Qual é o 'é da coisa' chamada 'precedente' e a tese da liberdade de imprensa
7 de dezembro de 2023, 8h00
Volto ao tema pela enésima vez. Falei disso na Conferência Nacional da OAB. As coisas têm de ter um nome. Isso vem da aurora da civilização. Aliás, o capítulo mais bonito do livro Crátilo (Platão) se chama Da Justeza dos Nomes. Ali tudo começa…
Qual nome damos ao fenômeno “o Direito é o que os tribunais dizem que é”? Na verdade, esse é um nome que não se pronuncia. Talvez muitos o conheçam por “cultura ou sistema de precedentes”, invenção brasileira que oculta o verdadeiro nome da coisa: realismo jurídico. Mas podem chamar também de jurisprudencialização. Na coluna da semana passada expliquei isso. Sugiro uma pausa para a ler.
Lido? Voltamos.

O que são as teses? Por que os julgamentos têm de ser transformados em teses? E por que essas teses têm feição de “leis gerais e abstratas”? Por que até mesmo há teses a partir de Habeas Corpus? Vou tentar falar disso. No conjunto da obra (teses, precedentes e a confusão que há entre esses dois conceitos) há uma tentativa de buscar respostas antes das perguntas, almejando uma solução a priori para problemas interpretativos. Veja-se como isso está presente em casos como a descriminalização das drogas, do aborto etc. Na verdade, todas as teses têm o mesmo objetivo. Basta ler qualquer uma delas.
Resumo: as decisões falam de outras decisões, que falam de decisões, valendo-se de decisões para decidir. Mais: tem-se a impressão de que o caso original, mesmo, serve apenas como mote para que os tribunais exerçam seu poder de estabelecer normas pro futuro. Daí a pergunta: na medida em que o caso (original) não importa mais nas decisões — o descumprimento do artigo 489 do CPC é a prova cabal disso —, como se faz distinguishing de “precedentes citados no atacado”? Quais? Em que casos? Em que circunstâncias? Sem saber qual é a ratio da decisão, não há razão para nos valermos de precedentes para fundamentar.
Com esta “técnica” de construção de teses (porque, na prática, precedentes são razões generalizantes — como, aliás, afirmam vários precedentalistas), esquece-se uma questão fundamental: a de que são justamente os elementos que ficam de fora que possibilitariam os juízos de identificação e distinção entre casos pretéritos e casos presentes (aquilo que a doutrina anglófona chama de case-by-case formulation and reformulation).
Tudo isso é muito ilustrativo a respeito de como a incorporação dos institutos do common law é artificial no Brasil: enquanto lá os precedentes são tratados como casos, com a menção às partes nele envolvidas (London Tramways v. London County Council; Riggs v. Palmer etc.), nós aqui nos referimos a precedentes como números de processos. Perde-se o “é da coisa”.
Portanto, temos, de verdade, uma “cultura de precedentes”? Afinal, cultura não se impõe. Assim como não se impõe um precedente. Ou uma tese. Onde já se viu precedente prospectivo?
Como referi, o papel da doutrina é estabelecer condições para melhor compreensão de um tema. Daí que é possível dizer que o nome do que por aqui se chama “cultura de precedentes” é realismo jurídico. Ou, mais simples: jurisprudencialização do Direito. Só que o que não se diz e o que não se admite é que o realismo jurídico é uma teoria cética. Isso é consenso na teoria do Direito. E as teorias céticas dizem que todo direito é indeterminado — e que seu sentido só ocorre na decisão. E aí começa o problema. Se a decisão é também direito, então também ele – o direito advindo da decisão (que realiza o direito) — será indeterminado. Logo, o realismo cai em um discurso circular indeterminado-infinito, porque a cada nova decisão temos uma decisão diferente, fruto do discricionarismo do aplicador. Só que isso implode o próprio sentido do realismo.
O realismo pretende “prever como os juízes decidem”. Isso é a ratio do realismo. Mas, se estamos diante de uma teoria descritiva, ela deve(ria) renunciar a critérios que tenham a pretensão de dizer como o Direito (materializado na decisão) deve ser. Porém, se efetivamente fizesse isso, o realismo jurídico jamais seria capaz de prever qualquer coisa.
E atenção: na medida em que o realismo é uma teoria cética ou não-cognitivista do direito (veja-se, por todos, Riccardo Guastini e o realismo genovês, seguido aqui no Brasil pela maioria dos precedentalistas), cabe a pergunta fulcral: ela é, de verdade, uma teoria exclusivamente descritiva – ou seria também normativa? Provavelmente se diga descritiva (mas nem isso se vê). Por aqui, os tribunais constroem os precedentes (seja por qual epíteto) como um ato de autorictas e, depois, exigem aplicação dos demais. Só que, como dito anteriormente, o realismo cai em um discurso circular indeterminado/infinito. Por isso tantas reclamações (lembremos da Justiça do Trabalho). Por isso os tribunais não obedecem aos precedentes. Claro: porque os tribunais também seguem o realismo e, como se sabe, os realistas não acreditam em textos, pois são “indeterminados”. Percebem?
Veja-se o recente caso da tese do STF sobre o Tema 995, pelo qual, a partir da decisão de um caso que veio do Pernambuco (RE 1.075.412), o Tribunal elaborou, por ato de autorictas, uma tese que é uma norma abstrata e geral, com pretensão legiferante de abranger todas as hipóteses futuras, possíveis e imagináveis. Nem vou discutir se a tese é correta ou incorreta. Isso não é importante aqui.
Importa é que há em torno da tese uma discussão. Só que é, em termos de teoria do Direito, apenas secundária. Por que secundária? Porque, fosse “boa” a tese (isto é, obtivesse ampla concordância dos formadores de opinião nos locais privilegiados de fala), não haveria comoção alguma. Afinal, para a dogmática jurídica brasileira, o problema não é a jurisprudencialização do Direito: o problema é que às vezes ela não agrada. Os veículos de comunicação, nesse caso, não gostaram.Mas a chiadeira não foi pelo fato de ter sido feita uma tese, mas sim porque a tese “não é boa”.
E aqui volto às críticas a Riccardo Guastini e ao seu realismo, lançando mão de José Luis Marti, que citei na coluna da semana passada (link acima), para quem o realismo é incompatível com um Estado de perfil liberal-social. E Marti é veemente na crítica, dizendo que o realismo provoca sério problema na relação entre os Poderes: “Podemos afirmar, portanto, que os três poderes indicados por Montesquieu convergem direta ou indiretamente em um mesmo órgão: o judicial”.
Quando se diz que o Direito é o que os tribunais dizem que é, ou quando se diz que se decide por “livre convencimento” (não é assim que funciona a cotidianidade das práticas jurídicas?), o que é isto senão um ceticismo jurídico? Vamos dar nome às coisas. Gostemos ou não. Cientificamente. Depois de assim fazermos, e se assim mesmo continuarmos a acreditar nas mesmas coisas, pelo menos saberemos do que estamos falando. Parece não ser o caso de parcela da doutrina brasileira e de parcela majoritária do Judiciário. [1]
Há muitos anos García Figueroa dizia haver uma espécie de realismo jurídico inconsciente na “motivação” dos juízes nos processos judiciais. Afinal, o realismo jurídico baseia-se na concepção de que o raciocínio judicial decorre de um processo psicológico. E isso acontece porque os juristas – em especial os juízes – descreem da capacidade justificadora do sistema jurídico. O realismo é cético diante dos textos jurídicos, pois os considera “puro papel até que se demonstre o contrário”. Roberto Lyra Filho já denunciava o psicologismo do realismo.
Quando fala do problema causado pelo ceticismo realista, Marti quer dizer que os cidadãos têm direito, em um Estado Democrático de Direito, a um tratamento equânime. Isso quer dizer que as causas devem ser julgadas com base em normas pré-existentes. E nisso está a segurança jurídica. Os cidadãos devem ser capazes de prever o sentido das decisões judiciais. Justamente por isso, acredita-se ser necessário que as normas jurídicas sejam gerais, claras, precisas e pré-existentes. Mas, se o Direito é como os realistas o descrevem, é óbvio que as normas jurídicas não podem ser gerais, nem pré-existentes (e, portanto, como corolário lógico, nem claras e nem precisas).
Um realista poderia argumentar — discute Marti — que o fato de serem os juízes quem criam o Direito, isto é, as normas jurídicas, não impede que estas normas sejam gerais. O juiz poderia criar uma regra geral para um caso e depois aplicá-la a todos os casos semelhantes. Contudo, este realista estaria a esquecer que o juiz cria necessariamente uma regra para cada caso específico, que nunca pode ser pré-existente (de acordo com as melhores construções teóricas sobre linguagem e interpretação das quais dispomos) e, consequentemente, também não pode ser geral. Dworkin já havia feito essa crítica de há muito. O fato de dois juízes resolverem dois casos semelhantes da mesma forma não indica, no esquema do ceticismo, que estejam a aplicar a mesma norma pré-existente e vinculativa, mas apenas que concordaram contingentemente com a criação da norma que eles vão inscrever no ordenamento jurídico.
No fundo, sendo o realismo uma postura cética, textos nada “seguram”. Por isso é que, no direito jurisprudencializado, por vezes, como num passe de mágica, uma aparente estabilidade pode ruir. Por aqui temos diversos casos exemplificados que tratam até mesmo da garantia da coisa julgada. Ou seja, é facilmente constatável que nem mesmo uma previsão constitucional, como o instituto da coisa julgada, segura o realismo. Isso é fato.
E volto com Marti: os juízes (e tribunais) podem proteger ou deixar de proteger os direitos individuais em virtude do poder discricionário de que gozam, e podem respeitar perfeitamente esses direitos em alguns casos específicos e não os respeitar noutros. A questão é que os cidadãos sabem quando isso ocorre.
Outra questão importante trazida por Marti: existe uma inconsistência pragmática entre o ceticismo jurídico e a democracia. Ceticismo não rima com democracia e segurança jurídica. Claro que Marti defende uma perspectiva normativista-textualista – mas essa problemática não retira o valor de suas críticas. Aliás, no fundo, essa crítica ao realismo foi feita por jusfilósofos tão diversos quanto Genaro Carrió, Dworkin, Warat e Hart. E por constitucionalistas como Figueroa. A bem da verdade, soa paradoxal que um constitucionalista possa ser adepto do realismo. Afinal, isso significa dizer que o texto constitucional é indeterminado. E isso é auto implosivo.
Ainda em termos de auto implosão, Marti, em interessantíssima nota de rodapé, indaga:
O poder executivo, como executor de decisões judiciais, tem discricionariedade absoluta na interpretação dessas decisões (que ainda são formulações normativas particulares, ou seja, textos que devem ser interpretados)? Por outras palavras, o mesmo cepticismo, que leva os realistas a dizer que a lei é realmente o que os juízes querem, pode ser transferido para a fase subsequente de execução das sentenças, e, assim, devemos então concluir que a lei é realmente aquilo que os executores das sentenças quiser, neste caso a polícia ou outros órgãos da Administração?
Marti mostra, nessa nota, o grande paradoxo do realismo. É o ceticismo realista se auto implodindo. Claro: se textos são ficções, também teses e decisões judiciais são ficções. Talvez aqui esteja a explicação para as desobediências dos Tribunais em relação aos precedentes no Brasil. Afinal, são apenas textos. Sempre haverá uma nova visão sobre esse texto e assim se vai ao infinito.
Retornando ao precedentalismo brasileiro: trata-se de um problema de epistemologia e de teoria do Direito, não de desenho institucional e nem de política judiciária. Como falar em “cultura de precedentes” que não “pega”, se nem a exigência de fundamentar as decisões “pega”?
Permito-me dizer, outra vez — e o papel da doutrina é de apontar problemas – que o STF e o STJ compraram a tese equivocada. Porque a tese precedentalista assumida pelo STJ e STF é realista. Um positivismo jurisprudencialista, como denunciam Bernd Rüthers e Mathias Jestaedt na Alemanha, quando falam do Direito criado pelo judiciário. Veja-se: não são dois autores quaisquer. Eles deixam claro que se trata de um positivismo fático, em outras palavras. Como se diz no campo precedentalista, a função dos Tribunais Superiores é do fazer um estoque de normas para regular o Direito no futuro (ler aqui). Tipicamente o que acontece.
Voltando à tese do Tema 995: o problema da decisão sobre liberdade de imprensa não está no seu mérito. E nem se trata de discutir apenas esta decisão. O problema é mais complexo. Trata-se de discutir se a aludida “cultura de fazer precedentes para o futuro” é compatível com os três requisitos fundantes do Estado democrático de Direito: separação de poderes; segurança jurídica (previsibilidade) e proteção dos direitos de forma equânime.
Estudiosos do Direito deveriam se preocupar com isso. Afinal, para que serve o Direito legislado, se é tido como uma relativa ficção – que tem sua eventual validade condicionada à sua aplicação, tornando-se ex post? E o que a doutrina diz disso? O realismo (com o nome que se lhe dê) é ou não é compatível com a democracia? Se alguém quiser simplificar, basta se perguntar por que, apesar de o CPC dizer x, os tribunais dizerem y? Por exemplo: se o texto normativo diz que cabe recurso de embargos contra qualquer decisão, diz-se, no âmbito do realismo jurisprudencial, que “não cabe”? Ou isso “não é” realismo jurídico?
Alguém dirá: “O CPC trouxe expressamente o instituto dos precedentes. Nós, os precedentalistas, nunca dissemos que precedentes são teses ou súmulas”. Aceito o debate. Mas será que as coisas são assim mesmo?
A um: ainda que o CPC só diga que os tribunais darão publicidade a seus “precedentes”, nem é esse o ponto. Minha crítica é que não se transplanta uma cultura orgânica (que foi sendo produzida durante séculos no common law) de maneira ad hoc, imediata e pela metade, em um país de civil law, misturando tudo numa práxis que atropela as principiologias mais elementares de ambas as tradições.
A dois: os defensores da tese precedentalista afirmam que nunca disseram que precedentes seriam teses ou súmulas. Ok, muito bem. Mas por que já passaram a chamar os incisos do artigo 927 de “precedentes qualificados”? E sem que houvesse sequer uma crítica a isso (exceto por este escriba).
A três: não vejo nenhum problema que se fale em precedentes. Ao contrário, sou sempre a favor de debates e movimentos buscando critérios para a decisão judicial. Aliás, para mim, qualquer decisão pode se tornar precedente. Coloquei no CPC o artigo 926 e ajudei na batalha dos incisos do parágrafo primeiro do artigo 489 (espelhado hoje no CPP, artigo 315). Minhas posições estão em livros e artigos às dezenas. A minha crítica é que a doutrina precedentalista brasileira não está escrevendo sobre uma cultura jurídica autêntica, mas sim fazendo uma tese prescritiva sobre como deve ser o precedente no Brasil. Só que jamais enfrentaram o problema da identificação da ratio decidendi — que, a bem da verdade, desaparece nas “teses”. Aliás, a ratio decidendi simplesmente desaparece nessa “cultura de precedentes” à brasileira. Isto porque, por aqui, costuma-se tratar o precedente como algo que já nasce precedente, para vincular — quando o precedente original do common law se torna um precedente a partir da atividade reconstrutivo-interpretativa da ratio por parte dos tribunais subsequentes.
Discutamos os precedentes. Discutamos teses. Falemos sobre seu papel e sua força num sistema de civil law. Comparemos com outros países. Com Portugal, Espanha e Alemanha. E com o common law. Só não aceitemos acriticamente que já se faça simpósios sobre precedentes qualificados (e o que seriam os “apenas persuasivos”?) e que os próprios tribunais já criem precedentes-para-serem-precedentes de um modo que nem importa o caso concreto, mas apenas a tese geral e abstrata – que passa a ser tratada como se lei fosse. Aliás, no caso do Tema 995 do STF, um caso com a dimensão x passa a pretender regular todos os casos xy, xz, xw … e qualquer coisa parecida. Pode até ser eventualmente prático, mas certamente não é democrático — a menos que tenhamos “esquecido” que essa tarefa de regulamentação do futuro compete ao legislador.
Infelizmente, parece que o estranhamento com tudo isso tem sido de baixa intensidade. Na verdade, parte da doutrina parece se interessar mais em meramente compilar descrições daquilo que foi dito ou decidido pelos tribunais. Com isso, morre aos poucos a função da doutrina: a de doutrinar. Mas será que alguém ainda se importa?
E uma pergunta final: qual é mesmo o nome da coisa da qual tratamos? A resposta é simples e direta: realismo jurídico. E realismo tem uma definição. E a partir dela, compreende(re)mos o fenômeno.
[1] Em seu novo livro Ativismo Judicial, Georges Abboud recupera um ensinamento de Confúcio, paradigma da sabedoria oriental e fala sobre a importância fundamental de chamar as coisas pelo nome certo.
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