Opinião

Valor probatório da palavra do delator: delação por ouvir dizer?

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Vítor Paczek

    é doutorando e mestre em Ciências Criminais pela PUCRS e advogado integrante do escritório Aury Lopes Jr. Advogados.

12 de maio de 2021, 20h37

A recente notícia de que a Polícia Federal pediu ao STF a abertura de investigação contra o Ministro Dias Toffoli – com base na delação de Sérgio Cabral – novamente traz à discussão o valor probatório da palavra do delator e os limites, acertadamente impostos, pela Lei 12.850. Mas o caso em questão remete a um elemento ainda mais estarrecedor: é uma delação de ‘ouvi dizer’. Ora, se a testemunha de ‘ouvi dizer’ (hearsay) deveria ser vedada, de proibida admissibilidade, o que dizer de uma delação a partir do que o “delator-ouviu-dizer”? Além da absoluta falta de credibilidade e, principalmente, valor epistêmico, a questão já foi tratada pelo STF no Inq. 4.244 e merece análise à luz dos últimos acontecimentos.

Em 19/3 o ministro Gilmar Mendes (Inq 4.244/STF, caso Aécio Neves/Furnas) determina o arquivamento da investigação preliminar a pedido do PGR. O caso se inicia em 2014 com a delação premiada de Alberto Youssef e é posteriormente arquivado. Com a delação do ex-senador Delcídio do Amaral, a investigação é reaberta em 2016, juntando-se também investigações em andamento contra Dimas Toledo, ex-parlamentar que estaria envolvido nos crimes e teria vínculo com Aécio, além do depoimento de Fernando Moura, um terceiro delator que tem seu acordo questionado por omissões e má-fé na atuação.

O fato investigado era corrupção passiva a partir do recebimento de vantagem por Aécio, oriundo das empresas contratadas pela estatal Furnas Centrais Elétricas S.A. Os recursos ilícitos seriam lavados por meio de pessoas jurídicas ligadas à irmã de Aécio (Andrea Neves), bem como pelo envio de recursos a contas no exterior, utilizando-se do serviço de doleiros.

A decisão é paradigmática porque reforça uma interpretação constitucionalmente adequada sobre o limite da narrativa do delator premiado: é imprestável o depoimento do delator sobre fatos de ‘ouvir dizer’. Conforme afirmou o Ministro Gilmar, as recentes alterações do art. 3º-C, §3º da Lei 12.850/13 introduzidas no “pacote anticrime” “vedaram expressamente a delação de fatos que não tenham contado com a participação direta do delator”. A decisão é um marco que deve ser aplaudido e replicado em todas as investigações criminais, pois contribui para redução do erro judiciário das delações premiadas como se verá na sequência.

O chamado hearsay testimony é a testemunha do 'ouvi dizer', ou seja, aquela pessoa que não viu ou presenciou o fato e tampouco teve contato direto com o que estava ocorrendo, senão que sabe através de alguém, por ter ouvido terceiro narrando ou contando o fato. No nosso sistema, esse tipo de depoimento não é proibido, mas deveria ser considerado imprestável em termos de valoração, na medida em que é frágil e com pouca credibilidade, impedindo na prática o direito ao confronto.

Explica Malan[1] em profundo estudo sobre o tema que o direito ao confronto é fundante da prova testemunhal e o depoimento indireto prejudica sobremaneira esse direito, na medida em que “(i) a declaração original com frequência é prestada sem qualquer solenidade ou formalidade, em especial o juramente de dizer a verdade; (ii) o declarante original não pode ser submetido ao exame cruzado da parte processual prejudicada pelo teor da declaração; (iii) o juiz e os jurados não podem observar o comportamento do declarante original no momento em que prestou as declarações”.

Trata-se de testemunho bastante manipulável e extremamente adequado para as colaborações premiadas, porque: (1) blinda a narrativa do delator de contradições, na medida em que o exame cruzado na audiência é cerceado e sem plena confrontação afinal, sobre o fato o delator nada sabe, apenas se limita a repetir o que ouviu e, eventualmente, fazer juízos de valor sobre isso (o que é vedado pela objetividade); e (2) retira o peso da incriminação caluniosa do delator, pois ele apenas teria ouvido de terceiro a incriminação, compartilhando o conhecimento calunioso. Fora o fato de que há ainda o imenso risco de existir uma verbalização ampliada, até para valorização do papel assumido como colaborador da justiça.

A testemunha de "ouvi dizer" nada presenciou e, portanto, não corresponde aos requisitos de objetividade e retrospectividade, na medida em que não teve a 'experiência probatória', não conheceu diretamente do fato objeto da discussão na dimensão de caso penal. A título de curiosidade, no sistema inglês existem três provas passíveis de exclusão (exclusionary rules) e proibição valoratória:

a) hearsay: testemunha de ‘ouvi dizer’;

b) Bad character: prova sobre o mau caráter. Importante para evitar o direito penal do autor (eis outra proibição de prova que poderíamos adotar, especialmente no tribunal do júri);

c) Prova ilegal: concepção tradicional de proibição de valoração probatória da prova ilícita.

Na experiência brasileira o STJ tem fixado uma ratio decidendi importantíssima a respeito dos limites de suficiência da decisão de pronúncia no procedimento do Júri. Quando os indícios de autoria sejam fundados exclusivamente em testemunhos de ouvir dizer, a exemplo do RESp 933436/SP (Rel. ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, DJe 13/10/2009) é vedada a pronúncia porque “tais elementos revelam-se precários, e dessa forma, não autorizam a sua submissão ao iudicium causae”. Em outro caso paradigma, REsp nº 1.444.372/RS (Rel. ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, DJe 25/02/2016) segue-se a mesma linha, proibindo a pronúncia com base em ouvir dizer.

Enfim, a testemunha de 'ouvi dizer' (hearsay) não é propriamente uma prova ilícita, mas deveria ser evitada pelos riscos a ela inerentes e, quando produzida, valorada com bastante cautela ou mesmo não valorada. Existe uma insuperável restrição de cognição, pois não se trata de uma testemunha presencial, daí decorrendo o completo desconhecimento do fato e, portanto, um elevadíssimo risco de indução, deturpação e contaminação, pois ela acaba sendo mera 'repetidora' de discurso alheio.

No âmbito das delações premiadas é correta a preocupação do Ministro Gilmar que foi incorporada pelo pacote anticrime, pois o delator deve provar o seu discurso para receber benefícios penais. Nesse momento é extremamente pertinente acusar com base em ouvir dizer, pois estar-se-ia incluindo fatos novos para ‘vender’ conhecimento delatado que não se tem. A decisão do Ministro Gilmar que limita a delação por ouvir dizer corretamente segue a linha de que se deve presumir a falta de credibilidade dos depoimentos e dos elementos de corroboração apresentados pelos delatores, pois são direcionados para contrapartidas penais (INQ nº 4419, Rel. Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 11/9/2018).

Ademais, conforme pragmaticamente decidiu o Ministro Gilmar, constatada a omissão ou inverdade das informações prestadas pelo colaborador, ou a mudança de versões sobre fatos investigados que abalam a confiança do juízo sobre a credibilidade dos relatos, esses delatores devem ser impedidos de depor a partir do art. 214 do CPP, que fixa a regra da contradita da testemunha.

A decisão proferida no Inq 4244 é um standard de legalidade importante, que deve ser replicada nas demais investigações do país e o ‘hearsay’ precisa ser vedado como prova no processo penal.


[1]    MALAN, Diogo Rudge. Direito ao Confronto no Processo Penal. Rio de Janeiro: Editora Lumens Juris, 2009, p. 54 e ss.

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