Fábrica de Leis

Direito à saúde e PEC 45/2023: uso terapêutico da cannabis entre Legislativo e STF

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26 de dezembro de 2023, 11h18

A cronologia do conflito institucional entre legislativo e judiciário para uso lícito e terapêutico de substância psicoativa natural obtida de partes da planta cannabis sativa ganhou relevância com o PL nº 399/2015. Em fevereiro do mesmo ano, o então deputado Fábio Mitidieri e hoje governador de Sergipe inicia proposição legislativa com o fim de alterar  artigo 2º da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006.

A então lei a ser alterada institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad); prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. A modificação então proposta pelo PL 399/2015 para o artigo 2º retiraria a proibição vigente  para viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta Cannabis sativa em sua formulação.

Spacca

O regime de tramitação em Comissão Especial seguiu o rito de apreciação conclusiva (artigo 24, inciso II do Regimento Interno da Câmara dos Deputados), ou seja a votação que se encerra, de forma terminativa, na própria comissão. Em 08/06/2021, o PL 399/2021 foi aprovado, com empate entre os votos a favor e os contrários. Coube ao relator, deputado. Luciano Ducci (em exercício de mandato na presente Legislatura) votar e desempatar a disputa cujo foco está no direito de amplo acesso ao uso controlado de substância psicoativa natural, hoje importada, de outros países onde o cultivo é legal, como os EUA, um dos grandes produtores globais de cannabis terapêutica.

O percurso legislativo foi de seis anos de tramitação, com diversas audiências públicas das quais participaram muitas categorias de afetados pelo que seria a futura legislação. Pacientes (muitos pediátricos por meio de suas mães), cientistas, ativistas, profissionais da área da saúde), autoridades, incluídas a administração da justiça e a segurança pública, gestores da área de regulação (Anvisa), empresas de base tecnológica.  O segmento de cada um dos participantes evidenciou o elevado grau de pluralidade e representatividade sociais presentes durante toda o processo de formação da então futura lei. Apenas em 2021, o mercado da cannabis legal na América do Norte foi estimado em US$ 7, 7 bilhões.

Porém o PL 399/2015 repousa num tipo de purgatório desde a sua aprovação, conforme o rito em caráter conclusivo.

Trata-se de um exemplo de mais um zumbi parlamentar, um morto-vivo, aprovado, mas desaprovado pela supremacia da percepção punitivista em torno do mito da cannabis (e sua “malevolência”) contra as evidências, contra a ciência e inovação e também contrariamente ao efetivo cumprimento da política de desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil, conforme artigos 218 a 219B da Constituição Federal).

Desde aprovação do Requerimento nº 29 de 2021 assinado por 123 deputados, o PL nº 399 espera ser pautado para votação, em Plenário, pelo presidente deputado Arthur Lira que por diversas vezes faz pronunciamentos públicos contra a atuação do STF ( controle de constitucionalidade) o que denomina de ações para “desrespeitar a vontade da maioria”.

Apenas alguns, por ora, por razões financeiras, podem arcar com o alto custo de um medicamento eficaz. Iniciativas recentes, de estados e municípios, Brasil afora, após o precedente legislativo da Alesp (Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo) agem para concretizar a universalidade do direito fundamental à saúde ao preverem o acesso à cannabis terapêutica via SUS.

Sob o ponto de vista regulatório, a Anvisa, no âmbito de sua competência em zelar pela saúde dos brasileiros, editou resoluções (RDCs nº 66/2016; 156/2017; 335/2020; 570/21) que regularizam a substância, permitem a importação do produto, mas não pacificam a questão do plantio e nem do amplo acesso, com economicidade. Em 2019, apesar da manifestação fundamentada em relatório elaborado pelo diretor Wilson Dib, considerando o amplo processo de consulta pública conduzida pela agência no sentido de defender o plantio para fins terapêuticos e medicinais, também aqui, o protagonismo proativo floresceu no Judiciário.

Três movimentos distintos seguem no Judiciário, que provocado, age, ainda que não tenhamos um “Apelo ao Legislador” , um  remédio legal para chamarmos de nosso diante da inação legislativa e que nesse caso consumiu recursos públicos durante uma tramitação de seis anos.

A ADI 5.074, o IAC( Incidente de Assunção de Competência) no Recurso Especial Nº 2.024.250-PR e a mais recentemente, o andamento do Recurso Extraordinário (RE) 635659, com repercussão geral (Tema 506), em que se discute a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio revelam a disputa pela normatização de valores e desvalores em torno dos muitos usos para substâncias psicoativas obtidas à partir de plantas ( cannabis é uma delas na rico farmacopeia sulamericana e brasileira)

A ADI nº 5708/DF, de 2017 movida pelo Partido Popular Socialista, requerendo que o STF declare inconstitucional o artigo 28 da Lei nº 11.343/06 e confira interpretação conforme à Constituição aos artigos 2º, caput, 31( tratamento médico ou pesquisa científica) 33, §1º, I, II e III; 34; 35; e 36c/c artigo 334-A do Código Penal, autorizando as condutas de plantar, cultivar, colher, guardar, transportar, prescrever, ministrar, e adquirir cannabis para fins medicinais e de bem-estar terapêutico.

Atualmente, o processo aguarda decisão do relator (ministro Fux), desde 2022. Participam ainda do processo (como amicus curiae) entidades sociais, científicas, profissionais e de advocacy para defesa de direitos fundamentais.

Em uma das decisões para deferimento de participação no processo, o ministro Fux reconhece “o dever do Estado de prestar a segurança pública, prevenindo e reprimindo o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins (artigo 144, caput c/c §1°, inciso II, CF/88) e a inviolabilidade do direito à vida (art. 5°, caput, CF/88) em face de direitos fundamentais à igualdade, à liberdade, à autodeterminação, à dignidade da pessoa humana, à liberdade de pesquisa (artigo 1°, inciso III, c/c 5°, caput,c/c artigo 218, caput, CF/88), entre tantos outros”.

Em marco de 2023, após admissão de incidente de assunção de competência, 1ª Turma do STJ decidiu suspender tramitação das ações individuais ou coletivas que discutam a possibilidade de autorização para importação e cultivo de variedades de cannabis para fins medicinais, farmacêuticos ou industriais, sob o argumento de que não cabe ao judiciário decidir sobre a ampla autorização para plantio da cannabis no Brasil.

Mas a ministra Regina Helena Costa fez mais do que chamar o Legislativo para assumir o seu papel na controvérsia nacional: oficiou para participação no processo, a Secretaria Antidrogas do Ministério da Justiça; o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime; o Conselho Federal de Medicina; e a Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis Sativa, assinalando como deveria ser articulada uma política pública sobre a questão da cannabis terapêutica.

Por fim, com uma controvérsia datada de 2011 coube ao Recurso Extraordinário (RE) 635.659, com repercussão geral (Tema 506) sobre descriminalização do porte de drogas para consumo próprio o papel de entornar o caldo entre as funções do Estado e também mostrar a tensão entre moralidades que cercam o debate sobre o uso da cannabis. Ainda que não haja ainda decisão definitiva, bastou o início do julgamento para uma célere movimentação do Legislativo via, nada mais, nada menos uma Proposta de Emenda Constitucional do  (PEC 45/2023).

Com tramitação mais complexa, rito específico, uma PEC exige articulação política e movimentação do Presidente da Casa, no caso, o senador Rodrigo Pacheco, seu primeiro signatário. Essa movimentação se faz dentro de um contexto, no qual o Presidente do Senado se empenha pelo êxito da PEC 8/ 2021 que tem como uma de suas alterações, restrições a decisões monocráticas e pedidos de vista com prazos indefinidos. Já o presidente da Câmara dos Deputados se movimenta, no mesmo sentido, mediante proposição de lei ordinária, o PL 3.640/2023 com modificações no mesmo sentido com foco em alteração do Código de Processo Civil e disposições sobre o dever de legislar. Curiosamente, seu rito para apreciação conclusiva em Comissão é o mesmo do PL 399/2015 suspenso pela inação do presidente da Câmara.

A PEC 45/2023 tem como objeto a modificação da Constituição, do artigo 5º, inciso LXXX, que institui o regime de direitos e garantias fundamentais, cláusula intangível da Constituição que deveria seguir intocada quanto às investidas contra o constituinte originário. Uma das instituições que atua como Amicus curiae na ADI 5.074, a Conectas Direitos Humanos e cerca de 70 entidades publicaram nota pública contra a PEC 45/2023.

A proposta de inclusão do inciso LXXX , passaria a vigorar com a seguinte redação: “a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

Em que pese a mácula de uma intervenção limitante no artigo 5º da Constituição, há uma possibilidade de um tipo de  loop infinito, no caso de aprovação de uma ilusória pacificação da questão. Há uma reiterada omissão legislativa que atinge o acesso ao medicamento canábico, a baixo custo, pela ausência de disciplina legal. Pelo desvalor imputado ao uso terapêutico, há um risco, no país das maravilhas, da atividade regulatória da Anvisa tenha o seu entendimento atual modificado, apesar de uma prática médica se consolidar, a cada dia, em todos os rincões do Brasil.

Com o plantio proibido para uso medicinal e industrial, com o PL 399/2017 não pautado para votação em Plenário, caso seja mantida em nível constitucional a criminalizacãoda  posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, o Legislativo pode ver crescer a exorbitância de órgãos reguladores que ocupam a lacuna por ele deixada.

Drogas potentes vendidas em farmácias, com receituário restritivo disciplinado em atos normativos infra legais, podem causar severos efeitos colaterais e dependência. Substâncias psicoativas alucinógenas são permitidas em ritos religiosos (Lei 11.343/2006), mas a fabricação de medicamento canábico, a baixo custo no Brasil, a ser disponibilizada como a classe das drogas não mitificadas, ainda causa comoção e não uma justificação fundada em dados e evidências.

A PEC 45/2023 teve um mérito. Reconheceu, inversamente, que a posse de substância psicoativa não excepcionada para uso terapêutico, atinge o direito fundamental à saúde. Aliás, há a menção expressa ao direto à saúde na sua justificativa “a prevenção e o combate ao abuso de drogas é uma política pública essencial para a preservação da saúde dos brasileiro”. No caso da PEC ser aprovada, o uso de ativismo legislativo e regulatório será uma alternativa para impulsionar leis e atos normativos infra legais que mantenham a autorização para uso, fabricação e aí, de novo, o loop na situação dos insumos, ou a autorização do plantio/cultivo terapêutico e seu custo.

Porém, o risco de uma massa de atos normativos com hierarquias diversas convivendo com uma coerência minimizada, deposita no Judiciário, de novo, o fiel da balança. E assim, o Legislativo passivo, omisso, indiferente diante das questões controversas é quem se auto enfraquece não levando a sério demandas sociais verificáveis e muito menos problemas públicos.

Autores

  • é professora do curso de graduação e do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutora e mestre em Direito pela UFMG e coordenadora do Observatório para qualidade da Lei e do Legislab.

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