Opinião

A 'teoria do duplo controle' e a proteção dos direitos humanos

Autor

  • Valerio de Oliveira Mazzuoli

    é professor-associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) pós-doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa doutor summa cum laude em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e advogado em Mato Grosso São Paulo e Distrito Federal.

9 de maio de 2024, 13h23

O tema que trago à reflexão dos leitores está a merecer o devido esclarecimento no Brasil por guardar valores importantes à aplicação do direito internacional e do direito interno e restar afeto às responsabilidades dos órgãos do Estado vinculados ao sistema de Justiça, sobretudo do Poder Judiciário. Falaremos da assim chamada “teoria do duplo controle”.

TV Globo/Reprodução

O Exame Nacional da Magistratura (Enam) cobrou, em sua primeira edição, ocorrida em abril de 2024, conhecimento sobre a “teoria do duplo controle” na proteção dos direitos humanos. O duplo controle significa, basicamente, que as leis internas só se tornam hígidas e válidas se passarem por dois crivos de controle normativo: a Constituição e os tratados internacionais em vigor no Estado, isto é, o controle de constitucionalidade e o controle de convencionalidade.

Trata-se da consagração da teoria da “dupla compatibilidade vertical material” que desenvolvemos pioneiramente no Brasil em nossa tese de doutorado em direito, defendida em novembro de 2008 (e depositada vários meses antes) na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sob a preciosa orientação de Claudia Lima Marques. [1]

Poucos meses depois, lançamos a obra inaugural sobre o controle de convencionalidade das leis no Brasil, [2] cujas teses defendidas foram imediatamente tomadas pela melhor doutrina e pela jurisprudência dos tribunais nacionais. Também em Portugal, constitucionalistas do porte de Jorge Miranda passaram a versar o tema do controle de convencionalidade, com base nas nossas definições e conceitos. [3]

Na tese, em seção intitulada “A produção do direito e o duplo limite vertical material”, defendemos, ineditamente no Brasil, que “[a] produção do direito doméstico (…) passa agora a ter de respeitar um duplo limite vertical material”, [4] qual seja, o respeito às normas constitucionais (expressas e implícitas) e aos tratados internacionais (sobretudo de direitos humanos) ratificados e em vigor no Brasil.

Na prova inaugural do Enam, uma das questões requeria assinalar-se a alternativa correta em relação ao tema do controle de convencionalidade. Eis a resposta correta:

“De acordo com a teoria do duplo controle, as normas jurídicas devem guardar compatibilidade não apenas com a respectiva Constitucional nacional, mas também com as disposições internacionais acolhidas pelo respectivo Estado-parte. Assim, para ser considerada hígida, a norma deve passar tanto pelo controle de constitucionalidade quanto pelo controle de convencionalidade.”

A questão do certame foi bem formulada e faz coro àquilo que desenvolvemos ineditamente no Brasil há mais de 15 anos. A questão compreende o que nominamos “duplo limite vertical material”, que representa o duplo controle normativo a que devem se submeter todas as normas do direito interno para que sejam vigentes e válidas na ordem jurídica brasileira. Explicamos em minúcias, na tese de doutorado de 2008, como deverá se comportar essa dupla compatibilidade vertical material no direito brasileiro, com o seguinte texto de abertura:

“Mas, para a melhor compreensão desta dupla compatibilidade vertical material, faz-se necessário, primeiro, entender como se dá (1) o respeito à Constituição (e aos seus direitos expressos e implícitos) e (2) aos tratados internacionais (em matéria de direitos humanos ou não) ratificados e em vigor no país.

O respeito à Constituição faz-se por meio do que se chama de controle de constitucionalidade das leis, e o respeito aos tratados (de direitos humanos ou comuns) faz-se pelo até agora pouco conhecido (pelo menos no Brasil) controle de convencionalidade das leis, conforme abaixo veremos com detalhes.” [5]

Defendida a tese, fizemos uma visita ao ministro Celso de Mello, no Supremo Tribunal Federal, dado que, àquele tempo, estava em discussão no STF a questão da impossibilidade de prisão civil por dívida do depositário infiel à luz da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, tema objeto de estudos anteriores de nossa lavra. [6]

Na ocasião, conversamos longamente sobre os temas constitucionais brasileiros mais candentes e presenteei o ministro com as edições mais recentes de vários livros. Poucos dias depois, em 3 de dezembro de 2008, o STF viria a julgar o HC 87.585/TO, em que o ministro Celso de Mello exarou importantíssima opinião que reconheceu natureza constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos incorporados ao direito interno brasileiro, para o fim de submeter as normas domésticas a um “duplo controle de ordem jurídica”. Nas suas palavras:

“Proponho que se reconheça natureza constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos, submetendo, em consequência, as normas que integram o ordenamento positivo interno e que dispõem sobre a proteção dos direitos e garantias individuais e coletivos a um duplo controle de ordem jurídica: o controle de constitucionalidade e, também, o controle de convencionalidade, ambos incidindo sobre as regras jurídicas de caráter doméstico.” [7]

Naquele julgamento, o ministro Celso de Mello nos honrou com várias citações da nossa doutrina, notadamente às páginas 273, 282 e 348 do acórdão. Especialmente às páginas 282 a 284 do acórdão, há longa transcrição da nossa obra a justificar o status de norma constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos no Brasil, independentemente de aprovação qualificada pelo Congresso Nacional (utilizando-se da nossa diferenciação de “tratados de direitos humanos com status constitucional” e “tratados de direitos humanos com equivalência de emenda constitucional”). [8]

Spacca

Portanto, a partir do voto do ministro Celso de Mello no HC 87.585/TO, veio à luz, no Brasil, a hoje em voga “teoria do duplo controle” de ordem jurídica, com o reconhecimento da natureza constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos incorporados ao direito interno, somado à necessidade de submissão de todas as normas internas a duplo crivo de controle normativo: o controle de constitucionalidade e o controle de convencionalidade, tal como defendemos na tese de doutorado da UFRGS.

Controle de convencionalidade

À luz desse escorreito posicionamento, a produção normativa doméstica, para ter reconhecida sua validade e consequente eficácia, deve se submeter a duplo controle vertical material, guardando respeito às normas da Constituição e também às previsões dos instrumentos internacionais incorporados à ordem jurídica interna. Que tal informação não seja sonegada.

Fala-se, há mais de 15 anos, nesses temas do controle de convencionalidade (na nossa doutrina e nas decisões dos tribunais superiores) e, doravante, volve-se à necessidade de devido esclarecimento no Brasil. Eis aí, portanto, a “teoria do duplo controle”, assim compreendida pelo ministro Celso de Mello como extrato hermenêutico da (mais complexa) teoria da dupla compatibilidade vertical material (que envolve não somente os tratados de direitos humanos, senão também os tratados comuns em vigor no Estado).

Não bastasse a aceitação da nossa tese da hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos pelo STF, destaque-se que, também o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento HC 379.269, de 25 de maio de 2017, reconheceu expressamente (inclusive na Ementa do Acórdão) a nossa teoria da “dupla compatibilidade vertical material”, compreendendo, em definitivo, que “para que a produção normativa doméstica possa ter validade e, por conseguinte, eficácia, exige-se uma ‘dupla compatibilidade vertical material‘”. [9] Ficamos honrados com esse reconhecimento, especialmente pelo fato de a teoria que desenvolvemos em absoluta primeira mão no Brasil ter vindo expressa na ementa e no corpo do respectivo acórdão.

A decisão do STJ dizia respeito à inconvencionalidade do tipo penal do desacato. No voto-vencedor do ministro Antonio Saldanha Palheiro, lê-se:

“A rigor, esse cenário deve ser submetido ao denominado controle de convencionalidade, que, na espécie, revela-se difuso, tendo por finalidade, de acordo com a insigne doutrina, “compatibilizar verticalmente as normas domésticas (as espécies de leis, lato sensu, vigentes no país) com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado e em vigor no território nacional.” (Mazzuoli, Valerio de Oliveira, 1977 – O controle jurisdicional da convencionalidade das leis; prefácio de Luiz Flávio Gomes. – 3. ed., rev., ampl. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 148).

Sob essa perspectiva, para que a produção normativa doméstica possa ter validade e, por conseguinte, eficácia, exige-se uma dupla compatibilidade vertical material, assim ilustrada:

‘Para a melhor compreensão dessa dupla compatibilidade vertical material, faz-se necessário, primeiro, entender como se dá (1) o respeito à Constituição (e aos seus direitos expressos e implícitos) e (2) aos tratados internacionais (em matéria de direitos humanos ou não) ratificados e em vigor no país. O respeito à Constituição faz-se por meio do que se chama de controle de constitucionalidade das leis; o respeito aos tratados que sejam de direitos humanos faz-se pelo até agora pouco conhecido (pelo menos no Brasil) controle de convencionalidade das leis; e o respeito aos tratados que sejam comuns faz-se por meio do controle de supralegalidade das leis (…).’ (Op. Cit. p. 135).

Nessa toada, atraindo essa conjuntura à situação em concreto, tem-se que o crime de desacato não pode, sob qualquer viés, seja pela ausência de força vinculante às recomendações expedidas pela CIDH, como já explanado, seja pelo viés interpretativo, o que merece especial importância, ter sua tipificação penal afastada.”

Como se nota, os tribunais superiores brasileiros já conhecem e aplicam a teoria da dupla compatibilidade vertical material — entendida, a partir do voto do ministro Celso de Mello no HC 87.585/TO, como teoria do “duplo controle de ordem jurídica” — e a matéria está na pauta atual do Exame Nacional da Magistratura (Enam).

Os candidatos aos cargos da magistratura no Brasil têm o dever de bem conhecer (e, depois de aprovados, de aplicar) os comandos dos tratados internacionais de direitos humanos mais benéficos em vigor o Estado, exercendo, sempre e fielmente, o duplo controle vertical material em suas decisões, tudo para o fim de entregar à pessoa humana sujeito de direitos a melhor decisão no caso concreto, capaz de atender aos direitos e garantias que lhe resguarda a ordem internacional de direitos humanos de que o Brasil é parte.

 


[1] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Rumo às novas relações entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito interno: da exclusão à coexistência, da intransigência ao diálogo das fontes. Tese de Doutorado em Direito. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. A Tese foi, depois, publicada na íntegra sob o título Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno (São Paulo: Saraiva, 2010).

[2] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009 [hoje a obra se encontra na 5ª edição, publicada pela Editora Forense].

[3] V. MIRANDA, Jorge. Curso de direito internacional público, 5. ed. rev. e atual. Cascais: Princípia, 2012, p. 181, ao falar na existência “de um controlo de convencionalidade paralelo ao controlo de constitucionalidade e ao de legalidade”. No mesmo sentido, v. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, Tomo VI – Inconstitucionalidade e garantia da Constituição, 4. ed. rev. e atual. Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 280.

[4] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Rumo às novas relações entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito interno…, cit., p. 201.

[5] Idem, p. 216.

[6] Especialmente, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Prisão civil por dívida e o Pacto de San José da Costa Rica. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

[7] STF, HC n.º 87.585/TO, Tribunal Pleno, voto do Min. Celso de Mello, j. 03.12.2008, fl. 341.

[8] Para detalhes, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 64 e ss. [hoje a obra encontra-se na 5ª edição, publicada pela Editora Forense].

[9] STJ, HC n.º 379.269/MS, 3.ª Seção, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Rel. p/acórdão Min. Antonio Saldanha Palheiro, j. 24.05.2017, DJe 30.06.2017.

Autores

  • é professor-associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), pós-doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa, doutor summa cum laude em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e advogado em São Paulo, Mato Grosso e Distrito Federal.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!