alteridade.

[8] “Se fossem integralmente aplicadas as leis tributárias, todos os contribuintes seriam passíveis de sanções, inclusive de cárcere e isto não tanto em virtude da fraude, mas principalmente pela desorientação que o caos da legislação tributária provoca no contribuinte.” BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 7 ed. São Paulo: Noeses, 2018, p. 9.

[9] INSPER. Contencioso tributário no Brasil: Relatório 2020 – Ano de referência 2019. Insper: São Paulo, 2021, p. 7.

[10] Sobre o tema, conferir: BERGSON, Henri. O pensamento e o movente: ensaios e conferências. Tradução: Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

Autores

  • é mestre em Teoria do Direito pela New York University School of Law, graduado em Direito — com formação complementada por graduação sanduíche na Justus-Liebig Universität Gießen — e em Filosofia pela UnB, aluno especial do mestrado em Ciências Contábeis da UnB, consultor e advogado.

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