Opinião

Sistema austríaco de controle concentrado de constitucionalidade e a contribuição de Kelsen

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9 de maio de 2024, 19h54

O modelo de controle de constitucionalidade difuso foi o primeiro a ser adotado no mundo, com o surgimento da própria ideia de supremacia da Constituição nos Estados Unidos, a partir da própria Carta norte-americana e, especialmente, do caso Marbury v. Madison.

O jurista austríaco Hans Kelsen

O modelo norte-americano não adotou o controle concentrado de constitucionalidade, ficando limitado ao controle difuso, que visa a declarar a inconstitucionalidade da lei como questão incidental dentro de um processo judicial, surtindo efeitos somente no caso específico, não podendo, advirta-se, a questão da constitucionalidade das leis ser suscita como questão principal.

Ao longo do tempo, muitos países passaram a adotar o sistema americano do controle difuso, como o Canadá, a Austrália, a Índia, o Brasil e a Argentina.

Ocorre que a adoção de um modelo difuso poderia gerar inconvenientes de decisões conflitantes gerando enorme insegurança constitucional. Entretanto, nos países vinculados ao sistema da common law tais problemas foram sanados diante do princípio do stares decisis que vinculou todos os órgãos judiciários às decisões da Suprema Corte [1] ou à soberania do Parlamento como na Inglaterra. Porém, o que dizer dos outros países que não adotavam o stares decisis ou outra forma de evitar tais inconvenientes?

Nesse panorama, foi somente em 1920, por meio da Constituição da Áustria, que o mundo conheceu o controle concentrado de constitucionalidade.

Firmadas essas questões, é salutar relatar um pouco do momento histórico em que se deu a elaboração da Constituição austríaca.

Spacca

Com a queda da monarquia constitucional austríaca do Império Austro-Húngaro, em 1918, instalou-se, na Áustria, uma república com Estado unitário e centralizador. Naquela época, a elaboração da futura Constituição austríaca foi pensada em meio a um Estado unitário. Apesar de ter se transformado em Estado federal após a promulgação da Carta, em 1920, houve preocupação política em centralizar algumas decisões do poder central, razão pela qual se preferiu a adoção de técnicas centralizadoras de poder. Foi assim que surgiu a ideia de um controle concentrado.

A instalação de uma Corte Constitucional idealizada por Hans Kelsen foi uma inovação. A ideia do mestre de Viena era construir um tribunal que não pertencesse a nenhum dos três poderes e que controlasse a constitucionalidade das leis que violassem a Constituição.

Idealização de tribunal constitucional

Foi com base nos pensamentos de vinculação da lei à Constituição que Kelsen idealizou o controle concentrado de constitucionalidade por um tribunal constitucional na elaboração da Constituição da Áustria em 1920.

Conforme salientava Hans Kelsen, não se deve contar com o Parlamento para desfazer leis inconstitucionais por ele expedidas, razão pela qual se faz necessária a instituição de um órgão independente e incumbido de anular atos inconstitucionais das autoridades estatais. Segundo ele, “esse órgão deve ser uma jurisdição ou um tribunal constitucional [2]“. Portanto, o controle de constitucionalidade somente poderia ser entregue a uma jurisdição constitucional [3].

É interessante destacar que Kelsen reconhece que há mesmo ingerência nas atividades do Poder Legislativo com a anulação de leis por outro poder, especialmente por parte do Poder Judiciário que, segundo sua doutrina, serviria, em princípio, apenas para criar normas individuais [4]. Por esse motivo, Kelsen deixa claro que o tribunal cuja função é anular leis por inconstitucionalidade é um órgão do poder legislativo, ressaltando, porém, que a atuação do legislador negativo (o tribunal) é totalmente vinculada à Constituição.

Nada obstante, esse ato ainda é essencialmente uma criação do direito e aplicação em menor medida, motivo pelo qual é uma função jurisdicional exercida no legislativo [5]. Nesse mister, o ato de anulação da lei também possui o mesmo caráter de generalidade verificado no ato de criação da lei, só que, desta feita, exercida com um viés negativo. Assim, é inegável reconhecer que o ato desse tribunal não perde a característica de função legislativa.

Na linha de Hans Kelsen, o juiz singular é, ao mesmo tempo, aplicador e criador da norma individual no julgamento do caso concreto, situação que é igualmente cabível para as decisões colegiadas dos tribunais constitucionais, que expedem decisões constitutivas negativas nas declarações de inconstitucionalidade. Nesse sentido, os juízes constitucionais são uma espécie de legislador negativo [6].

Todavia, o modelo de controle concentrado de constitucionalidade adaptou-se às conveniências políticas, sociais e jurídicas de cada país, atribuindo-se, em sua maioria, competência ao Poder Judiciário para tal mister.

A partir disso, o modelo concentrado expandiu-se pela Europa, sendo adotado pela Itália com a Constituição de 1948, pela Lei Fundamental de Bonn na Alemanha em 1949, pela Constituição do Chipre em 1960, pela Constituição Republicana da Turquia em 1961, pela Constituição da República Socialista da Iugoslávia em 1963, pela Grécia em 1975, pela Constituição da Espanha em 1978, por Portugal em 1982 e pela Bélgica em 1984 [7]. Vale mencionar que também houve expansão do modelo em países africanos como Argélia (1989), África do Sul (1996) e Moçambique (2003) [8].

No Brasil, o sistema de controle concentrado de constitucionalidade foi adotado com a Emenda à Constituição de 1946, de 26 de novembro de 1965.

 


[1] Apesar de todos os órgãos judiciais dos Estados Unidos poderem exercitar o controle difuso de constitucionalidade, a Suprema Corte americana exerce papel hegemônico no contexto do judicial review, uma vez que somente suas decisões em controle difuso possuem efeitos erga omnes e eficácia vinculante após decisão final de uma simples questão incidental no caso concreto, representando a última voz a respeito das questões constitucionais.

[2] KELSEN, Hans. A garantia jurisdicional da Constituição (A justiça constitucional). Revista Direito Público. Instituto Brasiliense de Direito Público. v. 1, n. 1, jul-ago-set, 2003, p. 108.

[3] KELSEN, Hans. A garantia jurisdicional da Constituição (A justiça constitucional). Revista Direito Público. Instituto Brasiliense de Direito Público. v. 1, n. 1, jul-ago-set, 2003, p. 111.

[4] É salutar lembrar que a proposta de Kelsen de criação de um controle concentrado de constitucionalidade por um Tribunal Constitucional, não coloca esse órgão como integrante do Poder Judiciário.

[5] KELSEN, Hans. A garantia jurisdicional da Constituição (A justiça constitucional). Revista Direito Público. Instituto Brasiliense de Direito Público. v. 1, n. 1, jul-ago-set, 2003, p. 109-110.

[6] Hans Kelsen vislumbra a possibilidade de o tribunal anular leis já revogadas, na hipótese de as autoridades continuarem a aplicar as normas revogadas para fatos ocorridos na época de sua vigência. KELSEN, Hans. A garantia jurisdicional da Constituição (A justiça constitucional). Revista Direito Público. Instituto Brasiliense de Direito Público. v. 1, n. 1, jul-ago-set, 2003, p. 115.

[7] CUNHA JÚNIOR, Dirley. Controle de Constitucionalidade: teoria e prática. 6 ed. Salvador: Juspodivm, 2013, p 83.

[8] CUNHA JÚNIOR, Dirley. Controle de Constitucionalidade: teoria e prática. 6 ed. Salvador: Juspodivm, 2013, p 83.

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