Direto do Carf

Tributação do ganho de capital e cláusulas 'pro soluto' e 'pro solvendo'

Autor

  • Alexandre Evaristo Pinto

    é conselheiro do Carf doutorando em Controladoria e Contabilidade pela Universidade de São Paulo doutor em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela USP mestre em Direito Comercial pela USP professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis Financeiras e Atuariais (Fipecafi).

8 de maio de 2024, 10h18

Nesta semana, trataremos dos precedentes do Carf nos quais foi avaliada a tributação do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF) sobre o ganho de capital decorrente da alienação de bens e direitos em que houve a utilização de cláusulas “pro soluto” ou “pro solvendo”.

Conforme prevê o artigo 481 do Código Civil, o contrato de compra e venda pressupõe que um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, ao passo que o outro contratante se obriga a pagar-lhe certo preço em dinheiro.

Ocorre que não necessariamente o preço é pago em espécie, havendo situações em que o adimplemento da obrigação é feito por meio da entrega de títulos de crédito.

Dentre tais títulos, merece destaque a nota promissória, que se configura como uma promessa de pagamento nos termos do artigo 54 do Decreto n. 2.044/1908, e é instrumento frequentemente utilizado em operações de compra e venda envolvendo principalmente participações societárias e bens imóveis, ora possuindo caráter “pro soluto”, ora possuindo caráter “pro solvendo”.

Ao discorrer sobre as referidas modalidades de nota promissória, Fran Martins pondera que: “a nota promissória pro soluto é um título abstrato de uso diuturno”, sendo uma promissória comum desligada de sua causa, de modo que o devedor não pode utilizar a causa como meio de defesa ara não pagar o título [1].

Por outro lado, Fran Martins aponta que a nota promissória “pro solvendo” é aquela que está relacionado com um contrato bilateral do qual faz parte, de forma que o devedor pode alegar como justificativa para o não pagamento de tal título a exceção “non adimpleti contractus”, caso não tenha havido o cumprimento da prestação da outra parte [2].

Spacca

Com relação à tributação do ganho de capital pelo IRPF, cumpre destacar que o artigo 3º, § 2º, da Lei nº 7.713/88 determina que o ganho de capital abrange o resultado da soma dos ganhos auferidos no mês, decorrentes de alienação de bens ou direitos de qualquer natureza, considerando-se como ganho a diferença positiva entre o valor de transmissão do bem ou direito e o respectivo custo de aquisição.

Outros dispositivos que devem ser realçados são: (i) o artigo 2º da Lei nº 7.713/88, que estabelece que “o imposto de renda das pessoas físicas será devido, mensalmente, à medida em que os rendimentos e ganhos de capital forem percebidos”; e (ii) o artigo 21 da Lei nº 7.713/88, que determina que “nas alienações a prazo, o ganho de capital será tributado na proporção das parcelas recebidas em cada mês, considerando-se a respectiva atualização monetária, se houver”.

A Receita Federal tem manifestado o seu entendimento por meio de “Perguntas e Respostas” no seguinte sentido:

“596 — Como tributar a venda a prazo com cláusula pro soluto ou pro solvendo?

‘Pro soluto se diz dos títulos de crédito quando dados com efeito de pagamento, como se dinheiro fossem, operando a novação do negócio que lhes deu origem. Pro solvendo, quando são recebidos em caráter condicional, sendo puramente representativos ou enunciativos da dívida, não operando novação alguma, só valendo como pagamento quando efetivamente resgatados’ (Lei <sic> [3] Soibelman, Dicionário Geral de Direito, 1974).

Se houver venda de bens ou direitos a prazo, com emissão de notas promissórias desvinculadas do contrato pela cláusula pro soluto, essa operação deve ser considerada como à vista, para todos os efeitos fiscais, computando-se o valor total da venda no mês da alienação.

Se na venda dos bens ou direitos não houver emissão de notas promissórias ou estas forem emitidas vinculadas ao contrato pela cláusula pro solvendo, essa operação é considerada como venda em prestações, para todos os efeitos fiscais, computando-se em cada mês o valor efetivamente recebido.”

Assim, no caso de cláusula “pro soluto”, a operação será considerada como à vista, ao passo que no caso de cláusula “pro solvendo”, a operação será considerada como venda em prestações, seguindo o regime de caixa. Em complemento à resposta acima, também há outra questão específica na mesma linha nas “Perguntas e Respostas”:

598 — Como deve ser tributado o ganho de capital nas alienações de bens ou direitos quando ocorre emissão de notas promissórias correspondentes às prestações contratadas?

A nota promissória é um título de crédito que se basta a si mesmo, ou seja, tem característica de independência, não se ligando ao ato originário de onde proveio.

Assim, só se caracterizam como venda a prazo, e ao abrigo do diferimento previsto no art. 21 da Lei nº 7.713, de 22 de dezembro de 1988, as operações em que as notas promissórias estejam vinculadas ao contrato pela cláusula pro solvendo.

Se as notas promissórias foram emitidas desvinculadas do contrato, pela cláusula pro soluto, esse contrato está perfeito e acabado, caracterizando a disponibilidade jurídica. Em consequência, ainda que a liquidação seja efetuada em notas promissórias, a apuração do ganho de capital total deve ocorrer no mês da alienação, independentemente de serem os títulos quitados ou não.

Como se observa, o entendimento da Receita é de que as notas promissórias “pro soluto” são desvinculadas do contrato, sendo os seus credores considerados titulares da disponibilidade jurídica. Por outro lado, somente serão consideradas como recebimento a prazo as notas promissórias que estejam vinculadas ao contrato por cláusula “pro solvendo”.

Precedentes

Feitas as considerações gerais sobre o tema, passaremos à análise dos precedentes do Carf que tratam do assunto.

Nos Acórdãos 2802­00.795 (11/5/11) e 2801­01.579 [4] (12/5/11), as turmas negaram provimento ao Recurso Voluntário, de forma unânime, mantendo os autos de infração relativos ao IRPF devido sobre ganho de capital decorrente da alienação de participação societária em que o pagamento foi feito por meio de notas promissórias.

Ao analisar os contratos de compra e venda de participação societária, as turmas entenderam que as notas promissórias emitidas estavam desvinculadas do contrato original, não havendo neste qualquer cláusula “pro solvendo” que vinculasse a quitação do contrato ao resgate das notas promissórias.

Destaque-se que havia em ambos os casos cláusula contratual pela qual as partes se outorgavam “a mais ampla, plena, rasa, geral, irrevogável, irretratável e recíproca quitação com relação às cotas ora cedidas e transferidas, para nada mais reclamarem, uns dos outros, em tempo algum, seja a que título e/ou pretexto for, dando a presente cessão e transferência de quotas como firme, boa, perfeita e acabada”.

Nessa linha, as decisões foram no sentido de que a alienação de bens ou direitos a prazo, com emissão de notas promissórias desvinculadas do contrato pela cláusula “pro soluto”, é considerada como operação à vista, para todos os efeitos fiscais, computando-se o valor total da venda no mês da alienação, independentemente de serem os títulos quitados ou não posteriormente, visto que fica caracterizada a disponibilidade jurídica para efeito de incidência do Imposto sobre a Renda.

No Acórdão 2201­003.126 [5] (10/5/16), a turma decidiu, por maioria de votos, por negar provimento ao Recurso Voluntário, mantendo o auto de infração de IRPF sobre ganho de capital incidente na cessão de direitos hereditários cujo pagamento se deu por meio de nota promissória “pro soluto”.

O relator assinalou que a entrega da nota promissória com cláusula pro soluto constituiu, desde logo, a quitação da dívida contraída, considerando-se consumado o pagamento da dívida, mesmo antes de saldados os títulos, citando inclusive o Recurso Especial nº 1.133.410/RS do Superior Tribunal de Justiça, em que se decidiu que o pagamento por cartão de crédito é modalidade de pagamento à vista, pro soluto, implicando, automaticamente, extinção da obrigação do consumidor perante o fornecedor.

Nos Acórdãos 2401­005.163 e 2401­005.164 [6] (06/12/17), a turma decidiu, por unanimidade, por dar provimento ao Recurso Voluntário, exonerando o IRPF devido sobre o ganho de capital decorrente da cessão de direitos hereditários envolvendo bens imóveis com o pagamento por meio de notas promissórias “pro soluto”.

Por mais que se trate de caso com nota promissória “pro soluto”, o conselheiro relator afirmou que “o fato de ser pro soluto ou pro solvendo apenas desvincula a dívida da obrigação, não influenciando na forma da percepção dos valores da dívida, sendo esta no mês do vencimento e não como se à vista fosse”.

O conselheiro relator pontuou que a tributação do ganho de capital deve seguir o artigo 2º da Lei nº 7.713/88, que estabelece que o IRPF seja devido, mensalmente, à medida em que os rendimentos e ganhos de capital forem percebidos, ou seja, o IRPF necessariamente será devido tão somente no momento do recebimento efetivo de numerário.

Tendo em vista que no caso concreto, os pagamentos foram acordados a prazo e em parcelas representadas por notas promissórias emitidas “pro soluto”, o ganho de capital será apurado pelo regime de caixa, nos termos do já mencionado artigo 2º da Lei nº 7.713/88.

No Acórdão 2202­004.744 [7] (10/8/18), a turma negou provimento ao Recurso Voluntário, de forma unânime, mantendo o IRPF devido sobre o ganho de capital decorrente da alienação de imóvel em que o pagamento se deu por meio de nota promissória com a cláusula “pro soluto”.

Constou no voto do relator que na hipótese da nota promissória ser emitida com natureza “pro soluto”, o credor não pode acionar o devedor para rescindir o negócio jurídico por descumprimento da obrigação de pagar o preço, de modo que somente poderá acioná-lo para cobrar a nota promissória, visto que a obrigação se extinguiu no momento da emissão e entrega do título ao credor, sendo que, eventual inadimplência do devedor não teria o condão de extinguir o fato jurídico tributário.

No Acórdão 2401-011.643 [8] (7/3/24), a turma deu provimento parcial, por maioria de votos, ao Recurso Voluntário, mantendo o IRPF devido sobre ganho de capital decorrente de alienação de participação societária por meio de pagamento com notas promissórias “pro soluto” e exonerando o IRPF calculado sobre valores depositados em conta “escrow”.

O contribuinte argumenta que a emissão das notas promissórias deu surgimento a uma nova obrigação entre os vendedores e a adquirida, sendo que elas estariam atreladas e submetidas às condições estabelecidas no contrato de compra e venda de participação societária, e que, nos termos do contrato, os valores deveriam permanecer depositados em conta “escrow” até que fossem encerradas as contingências materializadas e já reivindicadas pela adquirida, devendo os valores depositados servirem para compensação de outros ajustes.

Assim, o contribuinte defende que o caráter “pro soluto” das notas promissórias não impediria que seu valor estivesse sujeito aos ajustes previstos no contrato de compra e venda de participação societária.

Para melhor descrição da situação, cabe transcrever o seguinte trecho do voto da relatora:

“da forma como a operação foi estruturada pelas partes, é possível distinguir dois momentos: (i) a operação de compra e venda das ações, com preço definido e cujo pagamento foi realizado à vista, que levou ao recolhimento do Imposto de Renda na modalidade de ganho de capital pelo sujeito passivo, considerando, inclusive, as notas promissórias recebidas, na modalidade pro soluto; e (ii) um segundo momento da negociação, no qual as notas promissórias e seus juros e variação cambial funcionaram como garantia para a compradora, para quitação de eventuais contingências ou passivos ocultos, no prazo de vencimento das notas promissórias (3 anos). Os vendedores assumiram a responsabilidade pelo pagamento dessas contingências e dívidas, mesmo estando relacionadas às ações alienadas, ao garantir que os valores das notas promissórias e sua remuneração seriam destinados ao pagamento de tais contingências.”

A relatora assinala que a interpretação dada pela fiscalização ao negócio jurídico foi correta dado que a forma estabelecida no contrato de compra e venda confirma se tratarem de notas promissórias “pro soluto” que configurariam uma alienação à vista.

No que tange aos recursos que estavam depositados em conta “escrow”, a relatora assevera que tais valores não poderão ser considerados como disponíveis para as pessoas físicas, o que somente aconteceria quando tais valores pudessem ser levantados pelos vendedores após o pagamento de todas as contingências previstas contratualmente.

Diante de todo o exposto, nota-se que a maior parte dos precedentes do Carf têm entendido que as operações adimplidas com notas promissórias “pro soluto” são consideradas como operações à vista, estando sujeitas à tributação pelo ganho de capital, ao contrário, das operações adimplidas com notas promissórias “pro solvendo”, que são consideradas como operações a prazo, sendo tributadas tão somente no momento do recebimento efetivo dos valores nelas mencionado.

*Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

_________________________

[1] MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 271.

[2] MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 271.

[3] Leib Soibelman.

[4] Conselheira Tânia Mara Paschoalin.

[5] Conselheiro Marcelo Vasconcelos de Almeida.

[6] Ambos de relatoria do Conselheiro Rayd Santana Ferreira.

[7] Conselheiro Martin da Silva Gesto.

[8] Conselheira Ana Carolina da Silva Barbosa.

Autores

  • é professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP), conselheiro do Carf e do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN), doutorando em Controladoria e Contabilidade pela USP, doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP e mestre em Direito Comercial pela USP. Ex-presidente da Aconcarf.

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