Embargos Culturais

Sancho Pança, Magistrado

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

31 de dezembro de 2023, 8h00

Com certo romantismo pode-se afirmar (com Miguel de Unamuno) que D. Quixote precisava de Sancho Pança (para quem pensava em voz alta) para ouvir a si mesmo. Sancho é a humanidade, o mundo todo, com quem o Quixote precisa se comunicar. É um auditório universal. E todos nós precisamos de quem nos ouça. Mas precisamos ouvi-lo também. É com essa curiosa figura, Sancho Pança, que encerro os “Embargos Culturais” em 2023.

Spacca

No capítulo 54 do Livro II do Quixote lemos que Sancho Pança tornou-se governador de uma aldeia que contava com cerca de mil habitantes. Quixote cumpriu palavra dada a seu fidelíssimo escudeiro, transformando-o em insuspeita autoridade. Nessa deliciosa passagem Sancho revela-se um juiz habilidoso, “um verdadeiro Salomão em seus julgamentos”, nas palavras de Vladimir Nabokov (Lições sobre o Quixote).

O Magistrado Sancho Pança decide três casos picarescos (porém provavelmente recorrentes nos tempos do livro), valendo-se de uma poderosa intuição, que se calcava na memória. Sancho Pança era um sábio, e quem sempre lemos Cervantes não negamos esse postulado. E se para W. V. O. Quine a ciência é o árbitro final da verdade, para Cervantes a verdade é o que ele propriamente arbitra como tal.

No primeiro caso levado ao julgamento de Sancho Pança, agora governador e magistrado, um lavrador e um alfaiate disputavam um tecido, que o alfaiate dizia ter sido suficiente para costurar cinco gorros (carapuças). O lavrador impugnou, dizendo-se lesado, exigindo que o alfaiate lhe recompensasse. Olhando para os contendores Sancho, imediatamente, sem tempo para reflexão mais aprofundada ou coleta de provas para instrução de sua decisão, determinou que os gorros deveriam ser ali depositados. Decidiu que o lavrador perderia os panos, que entregou ao alfaiate. Decidiu que o alfaiate perderia as horas que gastou para fazer os gorros. E determinou que os gorros fossem entregues para os presos da cadeia. O anúncio estava dado: que não lhe trouxessem causas que poderiam ser resolvidas pelos próprios interessados, com um pouco de boa vontade.

A pauta de audiências seguiu e então se apresentaram dois velhos. Um deles levava uma vara na mão. O outro reclamava que o primeiro lhe devia alguns dinheiros. O primeiro insistiu que era um homem bom, de palavra, e que havia de fato tomado empréstimo, mas que havia pago. O credor afirmou que ficaria satisfeito se o devedor jurasse para Sancho Pança que de fato o pagamento fora feito. Era um crédulo, que desacreditava da própria opinião. Sancho então determinou que o devedor assim o fizesse.

O devedor pediu que o credor segurasse a vara e em seguida jurou solenemente que havia lhe entregue o dinheiro. Todos ficaram satisfeitos. Quando saiam da sala, alegres, e com a refrega resolvida, Sancho pediu para ver a vara que o devedor carregava. Com um pouco de esforço, notou que havia alguma coisa ali dentro. Abriu. Era exatamente a soma de dinheiro que o credor cobrava. Talvez não as mesmas moedas, porém dada a fungibilidade da obrigação, tanto bastava igual valor.

De fato, raciocinou o julgador, o dinheiro fora entregue, e o devedor não havia mentido. O dinheiro foi entregue no momento em que o credor segurava a vara, enquanto o devedor fazia o juramento. No entanto, a entrega não representava uma verdadeira entrega da coisa e a obrigação não estava resolvida. O credor desconhecia que havia moedas dentro da vara, e devolveu a vara a seu dono. Ficou com ela somente no momento no qual o juramento foi feito. Sancho resolveu o dilema determinando que o credor ficasse com as moedas que estavam dentro da vara, e que o devedor ficasse apenas com a vara, e nada mais. Certamente a decisão foi aplaudida, pela menos pelo leitor.

Seguiu a pauta para o último caso do dia. Um vendedor de porcos e uma mulher gritavam, se empurravam e somente se aquietaram quando viram Sancho Pança. A mulher acusava o vendedor de porcos de ter tentado violenta-la na estrada, e o acusava também de tentativa de roubo. O vendedor de porcos se defendeu, dizendo que as acusações não eram verdadeiras, insistindo que tinha razão.

Sancho determinou que o vendedor de porcos pagasse imediatamente à mulher, e que lhe entregasse o dinheiro reclamado em uma bolsa, e que saíssem da sala de justiça. Primeiro a mulher, e depois o vendedor de porcos. Ao ficar a sós com o vendedor de porcos Sancho ordenou-lhe que tomasse a bolsa da mulher. O porqueiro nada entendeu, porém cumpriu as ordens.

Em alguns minutos voltavam os contendores. A mulher, dotada de uma ferocidade inusitada e nunca vista, não lhe entregou a bolsa, de forma alguma, resistindo, como quem defende a própria vida. Sancho então determinou que ela devolvesse a bolsa ao porqueiro. O auditório ficou mesmerizado com a decisão, que Sancho em seguida explicou. Afirmou que se a mulher usasse do mesmo esforço para defender o próprio corpo (que disse ameaçado) nem mesmo Hércules seria capaz de submetê-la. Ela estava mentindo.

Ainda que algum leitor invocado com o identitarismo possa imputar a Cervantes uma certa misoginia, em flagrante anacronismo, a função da ilustração é totalmente outra. Isto é, os três casos representam uma concepção de justiça calcada no bom senso, na razoabilidade e na firmeza das decisões tomadas. Sancho Pança não duvida que está correto, e não dá espaço para qualquer reexame necessário. A usarmos uma concepção firme em Tércio Sampaio Ferraz Jr. e em Fábio Ulhoa Coelho, o direito é uma técnica para resolver problemas. O leitor contemporâneo sabemos que Sancho Pança decidiu rápido, com objetividade, senso de justiça e, principalmente, não deixou dúvidas.  Foi claro, preciso e conciso.

O Sancho era roliço e baixo, é o que imaginamos ao longo das várias cenas, e é o que confirmamos com o ilustrador clássico do Quixote, Gustave Doré, pintor, desenhista e ilustrador francês que também complementa nossa imaginação com passagens da Divina Comédia (Dante) e do Paraíso Perdido (Milton). Há no Quixote e no Sancho uma identificação com mitos visuais. Um crítico, Ian Ward, afirmou que “se nos fosse dado ver um cajado e uma bola andando emparelhados por uma estrada, imediatamente os reconheceríamos como Dom Quixote e Sancho Pança”. Certamente.

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