Opinião

Federalismo e repartição de competências no Direito brasileiro

Autor

  • José Levi Mello do Amaral Júnior

    é professor associado de Direito Constitucional da USP professor do mestrado e do doutorado em Direito do Ceub livre-docente doutor e mestre em Direito do Estado procurador da Fazenda Nacional cedido ao TSE e secretário-geral da Presidência do TSE.

19 de dezembro de 2023, 11h17

A vocação brasileira ao federalismo é antiga. Admitindo-se que o federalismo tem raízes no feudalismo, pode-se afirmar que a inclinação federativa brasileira remonta às capitanias hereditárias, não apenas pela descentralização territorial em favor de donatários, mas, também, porque as vilas admitiam câmaras municipais. (LEAL, 1997, p. 81-86). No entanto, revezes foram enfrentados pelo federalismo brasileiro, a começar pelo Império unitário instalado com a Independência.

Curiosamente, o próprio Império brasileiro — não obstante unitário — fomentou a vocação federativa brasileira. Isso porque o Ato Adicional, de 12 de agosto de 1834, conferiu maior autonomia às províncias, substituindo os conselhos gerais provinciais por assembleias legislativas. (1997, p. 95-97).

Spacca

O Ato Adicional dotava as províncias de poderes amplos, inclusive para auto-organização, por exemplo, no que toca a um eventual modelo provincial bicameral.

Podiam legislar sobre:

(i) divisão civil, judiciária e eclesiástica da província e mudança da capital;
(ii) instrução pública e seus estabelecimentos;
(iii) casos e forma de desapropriação por utilidade municipal ou provincial;
(iv) polícia e economia municipal, precedendo propostas das câmaras;
(v) fixação das despesas municipais e provinciais, e os impostos para elas necessários;
(vi) repartição da contribuição direta pelos municípios da província e sobre a fiscalização do emprego das rendas públicas provinciais e municipais;
(vii) criação, supressão e nomeação para os empregos municipais e provinciais, e estabelecimentos dos seus ordenados;
(viii) obras públicas, estradas e navegação no interior da respectiva província que não pertençam à administração geral do estado;
(ix) construção de casas de prisão, trabalho, correição e regime delas;
(x) casas de socorros públicos, conventos e quaisquer associações políticas ou religiosas; e
(xi) casos e forma por que poderão os presidentes das províncias nomear, suspender e demitir os empregados provinciais.

É interessante notar que algumas destas matérias prenunciam várias das futuras competências estaduais e municipais, inclusive concorrentes, que começariam a ser adotadas décadas depois e que persistem na Constituição brasileira de 1988. No entanto, a Lei Interpretativa do Ato Adicional, a Lei nº 105, de 12 de maio de 1840, refluiu nos passos dados rumo ao federalismo. (LEAL, 1997, p. 97-98).

A Constituição de 1891 implantou formalmente um federalismo clássico, mas a vulgarização da intervenção federal prejudicou a prática de um verdadeiro federalismo.

A Constituição de 1934, inspirada na Constituição de Weimar (ALMEIDA, 2013, p. 40), de 1919, inaugurou, no Direito brasileiro, o federalismo cooperativo, com normas gerais que “vão confluir para o condomínio legislativo da competência concorrente da União e dos Estados-Membros”. Porém, teve existência efêmera. Seja como for, a Constituição de 1934 é o ponto de partida da linha evolutiva do federalismo cooperativo brasileiro, que passa pela Constituição de 1946 e culmina com a Constituição de 1988.

A Constituição de 1934 e a Constituição de 1946 foram sucedidas, respectivamente, pela Carta de 1937 e pela Carta de 1967. Ambas, em suas literalidades, aparentemente adotavam a forma federativa de Estado. Porém, eram autoritárias — inclusive e em especial nas práticas que conheceram — e, portanto, eram centralistas.

Autoritarismos são centralistas e, por isso, são negações do federalismo. O Estado Novo, na prática, nem sequer Congresso teve. A Carta de 1967 tornou-se progressivamente ainda mais autoritária, mormente a partir do infame Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. Eram típicas constituições semânticas, para empregar a célebre expressão de Karl Loewenstein (1986, p. 214), ou seja, como ilustra de modo comparativo o próprio Loewenstein, eram disfarces constitucionais.

Diga-se, a Carta de 1967 tinha um explícito “princípio da simetria”, ou seja, os Estados deveriam copiar o modelo federal,51 depois simplesmente incorporado às Constituições estaduais. O ministro Aliomar Baleeiro ironizava o ponto, em forte crítica ao centralismo, afirmando: “melhor seria que o Congresso Nacional incumbisse o Ministério da Justiça (…) de redigir e imprimir uma Constituição-modelo, ou padrão, que os deputados estaduais preencheriam com o nome do Estado, datariam e assinariam”.

Obviamente, tudo isso era uma negação do federalismo e, com a redemocratização, a vocação federativa brasileira foi recuperada. Aliás, vocação essa que se revelava mesmo nos contextos mais desfavoráveis. Por exemplo, ainda sob a Carta de 1967, e não obstante o centralismo que a caracterizava, alguns municípios já eram contemplados com a possibilidade de elaborarem as respectivas leis orgânicas:

Ao tempo da Constituição de 1967, parte da doutrina já entendia que os municípios tinham capacidade autoorganizatória. A maioria dos autores, porém, com o aval da jurisprudência, sustentava que, à falta de previsão constitucional expressa a respeito, a organização dos Municípios se incluía na esfera dos poderes remanescentes dos Estados. E o certo é que, salvo no Rio Grande do Sul onde os Municípios elaboravam as suas Cartas Próprias, o mesmo tendo acontecido com os Municípios de Curitiba e Salvador, as leis orgânicas municipais eram elaboradas pelas Assembleias Legislativas dos Estados. (ALMEIDA, 2013, p. 97).

A referência que Fernanda Dias Menezes de Almeida faz aos municípios gaúchos retrata o artigo 143 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, de 1970:

Os Municípios do Rio Grande do Sul regem-se pelas Leis Orgânicas e demais leis que adotarem, respeitados os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

Talvez este reconhecimento de autonomia municipal em tempos de centralismo fosse desdobramento do “enternecimento municipalista” apontado por Victor Nunes Leal (1997, p. 195-209), sob a Constituição de 1946, enquanto fator de fortalecimento do mercado interno, porém, sem nenhuma dúvida, antecipa o reconhecimento dos municípios como autênticos entes federados pela Constituição de 1988.

Atual repartição de competências brasileira
A Constituição de 1988 retoma a linha evolutiva do federalismo de cooperação das Constituições de 1934 e de 1946.

São entes da federação brasileira, em união indissolúvel, a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios. Há, nisso, a formalização constitucional de uma característica que já se insinuava: os municípios brasileiros são, todos eles, entes federados, o que é peculiar à experiência brasileira.

Em regra, as municipalidades são criaturas dos estados.

Exceção parcial é a Federação Russa, que reconhece como sujeitos da federação apenas um ou outro dos seus entes municipais. Isso mostra a vocação federativa brasileira, antiga, arraigada, com mais prestígio às autonomias dos entes subnacionais do que usualmente se pensa, inclusive com espaços de criatividade para experimentos originais nas Constituições estaduais e nas Leis Orgânicas municipais.

A Constituição de 1988 possui uma muito complexa repartição de competências de que participam todos os entes da federação, ou seja, União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Ademais, é possível afirmar que, a rigor, há dois federalismos no Direito brasileiro: (i) o geral, para assuntos, questões, tarefas em geral; e (ii) o tributário, relativo às competências tributárias dos entes da federação, estratégico na medida em que define parte considerável da autonomia financeira dos entes.

Todos os entes têm competências de natureza: (i) material, fazer ou cuidar concretamente de algo; e (ii) legislativa, legislar sobre determinado assunto. Por outro lado, as competências podem ser: (i) enumeradas, confiadas privativamente a uma determinada esfera da federação; ou (ii) compartilhadas, comungadas por todos os entes.

No caso das competências materiais, a União exerce aquelas que constam, enumeradas para ela, do artigo 21 da Constituição.58 No caso das competências legislativas, a União exerce privativamente aquelas que constam, enumeradas para ela, do artigo 22 da Constituição.

Por meio de lei complementar, a União pode autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas no artigo 22. Cogita-se, na doutrina, distinção entre competências privativas e exclusivas: aquelas seriam delegáveis, essas não seriam delegáveis. (SILVA, 2002, p. 478). Porém, seja do ponto de vista léxico, inclusive em perspectiva técnico-jurídica, seja do ponto de vista constitucional, “privativo” e “exclusivo” não se distinguem. Ambos os termos expressam “a ideia do que é deferido
a um titular com exclusão de outros”. (ALMEIDA, 2013, p. 63).

A própria Constituição afirma, relativamente à lei delegada, que não serão objeto de delegação os atos de competência exclusiva do Congresso e os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado. É coerente que assim se compreenda porque a Constituição deve ser interpretada com a leveza com que o povo a interpretaria e, claro, os dois termos são usualmente empregados de modo indistinto.

Exemplo de delegação de competência privativa é dado pela Lei Complementar nº 103, de 14 de julho de 2000, que autoriza os estados e o Distrito Federal a instituir o piso salarial. Note-se: o Direito do Trabalho é matéria que consta do inciso I do artigo 22 da Constituição e o piso salarial é direito trabalhista previsto no inciso V do artigo 7º da Constituição. Portanto, é questão específica de matéria relacionada no artigo 22 da Constituição.

Em novembro do mesmo ano, lei de um Estado instituiu um único piso salarial para os empregados que não tivessem piso salarial definido em lei federal, convenção ou acordo coletivo de trabalho. Em assim procedendo, a lei estadual não instituiu um piso salarial, mas, sim, uma espécie de salário mínimo estadual, o que não é permitido pelo inciso IV do artigo 7º da Constituição. Explica-se: o salário mínimo deve atender às necessidades básicas do trabalhador e às da sua família, devendo ser, por isso, “nacionalmente unificado”; por sua vez, o piso salarial é, em face do seu próprio conceito constitucional, por profissão, pois deve ser “proporcional à extensão e à complexidade do trabalho”.

A propósito, confira-se decisão do Supremo Tribunal Federal no assunto: “Ao primeiro exame, conflita com os textos constitucionais lei estadual que, a pretexto de fixar piso salarial no respectivo âmbito geográfico, acaba instituindo, por não levar em conta as peculiaridades do trabalho — extensão e complexidade —, verdadeiro salário mínimo estadual (…)”.

Quanto aos estados — para além da criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios, bem assim instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões —, têm eles uma única competência material enumerada e uma única competência legislativa enumerada, qual seja, a exploração direta, ou mediante concessão, dos serviços locais de gás canalizado (competência material), matéria passível de regulamentação por lei estadual, mas não por medida provisória (competência legislativa).

No mais, no federalismo geral brasileiro, são dos Estados “as competências que não lhes sejam vedadas” pela Constituição,66 ou seja, são dos Estados as competências residuais. Em essência, “pode-se dizer que os Estados legislam hoje, com exclusividade, apenas sobre os assuntos de sua competência material administrativa e financeira” (ALMEIDA, 2013, p. 112), decorrências que são da autonomia administrativa, orçamentária e financeira dos entes, mas com diversos limites constitucionais, como bem recorda Fernanda Dias Menezes de Almeida (2013, p. 112).

Os municípios têm competências materiais e legislativas enumeradas, aí incluída uma potencialmente bastante abrangente: a competência para “legislar sobre assunto de interesse local”, ou seja, o antigo e tradicional “peculiar interesse” das Constituições pretéritas, que Aliomar Baleeiro, curiosamente, já denominava “peculiar interesse local”. Na mesma linha, Victor Nunes Leal (1997, p. 79-80), ao apontar a dificuldade de definir o que seria do peculiar interesse do Município, também se referia a interesse local (e, claramente, tomando as duas expressões como sinônimas):

(…) Quando se diz, por exemplo, que devem caber ao município as tarefas de natureza local, ou do seu peculiar interesse, resta ainda definir o conceito auxiliar tomado para referência. A dificuldade aumenta quando se observa que certos assuntos, que ontem só diziam respeito à vida de um município, podem hoje interessar a diversos, a todo um Estado, ou mesmo ao país inteiro. Essa variação, no tempo, da área territorial sobre a qual repercute um grande número de problemas administrativos torna muito relativa a noção de peculiar interesse do município, ou de interesse local, perturbando a solução do assunto no terreno doutrinário.

São antigas e variadas as discussões sobre o peculiar interesse local na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Assim, um serviço estritamente local estaria circunscrito ao peculiar interesse. Por exemplo, o horário do comércio local estaria sujeito à legislação municipal, mas não o horário bancário, porque a compensação bancária é atividade que extrapola o âmbito de um único município.

Por outro lado, é da competência legislativa municipal, porque assunto de interesse local, a definição do tempo máximo de espera de clientes em filas de instituições bancárias.

Em síntese, o interesse local pode e deve ser compreendido como decorrência natural do princípio da subsidiariedade inerente ao federalismo democrático, ou seja, deve-se deixar o mais possível aos cuidados do ente local — e, portanto, da comunidade — tudo aquilo em que consiga bem desempenhar o seu papel.

No que se refere ao Distrito Federal, a ele “são atribuídas as competências legislativas reservadas aos estados e municípios”, lógico, também se aplicando ao Distrito Federal todas as competências materiais reconhecidas aos estados e municípios.

Enfim, no que toca às competências comungadas, são elas: (i) competências comuns, de natureza material; e (ii) concorrentes, de natureza legislativa. Constam, respectivamente, dos artigos 2.375 e 2.76 da Constituição, cujas disciplinas jurídicas revelam que as competências comuns comportam-se de modo cumulativo e as competências concorrentes de modo não cumulativo.

A competência comum é cumulativa porque “não há limites prévios para o exercício da competência, ou por parte de um ente, seja a União, seja o Estado-Membro.

Claro está que, por um princípio lógico, havendo choque entre norma estadual e norma federal num campo de competência cumulativa, prevalece a regra da União”. (FERREIRA FILHO, 1990, p. 189).  Prevalece no pressuposto de a competência legislativa correlata ser privativa da União ou concorrente de modo a atribuir à União as normas gerais, hipóteses essas que ocorrem na grande maioria dos casos do artigo 23 da Constituição. (ALMEIDA, 1990, p. 116-118).

Por outro lado, a competência concorrente é não cumulativa porque implica repartição vertical da tarefa de legislar: a União legisla normas gerais, deixando-se aos demais entes a complementação. (FERREIRA FILHO, 1990, p. 189).

Sim, isso tudo sem prejuízo de outras competências espalhadas ou esmiuçadas em diversas outras normas da Constituição, como, por exemplo, o artigo 182 (política urbana).

Por fim, o federalismo tributário segue a mesma lógica descrita para o federalismo geral, com uma peculiaridade: (i) as competências enumeradas são as espécies tributárias confiadas às diferentes esferas da federação; (ii) as competências comungadas ou compartilhadas são as normas gerais de direito tributário; e, como peculiaridade, (iii) a competência residual — ou seja, a possibilidade de instituir impostos não previstos pela Constituição para a União, desde que sejam não cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados na Constituição relativamente a quaisquer entes —, em matéria tributária, cabe à União, não aos estados.

Deste quadro resulta claro que a maior parte das competências é da União, a ponto, inclusive, de muito pouco sobrar para os Estados por meio da competência residual.

Para tanto, colaboram não apenas as competências enumeradas (e privativas) confiadas à União, mas, também, as próprias competências comuns e concorrentes, que em geral implicam — ao menos como resultam da vida prática — uma primazia da União. A própria definição do que sejam normas gerais é “tormentosa”. Porém, um bom ponto de partida consta de decisão do Supremo Tribunal Federal:

(…) Penso que “norma geral”, tal como posta na Constituição, tem o sentido de diretriz, de princípio geral.
A norma geral federal, melhor será dizer nacional, seria a moldura do quadro a ser pintado pelos Estados e Municípios no âmbito de suas competências. (…).

Portanto, a norma geral é uma norma sobre normas, determina parâmetros cujos respectivos detalhamentos e pormenores ficam para o legislador local, claro, observados os limites dados pela norma geral. Por isso, o Supremo Tribunal Federal deu interpretação conforme a Constituição, no precedente antes citado, a dispositivos — minuciosos — da antiga Lei de Licitações, sobre: (i) doação e permuta de bem imóvel; bem assim (ii) permuta de bem móvel, para esclarecer que se aplicam apenas à União.

O caráter cumulativo das competências materiais pouco desafia a segurança jurídica. Porém, as competências legislativas concorrentes, na medida em que envolvem leis, precisam ser não cumulativas a bem, precisamente, da segurança jurídica. Por isso mesmo, a disciplina não cumulativa das competências legislativas concorrentes é dada pelos quatro parágrafos do artigo 24 da Constituição.

Os §§ 1º e 2º do artigo 24 cuidam de situações essenciais e cotidianas em matéria de competência legislativa concorrente: cabe à União legislar normas gerais (§ 1º), ou seja, para empregar a expressão de uso jurisprudencial já referida, a moldura dentro da qual poderão os entes elaborar normas específicas (§ 2º), inclusive a própria União para si.

A lei que veicula normas gerais é uma lei nacional, ou seja, uma moldura que deve ser observada pelas legislações federal, estadual e municipal relativas ao mesmo assunto. Note-se: não há hierarquia entre leis federais, estaduais e municipais, mas, sim, âmbitos próprios de competência para cada qual. Porém, no caso da lei nacional, com as suas normas gerais, ela, sim, condiciona a legislação dos demais entes. É o que ensina Geraldo Ataliba em artigo clássico, inclusive cogitando hierarquia entre lei nacional, de
um lado, e leis federais, estaduais e (como se depreende) municipais, de outro.

O ponto não é óbvio, pois: (i) como lembra Hans Kelsen (1981, p. 80), o órgão legislativo que faz leis nacionais também faz leis federais; (ii) na prática, o Supremo Tribunal Federal não reconhece nenhum caso de hierarquia entre leis nacionais, de um lado, e leis federais, estaduais e municipais, de outro, ainda que as normas gerais constem de lei complementar, pois todas as relações decorrentes destas situações são compreendidas pela Corte como próprias: (ii.a) à repartição constitucional de competências entre os entes federados — e não há hierarquia entre leis federais, estaduais e municipais; e (ii.b) aos âmbitos temáticos constitucionalmente reservados à lei complementar e à lei ordinária.

Não obstante a literalidade do § 1º do artigo 24 da Constituição disponha que, no âmbito da legislação concorrente, a competência da União “limitar-se-á” a estabelecer normas gerais, a União produz, sim, normas específicas, mas, lógico, circunscritas a ela própria, União.

Por sua vez, o § 2º do artigo 24 da Constituição dispõe que a competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência “suplementar” dos estados. Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1990, p. 196) explica que se trata de “complementar a legislação nacional de normas gerais, isto é, editar normas que adicionem pormenores à regra primitiva nacional”. Em outras palavras, complementa-se a moldura, respeitados os limites da moldura. Complementa-se algo que já está posto, algo que já
existe, no caso, complementa-se uma norma geral já elaborada, existente e vigente. Não se pretende, aqui, corrigir a literalidade da norma constitucional, mas, apenas, compreendê-la de modo didático.

Um bom exemplo de norma geral, porque aparta claramente o espaço que cabe à lei federal do espaço que cabe à lei municipal, em face da moldura constante de lei nacional, é o artigo 32, § 1º, do Código Tributário Nacional: dele decorrem critérios sobre o que poderia ser zona rural para o fim de sujeição de imóveis ao Imposto Territorial Rural (ITR) e o que poderia ser zona urbana para o fim de sujeição de imóveis ao Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). A legislação federal e a legislação municipal, relativas ao ITR e ao IPTU, devem observar as normas gerais, ou seja, a moldura definida pelo citado artigo 32, § 1º, do Código Tributário Nacional.

Os §§ 3º e 4º do artigo 24 cuidam de situações eventuais e episódicas em matéria de competência legislativa concorrente: na falta de norma geral constante de lei nacional de origem federal, surge para os Estados a possibilidade de exercer competência legislativa plena supletiva da falta da lei nacional (§ 3º), segundo explica Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1990, p. 197). Aqui, sim, cabe cogitar propriamente de uma legislação supletiva, porque supre a falta da legislação que seria naturalmente a competente, não fosse a eventual omissão, prevista como hipótese, da União. Por outro lado, se e quando a União vier a legislar, ou seja, na superveniência de norma geral constante de lei nacional de origem federal superveniente, a lei estadual é suspensa em sua eficácia no que for contrário à lei nacional superveniente (§ 4º). Trata-se de opção sábia do constituinte: não se trata de revogação porque lei de um ente não pode revogar lei de outro ente e a tão só suspensão oportuniza que, em qualquer eventualidade que acometa
a lei nacional superveniente (como uma revogação seca, ou seja, sem nova disciplina, ou uma declaração de inconstitucionalidade total), não se tenha vácuo ou vazio jurídico, o que não se coadunaria com a segurança jurídica.

Note-se: os municípios participam da legislação concorrente, não obstante a eles não se refira a literalidade do caput do artigo 24 da Constituição. Segundo ensina José Afonso da Silva (2002, p. 502), são inseridos no âmbito do artigo 24 por força do inciso II do artigo 30 da Constituição.

Por fim, uma curiosidade: os incisos IX, XXI, XXIV e XXVII do artigo 22 da Constituição mencionam quatro casos de diretrizes ou normas gerais: trata-se de clara e deliberada opção do constituinte para evitar que, nos quatro casos referidos, não se abra, como decorrência do caráter privativo das competências legislativas insertas no artigo 22, a possibilidade de legislação estadual supletiva na eventualidade de omissão da União no legislar as referidas diretrizes ou normas gerais, porque foram consideradas sensíveis e, assim, merecedoras, sempre, de legislação nacional. Em suma, os quatro casos de diretrizes ou normas gerais no art. 22 da Constituição remetem aos §§ 1º e 2º do artigo 24, mas excluem os §§ 3º e 4º do mesmo art. 24 dado o caráter privativo das competências legislativas do artigo 22.

 

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