Parceira com MP-RJ

Com acordo de Élcio Queiroz, PF tenta superar passado problemático de delações

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26 de julho de 2023, 19h15

O acordo de colaboração premiada do ex-policial militar Élcio Queiroz — no qual ele confessa ter participado do assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol) e do motorista Anderson Gomes — foi firmado por meio de uma incomum parceria entre órgãos, no caso, a Polícia Federal e o Ministério Público do Rio de Janeiro.

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Vereadora Marielle Franco foi assassinada em março de 2018 no Rio de Janeiro
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A delação de Queiroz é mais uma de grande repercussão conduzida pela Polícia Federal. Outras cooperações de figurões feitas pela corporação geraram muito barulho, mas tinham pouca substância — a do ex-governador do Rio Sérgio Cabral foi anulada pelo Supremo Tribunal Federal. Com a morte da "lava jato", o órgão tem a chance de mostrar que pode conduzir colaborações relevantes e produzidas sem abusos.

Queiroz e o ex-policial militar Ronnie Lessa são acusados de assassinar Marielle Franco e Anderson Gomes em 2018, no Rio de Janeiro. Os dois estão presos preventivamente desde 2019 e serão submetidos ao tribunal do júri pelos homicídios.

Na delação, Queiroz confessou participação no crime, afirmando que dirigia o carro utilizado nos assassinatos, e declarou que Ronnie Lessa foi autor dos disparos que mataram Marielle e Anderson, além de dar outros detalhes do atentado.

As investigações sobre a morte da vereadora vêm sendo conduzidas pelo MP-RJ e pela Polícia Civil do Rio. Em setembro de 2019, antes de deixar o cargo, a então procuradora-geral da República Raquel Dodge pediu a federalização das apurações. Ela argumentou que, passados à época 18 meses do cometimento dos crimes, a polícia do Rio ainda não teria dado respostas satisfatórias sobre o crime, o que poderia fazer com que o Brasil fosse responsabilizado perante organismos e cortes internacionais de direitos humanos. Raquel também ressaltou que milícias teriam influência nas investigações.

O Superior Tribunal de Justiça negou o pedido de federalização em 2020. A corte apontou que os assassinatos de Marielle e Anderson são uma grave violação a direitos humanos e podem fazer com que o Brasil responda internacionalmente. Porém, os ministros afirmaram que não há indícios de que as instituições do Rio de Janeiro não tenham capacidade de desvendar o crime e punir seus autores. Pelo contrário: os inquéritos, denúncias e diligências apontam que a Polícia Civil e o Ministério Público fluminenses estão empenhados em resolver o caso, segundo o STJ.

Após quatro anos sem novidades na investigação, o ministro da Justiça e Segurança Pública do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Flávio Dino, estabeleceu a resolução do caso como uma de suas prioridades. Em fevereiro, ele se encontrou com o procurador-geral de Justiça do Rio, Luciano Mattos. Na reunião, Dino ofereceu apoio federal a investigações no estado, com destaque para as estratégias de combate ao crime organizado e para a identificação do mandante do assassinato de Marielle.

"Vamos trabalhar em parceria, Ministério da Justiça, Polícia Federal e Ministério Público do Rio de Janeiro, visando ao andamento e à conclusão das investigações", afirmou Flávio Dino na ocasião.

No mês seguinte, Luciano Mattos recebeu visita do superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro, o delegado Leandro Almada. No encontro, trataram da cooperação entre as duas instituições em investigações e discutiram estratégias relacionadas ao inquérito que apura os assassinatos.

A parceria resultou no acordo de colaboração premiada de Élcio Queiroz, firmado conjuntamente pela Polícia Federal e pelo Ministério Público do Rio. O arranjo não é comum. Geralmente, o termo de delação é celebrado por apenas uma instituição — que, em geral, é o MP, e não a polícia judiciária.

Em nota, o MP-RJ afirmou que, ao contrário do que foi noticiado, a colaboração de Queiroz não estabelece que ele não será submetido ao tribunal do júri. Até porque essa cláusula "feriria a própria Constituição da República, retirando dos jurados competência que ali lhes foi assegurada".

A promotoria também disse que o acordo — que está em sigilo — não estipula nenhuma redução de pena, "sendo certo que o colaborador cumprirá toda aquela que vier a ser fixada em futuro julgamento, respeitado o limite do artigo 75 do Código Penal, com redação vigente à época do crime". Ou seja, o tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade de Queiroz não pode ser superior a 30 anos.

Delação pela polícia
A Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013) permitiu que, além do Ministério Público, delegados de polícia façam acordos de delação premiada e peçam que o Judiciário diminua penas ou conceda perdão judicial a investigados.

Em abril de 2016, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu que o Supremo Tribunal Federal declarasse a inconstitucionalidade dos trechos do artigo 4º, parágrafos 2º e 6º, da Lei das Organizações Criminosas, que conferem à polícia judiciária o poder de firmar acordos de colaboração premiada.

Segundo Janot, a delação só pode ser firmada pelo MP, uma vez que é este órgão que detém o poder de mover ou não a ação penal. Além disso, o PGR opinou que a cooperação feita com a polícia viola o direito de defesa do acusado, pois aquela corporação não é parte do processo.

A Advocacia-Geral da União avaliou a questão de forma diferente. Em manifestação naquela ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5.508), a procuradora federal Maria Carla de Avelar Pacheco entendeu que a delação é só mais um meio de obtenção de provas. Por isso, seu uso pela polícia não pode ser impedido. Caso contrário, o combate ao crime organizado ficaria prejudicado.

Mesmo com a ADI em curso, a Polícia Federal firmou alguns termos de delação, como os com o publicitário Marcos Valério e o marqueteiro Duda Mendonça. Diferentemente das delações celebradas pelo Ministério Público, os acordos dos dois não estabeleceram benefícios. Os compromissos apenas determinaram que o juiz poderia, depois de ouvir o MP, conceder perdão judicial ou reduzir a pena em até dois terços, como previsto no artigo 4º da Lei das Organizações Criminosas.

A notícia de que a PF havia firmado acordos de delação premiada levantou dúvidas sobre a eficácia dessa transação, que, na "lava jato", vinha sendo conduzida apenas pelo Ministério Público Federal.

Por um lado, delegados afirmaram que essa forma de colaboração não difere da outra, e é prevista na Lei das Organizações Criminosas. Por outro, procuradores da República disseram que tal via não dá segurança jurídica ao criminoso confesso, pois não impede o MP de mover ação penal.

Em meio à disputa entre Ministério Público e polícias Federal e Civil, advogados cobraram que esses órgãos lutassem para que a Lei das Organizações Criminosas fosse reformada para incluir dispositivo estabelecendo que representantes das duas instituições participem das negociações de compromissos desse tipo.

Na visão deles, a medida diminuiria conflitos entre as corporações e aumentaria a segurança jurídica. Além disso, essa pacificação deixaria os delatores mais tranquilos por saberem que estão lidando com autoridades que trabalham em conjunto.

O Supremo, em junho de 2018, decidiu que a polícia pode firmar acordo de colaboração premiada com investigados. A corte, seguindo o voto do relator, o então ministro Marco Aurélio, considerou que a medida está de acordo com a Constituição e com as funções da polícia judiciária. Especialmente porque é o Judiciário que decide se o compromisso de colaboração tem validade ou não. Para o ministro Gilmar Mendes, por exemplo, o juiz pode reconhecer a colaboração do réu até mesmo sem acordo com o MP ou com a Polícia — já que cabe a ele conceder os favores da lei.

Entretanto, como o exercício da ação penal pública cabe ao Ministério Público, não há muitos benefícios que a polícia pode oferecer ao acusado. Dessa forma, esses compromissos seriam limitados e ineficazes, avaliaram especialistas.

Como a Constituição estabelece que só o MP pode mover ação penal pública, a polícia não participa da persecução penal. Sendo assim, a instituição não tem o que negociar. Além disso, o MP não pode ser obrigado a aceitar os termos de compromisso firmado entre polícia e investigado que lhe impeça de exercer seu poder de acusar, disseram advogados.

Conforme procuradores da República, a polícia poderia apenas dispor de pontos que titulariza, como a organização do andamento da investigação (perícias, depoimentos e outros procedimentos), eventual condução coercitiva, indiciamento, entre outros, mas jamais dispor da ação penal, da atribuição de penas e da forma de cumprimento delas.

Delação de Cabral
Com a colaboração premiada de Élcio Queiroz, a Polícia Federal tem a chance de deixar para trás um histórico problemático com o instrumento. Um caso emblemático é a delação do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral.

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Sérgio Cabral firmou acordo de delação com a PF após diversos anos encarcerado
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Preso de novembro de 2016 a dezembro de 2022 e condenado em diversas ações penais cujas penas somadas ultrapassam os 400 anos de reclusão, Cabral tentou por diversas vezes colaborar com a Justiça, até que a PF topou.

Em 2021, o delegado da PF Bernardo Guidali Amaral pediu ao STF a abertura de um inquérito contra o ministro Dias Toffoli, integrante da Corte, pelo suposto favorecimento a prefeitos fluminenses em troca de R$ 4 milhões. A iniciativa era baseada exclusivamente em relatos do ex-governador do Rio de Janeiro.

Logo, ficou claro que a delação do ex-governador não tinha substância. Na acusação contra Toffoli, por exemplo, ele sustentou que teria ouvido dizer que o ministro, quando atuava no Tribunal Superior Eleitoral, topou receber vantagem ilícita.

A informação foi desmentida por Hudson Braga, ex-secretário de Obras do Rio de Janeiro e que teria sido, na palavra do ex-governador, o intermediário nos supostos acertos com o ministro. Os trechos da delação que citavam Toffoli já haviam sido arquivados pela ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge, por falta de elementos comprobatórios contra o ministro do STF.

Na primeira tentativa de fechar um acordo de delação com o Ministério Público, Cabral chegou a enviar um lote de 20 relatos em que afirmava ter conhecimento de supostos crimes cometidos por autoridades e empresários. A proposta foi recusada pela franquia fluminense da "lava jato" porque os procuradores acreditavam que o político ocultava fatos e patrimônio.

Cabral então tentou fechar um acordo com a Polícia Federal e acabou tendo "mais sorte". A delação foi homologada pelo ministro Edson Fachin, relator da "lava jato" no Supremo. A PGR apresentou embargos de declaração, e o Plenário do STF anulou a homologação do termo.

Seguindo o voto de Fachin, relator do caso que voltou atrás quanto a sua decisão anterior, a Corte estabeleceu que, no caso de Cabral, a colaboração premiada firmada pela PF deveria ter se submetido à anuência do Ministério Público. A maioria dos ministros concluiu que havia ilegalidades no acordo de Sérgio Cabral.

Um dos problemas é que o ex-governador teria recebido cerca de R$ 550 milhões em propinas, porém apenas se comprometeu a devolver R$ 380 milhões na delação. A PGR argumenta que Cabral ainda estaria escondendo R$ 170 milhões.

Além das alegações da PGR, as delações de Cabral foram marcadas pela fragilidade probatória. O próprio ministro Dias Toffoli — alvo do delator — já havia arquivado 12 inquéritos envolvendo ministros do Tribunal de Contas da União, do Superior Tribunal de Justiça e deputados federais.

Em artigo publicado na ConJur, o advogado Aury Lopes Jr. escreveu que o caso do ministro Toffoli "remete a um elemento ainda mais estarrecedor: é uma delação de 'ouvi dizer'". "Ora, se a testemunha de 'ouvi dizer' (hearsay) deveria ser vedada, de proibida admissibilidade, o que dizer de uma delação a partir do que o 'delator-ouviu-dizer'? Além da absoluta falta de credibilidade e, principalmente, valor epistêmico, a questão já foi tratada pelo STF no Inquérito 4.244 e merece análise à luz dos últimos acontecimentos", sustenta. Outros especialistas ouvidos pela ConJur tiveram o mesmo estranhamento.

Delação de Palocci
Além de Sérgio Cabral, outra delação problemática firmada pela Polícia Federal é a do ex-ministro Antonio Palocci. O acordo foi firmado com a PF após recusa do Ministério Público Federal.

Agência Brasil
Sergio Moro divulgou delação de Palocci para prejudicar Haddad nas eleições de 2018
Agência Brasil

Mensagens trocadas por integrantes da força-tarefa da "lava jato" no Paraná indicam que Sergio Moro, ex-juiz da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, tinha interesse na celebração de certos acordos de colaboração, como o do ex-presidente da OAS Léo Pinheiro e o de Palocci. O intuito era ter fundamentos para condenar o ex-presidente Lula. Vale lembrar que juiz não pode participar das negociações de termo de delação.

Na delação, Palocci acusou Lula de corrupção. Às vésperas do primeiro turno das eleições de 2018, Sergio Moro levantou o sigilo de um dos anexos da delação. As informações foram usadas na campanha eleitoral para atacar o candidato do PT a presidente, Fernando Haddad, especialmente por seu oponente no segundo turno, Jair Bolsonaro — que venceu a disputa.

Até procuradores da "lava jato" consideraram que a divulgação do documento por Moro foi uma tentativa de influenciar as eleições.

O Conselho Nacional de Justiça pediu a Moro explicações sobre a publicidade da delação de Palocci. Em resposta ao CNJ, Moro afirmou que não 'inventou' a fala do ministro ou os fatos ali descritos. O ex-juiz afirmou ainda que não podia interromper os seus trabalhos apenas porque havia uma eleição em curso.

Quatro dias após o segundo turno das eleições, Moro aceitou convite do recém-eleito presidente Jair Bolsonaro (PL) para assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Em 2020, um inquérito concluiu que os únicos elementos de corroboração de um anexo da delação produzida por Palocci são notícias de jornais que, na coleta de provas, não se confirmam. Os anexos tratam de acusações em torno do Fundo Bitang — que envolvia pessoas como Lula, o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega e André Esteves (fundador do banco BTG), entre outros.

O episódio que ensejou o relatório da PF refere-se à suposta tentativa de petistas e empresários de "operar o Banco Central". A PF concluiu que esse episódio, narrado por Palocci, não aconteceu.

A "operação" do Banco Central teria ocorrido em meados de 2011: o então ministro da Fazenda, Guido Mantega, teria informado ao banqueiro André Esteves que, diferentemente da expectativa do mercado, a taxa Selic seria reduzida. O Comitê de Política Monetária (Copom), na reunião de 31 de agosto de 11, reduziu a Selic de 12,5% para 12%.

Para Palocci, o repasse dessa informação privilegiada teria feito a fortuna do fundo Bintang, administrado pelo BTG e cujo gestor é Marcelo Augusto Lustosa de Souza.

Após o depoimento de Palocci, a PF foi investigar se a narrativa dele se sustentava. Para tanto, ouviu os personagens citados pelo ex-ministro e colheu provas. Concluiu que não há motivos para a continuidade da persecução penal.

O relatório da PF afirma que as assertivas de Palocci, ao que tudo indica, foram retiradas de pesquisas na internet e não acrescentam elementos novos — apenas notícias de jornais. Notícias que não foram confirmadas pelas provas produzidas.

Os advogados de Palocci Tracy Reinaldet e Matteus Macedo divulgaram nota na época sobre o caso.

"É natural que investigados neguem o fato delatado, como já ocorreu em diversos inquéritos da operação Lava Jato. É importante dizer que há na investigação da PF prova pericial que comprova a veracidade da colaboração de Palocci. Além disto, existem outros fundos indicados pelo colaborador que ainda não foram investigados pela PF e que confirmam a versão do ex-ministro. De outro lado, os elementos de corroboração fornecidos por Palocci, como agendas e contratos, nunca tiveram sua autenticidade contestada. Pelo contrário."

Um outro episódio deixou ainda mais clara a fragilidade do acordo de Palocci. Um áudio gravado pelo fundador e ex-presidente da operadora de planos de saúde Qualicorp, José Seripieri Junior, mostra que Pedro, irmão do ex-ministro, antecipa detalhes da delação premiada. Diz que a acusação é mentirosa e, em resposta, oferece o contato do advogado "que pegou todas as informações".

A delação do ex-ministro vem sendo contestada por diferentes fontes. Palocci teria uma audiência com o atual juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, Eduardo Appio, para tratar do acordo firmado com a PF, mas o encontro foi cancelado por ordem do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

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