Direitos Fundamentais

Telemedicina e direito à proteção da saúde no cenário pós-Covid

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29 de maio de 2023, 8h46

Dentre os diversos legados — não necessariamente todos negativos — da tragédia da pandemia da Covid-19, que impactou o mundo de modo traumático, inclusive o Brasil, onde se mostrou, por uma série de razões que aqui não cabe inventariar e desenvolver, particularmente letal, deve-se salientar que houve, também entre nós, um incremento considerável no emprego da assim chamada telessaúde (ou telemedicina), tema que nos últimos anos e também em escala global, tem ganho importância cada vez maior.

A crescente necessidade de utilização dos recursos da telemedicina, desvelou, por um lado, uma série de imperfeições e inconsistências do SUS (Sistema Único de Saúde), no que diz respeito à cobertura das necessidades e expectativas da população brasileira, notadamente em lugares mais remotos, mas também em virtude das restrições impostas em virtude dos altos níveis de contágio do assim chamado coronavírus.

Por outro lado, evidenciou-se, de modo nítido, a existência de injustificável vácuo legislativo, portanto, de instrumental regulatório atualizado e adequado nesse domínio, em especial no concernente às possibilidades e limites da telemedicina.

De fato, segundo a pesquisa Distrito Healthtech Report 2022[1], o Brasil já conta com 1023 healthtechs, que auxiliam na criação de soluções tecnológicas, tornando factível o acesso à saúde (em termos preventivos e terapêuticos) para segmentos significativos da população. Tais healthtechs, por sua vez, atuam em segmentos distintos, superando as expectativas pré-pandêmicas do mercado numa proporção de 80% em comparação com o cenário nacional de 2016, gerando, ademais, uma estimativa de faturamento de milhões de reais para esse setor.

À guisa de ilustração[2], no Panorama de Clínicas e Hospitais 2023[3], hoje 80% dos usuários brasileiros afirmam que fazem uso do aplicativo Whatsapp para a confirmação de consultas, seguindo-se a utilização do telefone (69%), SMS (29%) e e-mails (20%) que, costumam ser empregados em diversas etapas da jornada do paciente, cada vez mais caracterizada como uma experiência digital.

Pode-se dizer, com isso, que o sistema (público e privado) de saúde no Brasil, seguindo assim a tendência mundial, tem investido progressivamente na prevenção, predição, personalização e participação, destacando-se pelo emprego das novas tecnologias, especialmente pela inserção gradual e firme no mundo digital. Tais experiências, apenas para ilustrar o fenômeno, vão desde o simples agendamento, passando pelas novas condições de pagamento de consultas e solicitação de exames, até a telemedicina propriamente dita, que já soma 25% dos atendimentos médico-hospitalares no país [4].

Em se tratando de regulamentação da telemedicina, destaca-se o teor da Lei 13.979 de fevereiro de 2020, que, em razão do enfrentamento emergencial da pandemia, previu e tratou dos pontos centrais desse tema. Foi, contudo, somente em 2022, que o CFM (Conselho Federal de Medicina) editou a Resolução 2314 que define e regulamenta a telemedicina, como forma de serviços   médicos   mediados   por   tecnologias de informação e de comunicação (TIC)[5], ancorando-se na declaração da WMA (World Medical Association) acerca dos princípios éticos que orientam tais aplicações.

A Resolução do CFM impõe alguns deveres aos médicos para o emprego da telemedicina, que incluem, dentre outros, o de possuir uma assinatura digital, a capacitação no manejo de sistemas tecnológicos, uma formação em tele propedêutica e em bioética digital. A Resolução tem como premissa que o atendimento presencial não pode ser preterido em face da telemedicina que, em síntese, deve ter caráter complementar. A Resolução, por sua vez, define a telemedicina em algumas modalidades de atendimentos médicos, tais como: tele consulta, teleinterconsulta, telediagnóstico, tele cirurgia, tele monitoramento ou tele vigilância, tele triagem e tele consultoria.

Há, no entanto, pontos cegos não regrados pela resolução e pela legislação, tais como: a) as regras e diretrizes quanto aos limites do dever de confidencialidade no ambiente digital; b) a obrigatoriedade de transparência quanto ao uso de estratégias de cibersegurança, sobretudo no que se refere aos prontuários clínicos, em especial no que toca aos dados pessoais sensíveis, uma vez que no Brasil já há o reconhecimento do direito à proteção de dados pessoais tanto na Constituição, sem prejuízo das disposições aplicáveis da LGPD (Lei geral de proteção de dados pessoais).

Spacca
No apagar das luzes do ano de 2022, em sintonia com a adensada digitalização dos setores público e privado,  foi promulgada a Lei 14.510, que disciplina a prática de telemedicina, abrangendo todas as profissões regulamentadas pelos órgãos brasileiros competentes, apontando uma principiologia nuclear que inclui, v.g., a dignidade do profissional de saúde, a preservação da autonomia do paciente e do profissional de saúde, a responsabilidade digital, a centralidade do TCLE (termo de consentimento livre e esclarecido), a promoção da universalização do acesso dos brasileiros às ações e aos serviços de saúde, o direito à recusa ao teleatendimento e a garantia da opção à modalidade presencial, dentre outros.

Outro ponto a destacar, ainda no contexto dos recentes desenvolvimentos em termos da regulação e regulamentação legal e infralegal da telemedicina no Brasil, é a necessidade da observância das restrições quanto ao âmbito das atribuições legais do exercício de cada profissão na área da saúde.

À vista do exposto, o que se pode constatar é que a despeito de se estar apenas ainda numa fase embrionária do desenvolvimento da telemedicina e de todas as suas potencialidades no Brasil, o fato é que já foram dados passos importantes. Por outro lado, os recursos tecnológicos e instrumentos manejados no âmbito da medicina, dependem de uma infraestrutura correspondente que ainda está longe de ser adequadamente disponibilizada, como dão conta, entre outros indicadores, os elevados níveis de exclusão digital ainda vigentes no nosso país, ainda que não se trate de um problema exclusivamente brasileiro.

Além disso, merece cuidado, também no que diz respeito à telemedicina, a tensão que se verifica no campo do uso das tecnologias (em especial, mas não apenas das "novas" tecnologias digitais) e o Direito, com destaque para os direitos humanos e os direitos fundamentais.

Nessa perspectiva, a inovação, na condição de dever constitucional (v. artigo 218 e ss., CF) que vincula o poder público e os atores privados, num regime de responsabilidade compartilhada, mas também na sua forma de direito fundamental implicitamente consagrado, pode, como se sabe, operar como meio de concretização — portanto, de proteção e promoção — da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, como é o caso do direito à vida e do direito à saúde, quanto pode impactar negativamente o âmbito de proteção de determinados direitos, a exemplo dos direitos de personalidade (aqui com destaque para a privacidade e intimidade, autodeterminação informacional e proteção de dados pessoais), mas também — e entre outros — o direito de igualdade como proibição de discriminação, haja vista o perfilhamento das pessoas (inclusive profissionais da saúde) que se valem dos recursos da telemedicina.

Ainda nesse contexto, não se poderia deixar de referir os riscos tanto da violação das exigências de um devido processo informacional, quanto do princípio (e dever) da separação informacional de poderes, em face da possibilidade (que, aliás, já corresponde em boa parte à realidade) de que também no setor da saúde venha a aumentar a já considerável concentração de poder informacional, seja na esfera do setor privado, seja pelo poder público.

Ao fim e ao cabo, a despeito de tantas questões em aberto e que carecem ainda de muita atenção, reflexão e desenvolvimento, seja no campo do Direito, seja no concernente a outros ramos do conhecimento, mas também na esfera da política e das políticas de Estado e de governo, em especial, mas não só, no campo da saúde, esperamos que o presente texto tenha pelo menos auxiliado a esboçar alguns aspectos relacionados ao tema e às suas implicações — positivas e negativas — no campo dos direitos humanos e fundamentais.

 


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