Opinião

Duplo grau recursal administrativo trazido pela Portaria MF nº 1.005/2023

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11 de outubro de 2023, 18h19

No período regencial da nossa história, mais especificamente no ano de 1831  até que Pedro de Alcântara atingisse a maioridade para ser coroado —, o Brasil foi governado por parlamentares. Logo no início dessa fase, em 7 de novembro de 1831, o governo brasileiro buscou regulamentar o fim da escravidão no Brasil por meio da chamada "Lei Feijó", que prometia acabar com o tráfico de escravos no país, mas que passou longe desse objetivo [1].

Nos últimos anos, o Brasil parece reviver essa situação na esfera recursal administrativa de âmbito aduaneiro. Com a adesão à Convenção de Quioto Revisada (CQR), internalizada no país por meio do Decreto nº 10.276, de 13 de março de 2020, passou a fazer parte de nosso ordenamento jurídico a garantia de que "quando um recurso interposto perante as Administrações Aduaneiras seja indeferido, o requerente deverá ter um direito de recurso para uma autoridade independente da administração aduaneira" [2].

É sabido que esse direito passou ainda por um período de graça de 36 meses [3], contados a partir do seu depósito em Bruxelas (Bélgica), sede da Organização Mundial de Aduanas (OMA), no dia 5 de dezembro de 2022, prazo que acabou sendo estendido pelo Comitê Gestor da CQR por mais um ano [4].

No entanto, o processo legislativo nacional de adaptação ocorreu antes do término dessa extensão, culminando na edição da Lei nº 14.651, de 23 de agosto de 2023. Essa lei finalmente tirou as amarras do Decreto-Lei nº 1.455, de 7 de abril de 1976 (que até hoje regula o processo de perdimento de mercadorias) ao finalmente revogar o § 4º do artigo 27 que determinava seu julgamento em instância única. Além disso, acrescentou a faculdade de interposição de recurso no prazo de 20 (vinte) dias (artigo 27-D), e delegou ao Ministro da Fazenda a regulamentação do rito de julgamento (artigo 27-E).  

Portanto, a expectativa era que o ministro da Fazenda fizesse bom uso dessa delegação, operacionalizando o grau recursal com independência formal — fora da estrutura da Receita Federal do Brasil, que atua como autoridade aduaneira no Brasil  e material  com julgamento paritário e livre de influência da autoridade do seu órgão institucional.

No entanto, preferiu-se reviver a solução de Feijó…

Isso porque a materialização do recurso se deu com a Portaria Normativa MF nº 1.005, de 28 de agosto de 2023, que criou o chamado Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras (Cejul). Trata-se de um espécie de comitê, dentro da própria estrutura da Receita Federal [5], integrada exclusivamente por Auditor-Fiscais da RFB [6] destacados das unidades que aplicavam a penalidade de perdimento.

Percebe-se, que a pasta da Fazenda realmente acredita que o compromisso de independência da CQR resta atendido ao deslocar o Centro de Julgamento de Recursos para a porta ao lado, isto é, destacando a competência de nomeação e dispensa de Auditores para a Subsecretaria de Tributação e Contencioso da RFB (Sutri), como se houvesse independência funcional nesta unidade, bastando estar "fora" de qualquer nomenclatura que envolva a palavra aduaneira, como a Subsecretaria de Administração Aduaneira (Suana) [7].

Aqui, vale destacar que a experiência internacional do Acordo Geral de tarifas e Comércio (Gatt) de 1947, internalizado pelo Brasil por meio da Lei nº 313, de 30 de julho de 1948, já prescrevia há quase oitenta anos a necessidade de um julgamento independente em assuntos aduaneiros, no seu artigo X:3(b) [8].

Ao longo da história do Gatt, posteriormente incorporado pela Organização Mundial do Comércio (OMC), alguns julgados confrontaram esse dispositivo deixando claro que o termo "independente", no contexto do Artigo X:3(b) do Gatt, deve ser interpretado como não estando sujeito ao controle ou influência de outro órgão, não associado a outra entidade (geralmente maior):

"O Painel observa que o termo 'independente' é definido como 'não sujeito ao controle ou influência de outro; não associado a outra entidade (geralmente maior)'. Com base no significado comum do termo 'independente', o Painel entende que os tribunais ou procedimentos judiciais, arbitrais ou administrativos para a revisão e correção de ações administrativas relacionadas a questões aduaneiras sob o Artigo X:3(b) do Gatt 1994 devem estar livres do controle ou influência das agências administrativas cujas decisões são objeto de revisão. Mais especificamente, entendemos que tais tribunais e procedimentos devem ter a capacidade de conduzir a revisão prevista no Artigo X:3(b) do GATT 1994 com liberdade, em termos institucionais e práticos, da interferência das agências cujas decisões estão sendo revisadas." [9]

Portanto, independência deve ser, de fato, uma conquista material, substantiva, que não fica à mercê de nomenclaturas regimentais. Por outro lado, apesar de a visão doméstica ainda privilegiar demasiadamente um corporativismo em detrimento dos tratados vigentes, as lentes internacionais continuam ajustadas, observando com muita nitidez o alcance jurídico das normas firmadas pelo Brasil na comunidade internacional.

Esperamos que o país possa também corrigir sua visão, mas que não seja ao tempo de Eusébio de Queiroz [10]. Até lá, nosso duplo grau recursal em perdimento continuará sendo nossa "Lei Feijó", para inglês, ou melhor, "para belga ver".

 

 


[1] De acordo com Luiz Gustavo Santos Cota, "fruto das pressões exercidas pelo governo britânico, interessado na extinção do comércio negreiro, a lei Feijó foi praticamente ignorada por traficantes escravista, e mesmo pelo Estado, até que a lei Eusébio de Queiroz, promulgada em 1850, determinou o que seria um ponto final na importação de braços africanos para terras brasileiras. Ao contrário do que se sustentou durante muito tempo, a lei de 1831 não serviu apenas para distrair os 'olhos' ingleses, tendo sido utilizada, sobretudo na década de 1880, como um dos mais incisivos instrumentos legais de combate à escravidão, em meio à campanha abolicionista". (Não só "para inglês ver": justiça, escravidão e abolicionismo em Minas Gerais, Não só "para inglês ver": justiça, escravidão e abolicionismo em Minas Gerais. Revista História Social, São Paulo: Unicamp, 2012, p. 65-92. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/viewFile/912/683. Acesso em 29.09.2023).

[2] Decreto nº 10.276/2020, Norma 10.5.

[3] Decreto nº 10.276/2020, artigo 13.1.

[4] WORLD CUSTOMS ORGANIZATION. The RKC/MC kicks off discussion on the draft revisions to the RKC Guidelines. Disponível em: https://www.wcoomd.org/en/media/newsroom/2023/march/the-rkc-mc-kicks-off-discussion-on-the-draft-revisions-to-the-rkc-guidelines.aspx. Acesso em 29.09.2023.

[5] Portaria Normativa MF nº 1.005/2023: "Artigo 3º Fica criado o Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras – Cejul, no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, que tem por finalidade julgar impugnações e recursos protocolados em processos que versem sobre as penalidades a que se refere o artigo 2º".

[6] Portaria Normativa MF nº 1.005/2023: "Artigo 3º, §1º O julgamento das impugnações e dos recursos a que se refere o caput compete aos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil em exercício no Cejul".

[7] O mesmo ocorre para as sanções administrativas previstas na Lei nº 10.833/2003, artigo 76, §13, que prescreve que "da decisão que aplicar a sanção cabe recurso, a ser apresentado em 30 dias, à autoridade imediatamente superior, que o julgará em instância final administrativa".

[8] Gatt/1947, artigo X:3(b): "Cada parte contratante deverá manter, ou instituir o mais breve possível, tribunais ou procedimentos judiciais, arbitrais ou administrativos com o objetivo, entre outros, de pronta revisão e correção de ações administrativas relacionadas a assuntos aduaneiros. Esses tribunais ou procedimentos devem ser independentes das agências encarregadas da execução administrativa, e suas decisões devem ser implementadas por essas agências e reger a prática delas, a menos que um recurso seja interposto junto a um tribunal de jurisdição superior dentro do prazo prescrito para a interposição de recursos pelos importadores; Desde que a administração central de tal agência possa tomar medidas para obter uma revisão da questão em outro procedimento se houver motivo para acreditar que a decisão é inconsistente com os princípios jurídicos estabelecidos ou com os fatos reais". [tradução livre]

[9] OMC, Relatório do Painel, CE – Assuntos Aduaneiros Selecionados, para. 7.520, tradução livre.

[10] A Lei Eusébio de Queirós nº 581/1850, promulgada no Segundo Reinado, é que de fato proibiu a entrada de africanos escravos no Brasil, criminalizando quem a infringisse, conforme o seu artigo 3º.

Autores

  • é advogado, doutorando em Direito pela USP, mestre em Direito pela UFSC e pelo World Trade Institute (Suíça), professor de Legislação Aduaneira e Comércio Internacional em cursos de pós-graduação, subsecretário de Facilitação de Comércio substituto no Ministério da Economia, autor de diversas publicações na área aduaneira, como a obra Curso de Direito Aduaneiro: Jurisdição e Tributos em Espécie (Dialética, 2021).

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