Território Aduaneiro

A hora e a vez da especialização aduaneira

Autor

  • Fernando Pieri Leonardo

    é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados mestre em Direito pela UFMG pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa professor de Direito Aduaneiro e Tributário Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG multiplicador do Programa OEA da Receita Federal membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

30 de abril de 2024, 8h00

Realmente o Direito Aduaneiro vive um momento de efervescência e destaque, como registrou o colega de coluna Rosaldo Trevisan, em seu artigo recém publicado pela Aduana News. [1]

Spacca

É um momento de crescente reconhecimento da área aduaneira e da importância da especialização para lidar com suas questões. Podemos nominar alguns fatores que atestam como a temática aduaneira se encontra em destaque.

Um deles são os projetos de lei que tramitam no Congresso sobre matérias aduaneiras, em especial, o PL 508/24 [2], o PL 15/24 [3] e os projetos de leis complementares e trabalhos do GT1 da reforma tributária [4] sobre a tributação do consumo, dedicado às importações, exportações, aos regimes aduaneiros especiais e às Zonas de Processamento de Exportação (ZPE).

Mais do que a importância dos projetos e regulação que sobrevirá deles, o destaque é para a mobilização dos profissionais do setor público e privado em torno dos mesmos. Não era comum que houvesse esse acompanhamento próximo e participativo de projetos de lei sobre temas aduaneiros; quando existiam, em regra, tomava-se conhecimento das normas quando já tinham sido publicadas.

Em relação aos mesmos, tem havido intensa mobilização e participação de associações e entidades do setor privado, comissões da OAB e de representantes governamentais.

Extremamente salutar essa múltipla participação nas discussões prévias à edição das normas a que todos estaremos, posteriormente, sujeitos. Aliás, são caminhos que, por não serem percorridos comumente, por vezes, parecem obscuros e difíceis, mas que precisam ser, cada vez mais, conhecidos e facilitados para que as contribuições dos interessados possam chegar à mancheias aos legisladores. Esses fatos são reveladores da relevância e crescente atuação da comunidade de especialistas aduaneiros.

Carf

Outro fato marcante é a criação das turmas especializadas em matéria aduaneira no Carf que tiveram seu histórico lançamento no dia 18 de abril próximo passado. Essa alvissareira realidade foi antecipada na coluna por Liziane Meira e Rosaldo Trevisan [5], merecendo transcrição e lembrança as lições de Ricardo Xavier Basaldúa [6] mencionadas naquela oportunidade, sobre a importância dessa especialização nos julgamentos dos processos administrativos por  oferecerem

“soluções técnicas; adaptação à especialização dos ramos jurídicos; redução do uso incorreto de institutos tributários para tratar de temas aduaneiros; segurança jurídica e equidade” permitindo “decisões mais céleres e adequadas tecnicamente, mais duradouras, e com mais justiça e equidade.”

Nessa esteira da inovação no Carf e sob o eco das lições de Barsaldúa, é importante hastear a bandeira pela defesa de que também no Poder Judiciário seja reconhecida, de forma mais ampla e efetiva, a especificidade da matéria aduaneira para serem criadas varas com essa competência.

Salvo a 6ª Vara da Justiça Federal do Paraná, que foi honrosamente ocupada pela juíza doutora Vera Feil Ponciano [7] durante muitos anos, e as iniciativas do TRF da 2ª Região, com a designação da 16ª e 29ª Varas Federais do Rio de Janeiro, como exclusivas para direito aduaneiro, concorrência, comércio internacional, marítimo e portuário [8], não se tem notícias de outras com atuação especializada na matéria.

Além do exposto e da doutrina crescente, dos grupos de pesquisa, do surgimento de disciplinas específicas em mestrado, das diversas pós-graduações e cursos de extensão direcionados para especialização do profissional aduaneiro, é importante lembrarmos e defendermos a necessidade da inclusão do Direito Aduaneiro nas grades curriculares de graduação em Direito, o que ainda é praticamente inexistente em nosso país.

Como decorrência natural dessa importância e destaque que têm sido palmilhados e conquistados pela disciplina, certamente, essa será também uma realidade que esperamos se concretize em futuro próximo.

A relevância da especialização aduaneira é cada vez mais necessária para aqueles que querem atuar junto ao setor privado. Assim como há necessidade e grandes vantagens na especialização dos órgãos de julgamento administrativo, ou judicial, também a especialização do advogado aduaneirista é essencial.

Não adianta que os julgadores se dediquem à matéria, se as partes não estiverem sendo representadas por profissionais com essa expertise. As chances de êxito são potencializadas se o postulante, em contencioso aduaneiro, detiver conhecimento mais aprofundado da matéria.

As quizílias aduaneiras têm nuances singulares, cujo enfrentamento requer apropriação de conceitos e conhecimentos que lhe são inerentes. Sem o ferramental próprio, certamente, a boa solução de tais questões fica dificultada.

Um profissional dedicado a temas aduaneiros poderá enfrentar, com maior eficácia, diversos desafios sob demanda dos intervenientes, empresas importadoras e exportadoras, depositários, agentes de carga, despachantes aduaneiros, transportadores, tradings, etc.

Exemplo

Vejamos um exemplo prático de inquietação por parte de empresas importadoras que é abrangente e imprescinde de bom conhecimento de conceitos aduaneiros de diversos matizes.

Em comunicado recente recebido da malha aduaneira [9], o importador foi cientificado quanto a indícios de erro na classificação tarifária nas DIs listadas no que tange a determinado produto (reagentes de diagnósticos ou de laboratório), sendo-lhe indicada a posição NCM por ele utilizada — 30.02 — como incorreta, assim como a que seria a desejável — 38.22, em relação às importações registradas no período de 2022 e 2023.

Segundo o comunicado, a partir da VII Emenda ao Sistema Harmonizado, introduzida no nosso ordenamento jurídico pela IN RFB no 2.054/21, tais produtos passaram a ter nova classificação tarifária, portanto, o importador deveria ter registrado suas declarações na nova posição (NCM) e, por conseguinte, deveria ter recolhido PIS e Cofins sobre suas importações, o que na classificação anterior não seria devido.

Conforme afirmado no comunicado recebido, a legislação de regência de tais contribuições — Lei no 10.865/04, artigo 8º, §11, inciso II e Decreto no 6.426/08, em seu artigo 1º, inciso III, prevê a aplicação de alíquota zero para tais produtos quando classificados na posição 30.02.

Como a posição 38.22 não estava citada na norma de exoneração, no período analisado, haveria necessidade de recolhimento do PIS e da Cofins sobre as importações pós alteração da Tarifa Externa Comum (TEC).

Ao analisar as referidas alterações na TEC, de fato, os reagentes classificados na posição 30.02 passaram a posição 38.22, por força da Emenda VII ao Sistema Harmonizado, de sua aprovação e utilização como base para o texto da TEC. [10]

No entanto, em relação ao tratamento do PIS e Cofins importação, o importador poderia, em princípio, convencer-se de que, de fato, com a mudança na classificação tarifária do produto, o mesmo não faria mais jus ao tratamento excepcional da alíquota zero às contribuições PIS e Cofins nas importações.

No entanto, reconhecendo que, no caso, a mudança do código tarifário não representava alteração na essência do produto, mas sim uma atualização na taxonomia de forma a especificar melhor algumas mercadorias ou abandonar graus de detalhamentos que se tornam desnecessários, e a NCM sofre alterações que podem ser de extinção, ou fusão, de códigos, desdobramento dos mesmos, realocação de mercadorias e códigos já existentes ou recém-criados, ao aprofundar a pesquisa, o importador se depararia com um Ato Declaratório Interpretativo e duas Soluções de Consulta exatamente sobre os efeitos de tais alterações em relação aos tributos niveladores.

Trata-se do ADI RFB nº 7, de 27/12/2018 [11] e das Soluções de Consulta no 62 (Cosit), de 29 de março de 2018 [12] e a Disit/SRRF03 nº 3003, de 13 de março de 2023. [13]

A Receita Federal, ao analisar questionamento sobre a manutenção da alíquota zero para produtos da posição 30.02, quanto à mudança de sua classificação tarifária, considerando que a nova NCM não estava prevista expressamente nas normas relativas ao PIS e a Cofins, respondeu

“…ainda que o código 3002.10.29 da NCM não mais exista, por força da Resolução Camex nº 125, de 2016, que internalizou as emendas havidas no SH e na NCM, a referência legal ao código ora extinto continua a mesma, devendo, portanto, o benefício concedido permanecer aplicável apenas, e necessariamente, aos produtos que nele se classificavam à época da publicação da lei instituidora e de seu decreto regulamentador.”

No entendimento externado nos referidos Ato Declaratório Interpretativo e Soluções de Consulta, cabe ao intérprete fazer a integração das novas NCMs com o restante do ordenamento jurídico, viabilizando a correspondência entre as antigas e as novas classificações tarifárias, “preservando assim a intenção original do legislador [14].”

Tais conclusões da Solução de Consulta Cosit no 62/2018 foram convalidadas e incorporadas na Solução de Consulta Disit/SRRF03 nº 3003/2023, que teve sua resposta publicada vinculando-se a sua antecessora sobre o mesmo tema.

Considerando o efeito vinculante das soluções de consulta, conforme artigo 33 da IN RFB no 2.058/21, elas respaldam o sujeito passivo ainda que não seja o consulente. Dessa forma, nos termos do próprio comunicado da malha aduaneira, o importador poderia respondê-lo apresentando as razões pelas quais entende não serem devidas as contribuições sobre a importação.

Na hipótese eventual de haver alguma divergência junto a Administração Aduaneira, caberia ao interveniente, caso quisesse se resguardar quanto ao seu direito à não sujeição a recolhimentos de PIS e Cofins sobre suas importações, ingressar em juízo pleiteando medida acautelatória para suspender a exigibilidade dos tributos, ou oferecer a diferença pecuniária em depósito integral do seu montante, nos termos da legislação.

Assim como essa questão, a rotina das atividades aduaneiras suscita um sem número de demandas, de resto muito instigantes e interessantes para aqueles que queiram se enveredar por seus meandros. Fica nossa observação, com entusiasmo de quem tem vivenciado esse despertar e consolidação da temática aduaneira, de que, cada vez mais, as empresas têm estado sensíveis à especialidade temática da área, procurando se cercar, quando intervenientes da cadeia global de valor, seja em qual elo for, de profissionais com essa especialização. As mudanças e novidades só reforçam e consolidam tudo isso.

Com viés de contribuir nesse sentido, a Abead (Associação Brasileira de Estudos Aduaneiros) está preparando seu Congresso anual. Dessa feita tomará lugar no auditório da Cidade Administrativa do Estado de Minas Gerais e acontecerá nos dias 22 e 23 de agosto, quando esperamos poder encontrá-lo(a) para participar dos debates sobre relevantes temas aduaneiros.

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[1] Disponível em : link. Acesso em 26/04/2024

[2] Sobre o tema do Projeto de Lei 508/2024 que indica a pretensão de consolidar a legislação federal sobre comércio exterior, escreveram  BRANCO, Leonardo. Códigos, consolidações e regulamentos: o mapa do Direito Aduaneiro” (19/03/2024)., disponível em: link e KOTZIAS, Fernanda e SUCUPIRA, Renata. Chegou o momento de um Código Aduaneiro Brasileiro. (02/04/2024). Disponível em link

[3] Acerca do Projeto de Lei 15/2024, escrevemos: A César o que é de César: a relação entre o Fisco e os contribuintes em 2024. Disponível em  link

[4] A Reforma Tributária e os impactos nos tributos aduaneiros foi objeto de algumas publicações nessa coluna: PIERI, Fernando e LACERDA, Daniela. Sobre reformas e tributos aduaneiros expectativas. Disponível em: link MEIRA, Liziane: Reforma tributária e impactos da bala de prata nos regimes aduaneiros especiais. Disponível em link.  E A reforma tributária está saindo, mas como fica o comércio exterior? Disponível em link KOTZIAS, Fernanda. Reforma Tributária e Facilitação do Comércio Exterior: caminhos opostos ?  Disponível em: link

[5] A especialização aduaneira no CARF está chegando. Disponível em: link

[6] BASALDÚA, Ricardo Xavier. “Importancia de la Jurisdicción Especializada em Materia Aduanera: situación en Argentina”. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas atuais de Direito Aduaneiro II. São Paulo: Lex, 2015, p. 61-86.

[7]https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=noticia_visualizar&id_noticia=26215#:~:text=A%20Justiça%20Federal%20da%204ª,relacionados%20ao%20comércio%20exterior%20nacional.

[8] Resolução nº trf2-rsp-2018/00055, de 12 de dezembro de 2018

[9] PNMA – Programa Nacional da Malha Aduaneira foi criado pelo Portaria Coana no 76/2020:  http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=113872.

[10] A IN RFB 2054/2021 aprovou a VII Emenda à Nomenclatura do Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias, prevendo em seu artigo 1º:  “Fica aprovada, nos termos do Anexo Único desta Instrução Normativa, a VII Emenda à Nomenclatura do Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias (SH), constante do Anexo da Convenção Internacional promulgada pelo Decreto nº 97.409, de 23 de dezembro de 1988.” Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=122022

[11] Disponível em http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=97730 , acesso em 21/04/2024

[12] Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=92312, acesso em 21/04/24

[13] Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=129627 , acesso em 21/04/24

[14] No campo infralegal, a Receita Federal, através da IN RFB nº 2.152, de 14/07/2023, atualizou a IN RFB 2.121/2022, para fazer constar no seu art. 479 as novas nomenclaturas, senão vejamos: Art. 479. Ficam reduzidas a 0% (zero por cento) as alíquotas da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação incidentes na importação de produtos farmacêuticos classificados na Tipi (Lei nº 10.865, de 2004, art. 8º, § 11, inciso I; Decreto nº 6.426, de 2008, art. 2º; e Ato Declaratório Interpretativo nº 7, de 27 de dezembro de 2018): I – (…); II – nos códigos (…), 3822.11.00, 3822.12.00, 3822.19.40 e 3822.19.90; (Redação dada pelo(a) Instrução Normativa RFB nº 2152, de 14 de julho de 2023)

Autores

  • é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados, mestre em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa, professor de Direito Aduaneiro e Tributário, Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB, presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG, multiplicador do Programa OEA da Receita Federal, membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

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