Território Aduaneiro

Cejul: o tribunal ilegal da Receita Federal

Autor

  • Leonardo Branco

    é sócio do Escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax) doutor mestre e especialista pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU) de Münster pelo Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) é professor no Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) onde coordena o curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio Internacional" e foi conselheiro titular no Carf entre 2015 e 2023.

19 de dezembro de 2023, 12h15

O Brasil perdeu, neste ano, a oportunidade de estruturar um tribunal administrativo especializado em direito aduaneiro ao criar o Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras (Cejul), instituído pela Portaria MF nº 1.005/2023 e disciplinado pela Instrução Normativa RFB nº 348/2023, um órgão absolutamente ilegal e cuja existência precisa ser repensada. Antes, no entanto, necessário se realizar uma inflexão sobre a impessoalidade.

Logo nas minhas primeiras sessões no centenário Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), chamou-me a atenção o entusiasmo e paixão de alguns colegas conselheiros originários da carreira pública com o direito aduaneiro. Foram em grande parte essas pessoas, algumas das quais hoje tenho orgulho de ter como colegas nesta coluna, que provocaram meu envolvimento com este ramo das ciências jurídicas.

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Posso também afirmar que os assentos do Cejul são hoje ocupados por quadros preparados, técnicos e experientes da Receita Federal do Brasil, a começar pela sua chefia, com ampla experiência como julgadora administrativa, assim como os demais membros da 5ª Turma de Julgamento da DRJ da 2ª Região Fiscal e de suas duas turmas especiais vinculadas.

Dito isso, a análise da estrutura do novo aparato burocrático da Receita se baseia na concepção de que a impessoalidade não é esperar que os agentes públicos tomem decisões baseadas em “boas razões” (concepção com sotaque pombalino, como recordariam os historiadores), mas, pelo contrário, prover-lhes critérios e parâmetros objetivos e controláveis de decisão que possibilitem a “(…) retirada de marcas pessoais do Administrador, exigindo sua neutralidade na atuação administrativa”. [1]

Dou exemplo do que seria uma violação à impessoalidade. No Carf, os presidentes e vice-presidentes de Seção ou de Câmara compõem a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF). No entanto, o Ricarf não aponta para qualquer critério objetivo e vinculante de nomeação, salvo que, entre os conselheiros da representação dos contribuintes, serão escolhidos “preferencialmente entre aqueles com maior tempo de exercício de mandato no Carf” (§ 3º do artigo 12 do Ricarf).

A regra claramente cede o passo para escolhas que podem estar marcadas por afinidades pessoais ou de pensamento: seria possível que um agente decidisse construir uma composição excessivamente “fiscalista” ou “pró-contribuinte”, por exemplo, conforme as suas convicções. A impessoalidade não é esperar que as escolhas sejam baseadas em critérios de isenção, neutralidade, e visando o bem público (“boas razões”), mas se dispor do conjunto de condições e instrumentos para que o sejam. Fazê-lo implica reafirmar a autoridade do órgão administrativo, uma vez que deixa de estar suscetível a esta sorte de desconfiança que corrói o grau de legitimidade de suas decisões.

O objetivo deste artigo, portanto, é realizar a crítica ao desenho institucional do Cejul, e não aos profissionais que o integram. Sob este enfoque, tal órgão, como desenvolvemos anteriormente (aqui),[2] mergulha em uma notável e pouco usual ciranda de violações. Focaremos nos questionamentos a respeito do conceito de uma “autoridade independente” apta a julgar as penas de perdimento.

Em primeiro lugar, o fundamento positivo, em sede de controle de convencionalidade, é muito anterior àquele veiculado pelo no artigo 10.5  do Anexo Geral da Convenção de Quioto Revisada (CQR), internalizada pelo Decreto nº 10.276/2020 quanto ao “direito de recurso para uma autoridade independente da administração aduaneira”.

Na realidade, como apontou com precisão Thális Andrade, ao identificar a construção de um “tribunal para belga ver”, em inteligente e divertida alusão à OMA, a exigência de um julgamento independente em matéria aduaneira existe na realidade do direito positivo brasileiro ao menos desde o artigo X:3(b) Gatt/1947, internalizado pelo Brasil por meio da Lei nº 313/1948 ao prever que “(…) esses tribunais ou procedimentos devem ser independentes das agências encarregadas da execução administrativa”.[3]

Um “tribunal ou conjunto de procedimentos independentes” [artigo X:3(b) do Gatt], ou uma “autoridade independente da Administração aduaneira” (artigo 10.5 da CQR), ou uma “autoridade superior ou independente” (artigo 4.1 do AFC) constituem, objetivamente, um órgão não vinculado aos atos e normas da aduana.

Em artigo publicado nesta coluna,[4] Rosaldo Trevisan fez o seguinte percurso argumentativo: (i) a CQR precisa ser interpretada tal qual foi negociada e é aplicada pelos demais países contratantes, e não levada às últimas consequências (para o que utiliza, de maneira divertida, o recurso à expressão “shallow now”); (ii) a CQR não se imiscui na composição nacional dos órgãos julgadores, exigindo apenas “independência”; e (iii) a Administração aduaneira é exercida no Brasil pela Subsecretaria de Administração Aduaneira (Suana), enquanto os membros do Cejul estão lotados na Subsecretaria de Tributação e Contencioso (Sutri). Como o Centro não é composto por servidores que atuam na Suana, logo, está assegurada a independência.

É necessário que se teste a premissa estabelecida acima: a Sutri está vinculada aos atos e normas da Aduana? Uma vez que incumbe ao secretário da RFB editar atos normativos e administrativos sobre assuntos de competência da Receita, órgão ao qual cabe “interpretar e aplicar a legislação tributária, aduaneira, de custeio previdenciário e correlata, e editar os atos normativos e as instruções necessárias à sua execução” (inciso III do artigo 3º da Portaria ME nº 284/2020, o Regimento Interno da RFB), não se vislumbra em que medida a Sutri e a Suana seriam órgãos independentes.

Para que se afaste qualquer dúvida, o artigo 1º da Lei nº 11.457/2007 determina que a Secretaria da Receita Federal do “tem por finalidade a administração tributária e aduaneira da União”. Sutri e Suana, assim, não podem ser entendidas como entidades separadas e muito menos independentes, salvo se estivermos diante de um caso de heterônomos da Receita, de um lado Álvaro de Campos e de outro Alberto Caeiro.

Desde 1968, com a reforma encabeçada por Gerson Augusto Silva, quando a Direção Geral da Fazenda Nacional foi substituída pela Secretaria da Receita Federal, o Sistema de Fiscalização e Tributação absorveu o departamento de rendas aduaneiras e a Coordenação Geral do Sistema de Controle Aduaneiro passou a ser parte integrante e indissociável da estrutura da SRF.

Não se deve amesquinhar por caminhos interpretativos pouco triviais um direito reconhecido internacionalmente, e, por mais que se reconheça o esforço em defender que a regulamentação tenha sido “um progresso”, uma vez que antes recurso não havia, e agora algo há para se lamentar, não se substitui o nada por uma ilegalidade.

O artigo, [5] inteligente e divertido como o autor é também pessoalmente, acerta ao mencionar que a OMA elaborou “Diretrizes” (“Guidelines”/“Directives”) para auxiliar a interpretação dos comandos na Convenção, de forma a buscar a uniformização da aplicação do textos nos diferentes países membros, vindo a disponibilizar, ademais, as práticas adotadas por alguns países na sua implementação. Equivoca-se, no entanto, ao não recorrer a elas, o que se passa a fazer.

O recurso ao texto das diretrizes (guidelines) é importante ao firmar o entendimento de que o rito recursal estabelecido pela CQR visa “(…) promover um procedimento recursal transparente e multiestágio” com o objetivo de “(…) prevenir a percepção de injustiça pelos afetados pelas decisões das Autoridades Aduaneiras”.

A conclusão das guidelines é bastante esclarecedora: “(…) para que o procedimento recursal garanta à pessoa afetada uma justa e imparcial análise de seu recurso, a norma 10.5 estabelece que deve existir um direito a recurso para uma autoridade independente da Autoridade Aduaneira que analisou a defesa inicialmente”.

O que não se pode? Agir como o cientista americano com sotaque germânico, o personagem título Dr. Fantástico (“Dr. Strangelove”) que, preso à sua cadeira de rodas na sala de guerra construída dentro de um abrigo antiaéreo, na memorável atuação de Peter Sellers, perde continuamente o controle do braço direito, que se ergue sozinho para logo ser contido pelo esquerdo. O argumento da síndrome da mão alienígena tornaria plausível a Receita ter a sensação de que a Suana não lhe pertence, agindo com vontade própria, sendo logo contida pela esfera recursal da Sutri.

Para combater o mal que assola o braço “não tão autônomo” da Receita Federal, ministra-se o remédio judiciário. Assim, a título exemplificativo, no Agravo de Instrumento nº 1010435-07.2023.4.06.0000, em decisão merecedora de encômios proferida em 06/12/2023 pelo Desembargador Federal Ricardo Machado Rabelo, o Tribunal Regional da 6ª Região entendeu “(…) que as Portarias 1.005/2023 e 384/2023, ao criarem o Cejul, órgão da própria Receita Federal do Brasil, composto somente por Auditores Fiscais (cuja função primordial é de fiscalização tributária e aplicação de penalidades), deixaram de observar o requisito da independência em relação à administração aduaneira, conforme exigido pela legislação que lhe dá sustentação”. A Turma, de maneira acertada, acolheu o argumento de que, na prática, o recurso seria apreciado “(…) pelos pares daqueles que, inicialmente, fiscalizou a operação de importação e aplicou a pena de perdimento, deixando de ser assegurada a independência exigida pelos acordos internacionais”.

No Mandado de Segurança nº 1101286-41.2023.4.06.3800, de maneira igualmente correta, foi deferida a ordem liminar pelo Juiz Federal Fabiano Verli, cuja decisão explicita que “(…) a redação dos acordos internacionais internalizados não deixa dúvida sobre a qualificação especial do órgão de revisão de decisões administrativas”, que “(…) tem que ser isento na medida do possível, acima do dia a dia da linha de frente da fiscalização”, sendo evidente que sua composição “(…) não pode ser um mero espelhamento da instância inferior, a qual é, na verdade, alguém não muito diferente do aplicador da sanção”. A conclusão do magistrado é a seguinte: “(…) assim, o art. 3° da portaria MF 1.005/23 é mais que ilegal. Ele afronta diretamente norma supralegal, como são os tratados internacionais de que o Brasil faz parte”.

A previsão do recurso a uma autoridade diversa daquela que promoveu a inflição da penalidade não é cumprida se não estiverem reunidas as condições para que o julgamento ocorra com imparcialidade, o que remete novamente ao conceito definido anteriormente de impessoalidade: não esperar que a decisão seja imparcial, mas prover as condições para que ela possa ser.

Legar a apreciação das razões recursais a um grupo que partilha não apenas o mesmo conjunto normativo, mas também as mesmas experiências, percepções, histórico e formação que a fiscalização aduaneira não previne, mas, pelo contrário, estimula que as interpretações e interesses das Autoridades Aduaneiras influenciem o julgamento. Corre-se o risco de se promover não uma revisão de ato administrativo, mas sim o reforço de uma visão que poderia ganhar novos contornos caso visitada por um terceiro equidistante. A perda de autonomia decresce ao amadurecimento institucional das questões jurídicas.

A independência pode ser plenamente atendida de diversas formas, como já exploramos, [6] seja por meio de um tribunal na estrutura do Ministério da Fazenda ou de outro ministério. Ainda que tenhamos apresentado nossas ressalvas quanto ao Carf como o local mais adequado para conhecer esta sorte de recursos, [7] sobretudo tendo em vista a celeridade demandada pelos casos de perdimento, não se sustenta o frágil e pueril argumento de que esta corte não teria autonomia por conta da existência de um voto de qualidade privativo de um conselheiro de origem da representação da Receita.

Em primeiro lugar, porque o voto de qualidade não se aplica para os casos aduaneiros. Em segundo, tal expediente se trata de instrumento para evitar o non-liquet decorrente de um empate na decisão, e poderia ser qualquer outro. Em terceiro lugar, o conselheiro pode ter uma ou outra origem, mas deixa de representar a Receita ou a iniciativa privada ao se investir no mandato. Em quarto lugar, o Carf não está preso às amarras normativas da Receita Federal, cabendo-lhe realizar o controle de legalidade e de convencionalidade dos atos administrativos.

Tal não ocorre no Cejul, estrutura administrativa que não possibilita a reversão de uma decisão por meio da implementação de uma perspectiva jurídico-normativa distinta daquela em que floresceu o ato recorrido, justamente aquilo que a CQR pretendeu ao assegurar o duplo grau recursal a uma autoridade desvinculada. A Portaria MF nº 1.005/23, ao negar vigência à CQR, criando um rito recursal para autoridade não independente e vinculada à Administração Aduaneira, atuou em violação aos arts. 99 e 100 do CTN, tornando os julgamentos proferidos por este tribunal nulos de pleno direito.

Trata-se, portanto, de um momento importante para que, em um ambiente reformista, discuta-se não apenas a viabilidade da criação de um Tribunal Administrativo autônomo, que substitua o atrapalhado e indefensável Cejul, mas também a respeito da própria pertinência de se insistir na pena de perdimento, cuja inflição bem poderia restar reservada a hipóteses excepcionais, como de proibições e restrições.

Afirmar que a “Administração Aduaneira” não se confunde com a RFB somente estaria correto em uma novela escrita por Stevenson em que a Sutri, na tentativa de separar seu lado bom dos impulsos aduaneiros mais sombrios, houvesse desenvolvido uma poção para provocar agudamente seu transtorno dissociativo e transformá-la, enfim, em uma entidade independente, conhecida por Suana. A história é conhecida e hoje se sabe que ambas são parte integrante de uma mesma estrutura, ou dois lados da mesma moeda.

__________________

[1] BATISTA JUNIOR, Onofre Alves. Transações administrativas: um contributo ao estudo do contrato administrativo como mecanismo de prevenção e terminação de litígios e como alternativa à atuação administrativa autoritária, no contexto de uma Administração pública mais democrática. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 133.

[2] BRANCO, Leonardo; CASTRO NETO, Oswaldo Gonçalves de. A ciranda de violações do novo regime recursal da pena de perdimento. Coluna de 29/08/2023. Disponível aqui

[3] ANDRADE, Thális. Julgamento independente “para inglês ver”: duplo grau recursal administrativo trazido pela Portaria MF nº 1.005/2023. Artigo de 11/10/2023. Disponível em: link

[4] TREVISAN, Rosaldo. Convenção de Quioto revisada: juntos e ‘shallow now’?. Coluna de 05/12/2023. Disponível aqui

[5] TREVISAN, Rosaldo. Convenção de Quioto revisada: juntos e ‘shallow now’?. Coluna de 05/12/2023. Disponível aqui.

[6] BRANCO, Leonardo. O limite recursal, o Carf e as três formas de argumentação. Coluna de 07/02/2023.  Disponível aqui

[7] Idem.

Autores

  • é sócio do Escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax), doutor, mestre e especialista pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU) de Münster pelo Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD), é professor no Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), onde coordena o curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio Internacional", e foi conselheiro titular no Carf entre 2015 e 2023.

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