Senso Incomum

Ainda sobre a perda do caso concreto na 'cultura dos precedentes'

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21 de dezembro de 2023, 8h00

Em que medida falar que “o precedente tem uma dimensão objetiva” e que a sua ratio decidendi é a universalização das razões necessárias e suficientes da justificação judicial, no contexto jurídico brasileiro, seria diferente de equipará-lo a uma tese? Eis a pergunta que deve ser respondida.

O que são as teses? Por que os julgamentos têm de ser transformados em teses? Por que decisões de jurisdição constitucional se transformam em tese? E por que essas teses têm feição de “leis gerais e abstratas”? Por que até mesmo há teses a partir de Habeas Corpus? Eis as perguntas que tento responder. Sugiro a leitura de duas colunas sobre o tema: Qual é o é da coisa chamada precedente e o tema 995 e A democracia é compatível com a jurisprudencialização do direito?

Spacca

No conjunto da obra (teses, precedentes e a confusão que há entre esses dois conceitos) há uma tentativa de buscar respostas antes das perguntas, almejando uma solução a priori para problemas interpretativos. Veja-se como isso está presente em casos como a descriminalização das drogas, do aborto etc. O STF, na verdade, está procurando disciplinar a matéria para o futuro. Os casos importam muito pouco. Na verdade, as teses têm esse objetivo. Basta ler qualquer uma delas. Pensemos na tese de direito do trabalho, em que o STF aprovou a tese no Tema 725:

“É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante.”

Ou seja, o STF liberou de forma irrestrita a terceirização dos serviços, cuja relação, por natureza, é trilateral: a) trabalhador, b) empresa prestadora de serviços e c) empresa tomadora de serviços.

Qual era a discussão? Em muitos casos, o trabalhador, embora empregado formal da prestadora, postulava vínculo de emprego diretamente com a tomadora. Fundamento: o trabalhador estava subordinado diretamente a tomadora; a prestadora apenas intermediava a mão de obra.

Um exemplo: eletricitários — vantagens coletivas conquistadas ao longo dos anos pela categoria. Para burlar, a companhia de energia contrata uma empresa prestadora de serviço (cujas convenções ou acordos coletivos não tem as mesmas vantagens) e essa terceirização é toda por lícita. O problema é que empregados da prestadora e da própria companhia trabalham lado a lado, fazendo as mesmas coisas (claro, não dá para generalizar).

Em termos de teoria do direito e hermenêutica, qual é o problema da “tese”? É que a Tese 725 abriu a porteira para todo tipo de “pejotização” — vide número expressivo de reclamações no STF sobre vínculo de emprego. E o STF tem cassado as decisões dos tribunais do trabalho, porque “a tese” validou a terceirização. Mas há uma questão anterior: terceirizar é diferente de pejotizar. Na terceirização, a relação é trilateral; na pejotização, bilateral.

Percebe-se, mais uma vez, que no meio do caminho se perdeu a especificidade do caso.

Outra tese advém do Tema 622 (RE 898.060), em que nitidamente o caso concreto foi um pretexto para se elaborar tese sobre multiparentalidade. O caso “mãe” (holding) não tratava de multiparentalidade e, sim, de prevalência da paternidade biológica sobre a socioafetiva. O STF ignorou o caso concreto e autorizou a multiparentalidade.

Recentemente tivemos o caso da tese advinda do Tema 995, sobre liberdade de imprensa, tema de coluna cujo link está acima. Nessa hipótese, a tese, para bem além do caso “mãe” que gerou a repercussão geral, tem uma abrangência ilimitada. Para termos uma ideia, vai de processo sobre (i) coluna de humor, (ii) processo contra site que publicou peça publicitária durante a pandemia, até (iii) ação contra blogueiro que manteve comentário no Facebook, conforme breve levantamento feito pela Folha de S.Paulo.

E o que dizer do fato de que os tribunais de justiça Brasil afora (por todos, no dia 19/12/2023 tivemos o HC 874.408/SP, contra decisão do TJ-SP que desobedeceu a precedentes do STF em um caso de prisão preventiva por furto de uma cadeira no valor de R$ 100, que foi devolvida à vítima) ainda hoje não reconhecem a insignificância, fazendo a discussão chegar no Supremo Tribunal? Mais: e quando ministros do próprio Supremo Tribunal deixam de reconhecer a insignificância, reafirmada em uma série de decisões da própria Corte? Insignificância não é princípio suficiente a ser extraído de conjunto de decisões para formar um precedente? É um exemplo perfeito de como a dogmática jurídica faz teses sofisticadas sobre uma árvore de plástico… no meio da floresta amazônica. Ademais, isso mostra que, embora haja claros precedentes do STF sobre aplicação da insignificância (para ficar só nesse exemplo), estes são considerados ficções (não esqueçamos: para o realismo, textos jurídicos — decisões, regras — só adquirem sentido na decisão; a validade se dá na decisão). Não fosse assim, seriam obedecidos, pois não? Eis o ponto que remete tudo isso ao problema do realismo jurídico brasileiro.

Isso tudo deveria preocupar a comunidade jurídica.

A solução do problema? Ou o problema da solução adotada?

Embora decisões falem de outras decisões, que falam de decisões (que depois desaparecem), perde-se a possibilidade de fazer distinções e enquadramentos. Este, aliás, é o fulcro de qualquer sistema jurídico que adote precedentes: possibilidade de fazer distinções e enquadramentos de casos concretos.  Nos casos citados, no entanto, a tese criada é uma “nova lei, regra geral”. Foi positivado uma nova norma. O tribunal põe uma norma regra jurídica. Mas a comunidade jurídica compreende isso?

Mais: o que fica claro é que o caso original, de verdade, tem servido apenas como mote para que os tribunais exerçam seu poder de estabelecer normas pro futuro. Daí a pergunta: na medida em que o caso (original) não importa mais nas decisões — e o descumprimento do artigo 489 do CPC é a prova cabal disso —, como se faz distinguishing de “precedentes citados no atacado”? Quais? Em que casos? Em que circunstâncias?

O tema fulcral: sem saber qual é a ratio da decisão, qual é razão para nos valermos de precedentes para fundamentar? Estamos, mesmo, usando precedentes?

Com esta “técnica” de construção de teses (porque, na prática, precedentes são razões generalizantes — como, aliás, afirmam vários precedentalistas), esquece-se uma questão fundamental: a de que são justamente os elementos que ficam de fora que possibilitariam os juízos de identificação e distinção entre casos pretéritos e casos presentes (aquilo que a doutrina anglófona chama de case-by-case formulation and reformulation).

Tudo isso é muito ilustrativo a respeito de como a incorporação dos institutos do common law é artificial no Brasil: enquanto lá os precedentes são tratados como casos, com a menção às partes nele envolvidas (London Tramways v. London County Council; Riggs v. Palmer etc.), nós aqui nos referimos a precedentes como números de processos. Perde-se o “é da coisa”.

Portanto, repergunto: temos, de verdade, uma “cultura de precedentes”? Afinal, cultura não se impõe. Assim como não se impõe um precedente. Ou uma tese. Precedentes não são prospectivos.

No fundo, no Brasil cultura de precedentes quer dizer realismo jurídico. Ou, mais simples: jurisprudencialização do direito. Sobre isso sugiro a leitura da coluna em que tratei do tema. Ali explico por que os precedentes não são obedecidos: uma teoria cética não pode exigir que os demais componentes do sistema não sejam céticos. Os juízes e tribunais também seguem o realismo e, como se sabe, quem adota o realismo não acredita em textos, porque são “indeterminados” (a chave do realismo é: os textos jurídicos são indeterminados; o direito é indeterminado). Por que obedecer? Eis a pergunta. Penso que deveríamos discutir esse assunto. Sob o manto do “princípio da caridade” de Davidson.

Há muitos anos García Figueroa dizia haver uma espécie de realismo jurídico inconsciente na “motivação” dos juízes nos processos judiciais. Afinal, o realismo jurídico baseia-se na concepção de que o raciocínio judicial decorre de um processo psicológico. E isso acontece, complementa Figueroa, porque os juristas – em especial os juízes – descreem da capacidade justificadora do sistema jurídico. O realismo é cético diante dos textos jurídicos, pois os considera “puro papel até que se demonstre o contrário”. Roberto Lyra Filho já denunciava o psicologismo do realismo.

O ponto é: sendo o realismo (jurisprudencialização) uma postura cética, textos nada “seguram”. Isso é fato. Por isso é que, no direito jurisprudencializado, por vezes, como num passe de mágica, uma aparente estabilidade pode ruir. Isso também é fato facilmente comprovável. No Brasil — lembremos que Figueroa escreve mais para a Espanha – temos diversos casos exemplificados que tratam até mesmo da garantia da coisa julgada que nada garantiu. Ou seja, é facilmente constatável que nem mesmo uma previsão constitucional, como o instituto da coisa julgada, segura o realismo. Igualmente isso é fato facilmente identificável, bastando uma simples busca jurisprudencial. E fatos existem. Ao contrário de Nietzsche, para quem “fatos não existem; o que existe são interpretações”, é possível afirmar: só existem interpretações porque existem fatos. Aliás, como ironizava Umberto Eco, a própria frase de Nietzsche é um fato.

Retornando ao precedentalismo brasileiro: trata-se de um problema de epistemologia [1] e de teoria do direito, não de desenho institucional e nem de política judiciária. Como falar em “cultura de precedentes” que não “pega”, se nem a exigência de fundamentar as decisões “pega”?

Permito-me dizer, outra vez — e o papel da doutrina é de apontar problemas — que o STF e o STJ adotaram a tese equivocada. O que adotaram foi uma tese realista. Porque a tese precedentalista assumida pelo STJ e STF é realista. Um positivismo jurisprudencialista, como denunciam Bernd Rüthers e Mathias Jestaedt na Alemanha, quando falam do direito criado pelo judiciário.

Estudiosos do Direito deveriam se preocupar com isso. Afinal, para que serve o Direito legislado, se é tido como uma relativa ficção – que tem sua eventual validade condicionada à sua aplicação, tornando-se ex post? E o que a doutrina diz disso?

Se alguém quiser simplificar, basta se perguntar por que, apesar de o CPC dizer x, os tribunais dizerem y? Por exemplo: se o texto normativo diz que cabe recurso de embargos contra qualquer decisão, diz-se, no âmbito do realismo jurisprudencial, que “não cabe”? Ou isso “não é” jurisprudencialização (realismo)? Veja-se a questão da criação da dicotomia precedentes qualificados-persuasivos.

A minha crítica é que a doutrina precedentalista brasileira não está escrevendo sobre uma cultura jurídica autêntica, mas sim fazendo uma tese prescritiva sobre como deve ser o precedente no Brasil. Só que jamais enfrentaram o problema da identificação da ratio decidendi — que, a bem da verdade, desaparece nas “teses”. Basta um mínimo exame no teor das teses.

Discutamos os precedentes. Discutamos teses. Falemos sobre seu papel e sua força num sistema de civil law. Comparemos com outros países. Com Portugal, Espanha e Alemanha. E com o common law. Só não aceitemos acriticamente.

Infelizmente, parece que o estranhamento com tudo isso tem sido de baixa intensidade. E tudo tende a piorar com a robotização e a perspectiva do ChatGPT elaborando esboços de decisões (sobre o que falou o presidente do STF, recentemente). A doutrina, que já está em baixa em face à jurisprudencialização crescente, tende a desmilinguir-se, porque os robôs só são alimentados com jurisprudência. E, por vezes, como já aconteceu, até inventam “precedentes”. (aqui, aqui e aqui).

E repito a pergunta que fiz em coluna anterior: qual é mesmo o nome da coisa da qual tratamos? A resposta é simples e direta: realismo jurídico. E realismo tem uma definição. E a partir dela, compreende(re)mos o fenômeno.

Ou não.

Feliz Natal a quem me tem prestigiado com a leitura desta coluna hebdomadária.

 

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[1] A palavra “epistemologia”” virou moda. Porém, atenção: epistemologia não é a simples análise de um fato ou do direito em geral. Ou fazer doutrina. Escrever sobre dogmática jurídica não é fazer epistemologia. Epistemologia é uma discussão de segundo nível, pela qual se examina as condições pelas quais a análise de um fenômeno possui sentido. Epistemologia se ocupa de problemas filosóficos. Das condições de compreensão.  Portanto, há que se ter cuidado com o uso da expressão. Por vezes usam epistemologia como uma espécie de discurso de primeiro nível, achando que estão discutindo a condição de possibilidade desse nível. No livro O que é isto – decido conforme minha consciência, apresento esses níveis, fazendo uma reconstrução do conceito. No âmbito da dogmática jurídica o uso do termo se tornou deveras problemático, mormente porque o discurso dogmático substitui o próprio direito. Algo que, parafraseando Gadamer, se não substitui o direito na totalidade (ainda), exerce uma “coação objetiva imanente” de forma constante. A julgar por alguns usos recentes no âmbito da dogmática jurídica, que falam de “epistemologia” no atacado, talvez precisemos de uma epistemologia da “epistemologia” …!

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