Opinião

Efeito suspensivo nos embargos à execução e caráter elitista do Processo Civil

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10 de dezembro de 2023, 11h22

O termo “discriminação” encontra suas raízes etimológicas no latim discriminatiōne, aludindo ao ato ou efeito de discriminar. Em uma perspectiva prática, pode ser definido como a expressão de um tratamento desigual direcionado a grupos específicos de pessoas e setores da sociedade. A discriminação se manifesta em diversos contextos do cotidiano social, sendo nosso enfoque a análise de sua presença ao longo dos anos no âmbito do processo civil brasileiro.

O título deste artigo propõe uma reflexão sobre o caráter elitista do Processo Civil brasileiro, destacando, em especial, o processo de execução e os mecanismos de defesa disponíveis ao executado. Observaremos, de maneira particular, a defesa primordial representada pelos embargos à execução, possivelmente a mais abrangente.

Para compreender o contexto histórico, é crucial revisitar a sistemática estabelecida pelo Código de Processo Civil de 1973, posteriormente reformulado pela Lei 11.382/06. Para uma compreensão visual comparativa, torna-se relevante transcrever os artigos revogados relacionados ao tema central desta reflexão:

 

“Art. 737. Não são admissíveis embargos do devedor antes de seguro o juízo: (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)
(…)
Art. 739. O juiz rejeitará liminarmente os embargos:
(…)
§ 1 o Os embargos serão sempre recebidos com efeito suspensivo. (Incluído pela Lei nº 8.953, de 13.12.1994) (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)”

 

Destacamos o texto legal alterado com a reforma proposta pela Lei 11.382/2006:

“Art. 736. O executado, independentemente de penhora, depósito ou caução, poderá opor-se à execução por meio de embargos.

Art. 739-A Os embargos do executado não terão efeito suspensivo. (vide ADIN 5.165)”

 

A redação pré-reforma de 2006 demandava a prestação de garantia para o recebimento dos embargos à execução, conferindo efeito suspensivo automático à execução. Isso já revelava um caráter discriminatório e elitista, ao condicionar a própria possibilidade de embargar àqueles que possuíam patrimônio suficiente para assegurar o cumprimento do pretenso ato executório.

Após a reforma, a regra geral passou a ser a ausência de efeito suspensivo automático para os embargos. Excepcionalmente, a requerimento do embargante, o juiz poderia atribuir esse efeito, quando verificado a probabilidade do direito e o risco de dano irreparável ou de difícil reparação.

Diante desse retrospecto histórico, analisamos o contexto atual, que perpetua a natureza elitista ao conceder tratamento diferenciado entre jurisdicionados com e sem capacidade patrimonial. O efeito suspensivo é estritamente reservado àqueles com patrimônio, enquanto aos menos afortunados cabe enfrentar um extenso processo executório em todos os seus possíveis desdobramentos, até que sua pretensão jurisdicional seja reconhecida por sentença de mérito.

Essa essência elitista é consolidada pelo atual artigo 919 do CPC, que, divergindo do texto legal anterior, estipula que a garantia da execução é requisito obrigatório e indispensável para a concessão do efeito suspensivo, in verbis:

 

Art. 919. Os embargos à execução não terão efeito suspensivo.
§ 1º. O juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito suspensivo aos embargos quando verificados os requisitos para a concessão da tutela provisória e desde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes.”

 

Apesar da visão discriminatória concebida pelo legislador, é imperativo ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça segue a mesma linha ao julgar a garantia do juízo como elemento imprescindível e fundamental para a suspensão do processo executório, como evidenciado na posição da Corte Superior no julgamento do REsp nº 1.689.171-SP:

 

“AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1689171 – SP (2020/0083958-3) RELATOR : MINISTRO ANTONIO CARLOS FERREIRA AGRAVANTE : GIOVELLI CIA LTDA – EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL ADVOGADOS : MARCELO CARLOS ZAMPIERI – RS038529 CARLOS ALBERTO BECKER – RS078962 AGRAVADO : ENGELHART CTP (BRASIL) S.A ADVOGADOS : NANCY GOMBOSSY DE MELO FRANCO – SP185048 THIAGO SOARES GERBASI – SP300019 TATYANA BUFFULIN DE ALMEIDA – SP375540 EMENTA CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. EFEITO SUSPENSIVO. GARANTIA DO JUÍZO. DECISÃO MANTIDA. 1. Conforme entendimento desta Corte, a garantia do juízo é condição necessária para a concessão de efeito suspensivo aos embargos à execução. Precedentes. 2. Agravo interno a que se nega provimento.”

 

A posição legislativa respaldada pelo STJ acerca do efeito suspensivo aos embargos, segmenta os jurisdicionados em duas categorias: aqueles que possuem patrimônio e, portanto, teriam acesso ao efeito suspensivo, e aqueles que não detêm patrimônio e, portanto, não teriam condições de se defender de maneira equitativa, ainda que diante de um processo de execução ilegal ou fraudulento.

No entanto, criando um paradoxo jurídico, convém esclarecer que existe consenso legislativo e jurisprudencial em conferir à decisão que nega ou concede efeito suspensivo aos embargos à exceção a natureza de tutela provisória de urgência. Isso se evidencia tanto pela referência dos requisitos da tutela provisória no artigo 919, como também pela posição do Superior Tribunal de Justiça, que caracteriza tal decisão como uma modalidade de tutela provisória de urgência, conforme consolidado no julgamento do REsp nº 1.745.358-SP:

 

“CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. VÍCIO DE FUNDAMENTAÇÃO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. INOCORRÊNCIA. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE INDEFERE O PEDIDO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS EMBARGOS. RECORRIBILIDADE IMEDIATA POR AGRAVO DE INSTRUMENTO. POSSIBILIDADE. CABIMENTO DO RECURSO EM FACE DE DECISÕES QUE VERSEM SOBRE TUTELA PROVISÓRIA, CONCEITO EM QUE SE ENQUADRA A DECISÃO QUE INDEFERE O PEDIDO DE EFEITO SUSPENSIVO. ART. 1.015, I, COMBINADO COM ART. 919, §1º, AMBOS DO CPC/2015. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA OU POR ANALOGIA DO ART. 1.015, X, DO CPC/2015, QUE ERRONEAMENTE NÃO CONTEMPLOU ESSA HIPÓTESE. IMPOSSIBILIDADE. PRESENÇA DOS REQUISITOS PARA CONCESSÃO DA TUTELA PROVISÓRIA. MATÉRIA NÃO EXAMINADA NO ACÓRDÃO, QUE SE LIMITOU À INADMISSIBILIDADE DO AGRAVO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO.”

 

Dessa forma, se tanto a legislação quanto a posição do Superior Tribunal de Justiça conferem à decisão que concede o efeito suspensivo aos embargos à execução a natureza de tutela provisória, é lógico que seria juridicamente viável estabelecer uma exceção à regra geral do artigo 919 do CPC, permitindo a atribuição de efeito suspensivo aos embargos quando demonstrado que a parte não possui condições patrimoniais que assegurem a garantia do juízo, conforme a própria sistemática fisiológica das tutelas.

É o que determina inclusive o parágrafo primeiro do artigo 300 ao disciplinar as tutelas de urgência:

 

“Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.
§ 1º. Para a concessão da tutela de urgência, o juiz pode, conforme o caso, exigir caução real ou fidejussória idônea para ressarcir os danos que a outra parte possa vir a sofrer, podendo a caução ser dispensada se a parte economicamente hipossuficiente não puder oferecê-la.”

Não obstante, boa parte da doutrina corrobora a ideia de que a decisão que concede efeito suspensivo aos embargos possui a natureza de tutela provisória. Nesse contexto, consideremos a perspectiva do ilustre professor Fredie Didier Junior:

 

“Na execução fundada em título extrajudicial, a decisão do juiz que concede, modifica ou revoga o efeito suspensivo outorgado aos embargos já seria agravável, em virtude do disposto no inciso I do art. 1.015 do CPC, justamente porque tal decisão é, a bem da verdade, uma tutela provisória”

 

O professor Jose Miguel Garcia Medina, em seu Curso de Direito Processual Civil Moderno, aborda a natureza da decisão que atribui efeito suspensivo aos embargos da seguinte maneira:

 

“Para a concessão do efeito suspensivo, é necessário que a execução já esteja garantida por penhora, deposito ou caução suficientes. Essa disposição deve ser observada como regra, só podendo ser afastada em hipóteses excepcionais. De acordo com o § 1º do art. 300 do CPC/2015, para a concessão da tutela de urgência pode-se exigir caução, que poderá, no entanto, ser dispensada, se a parte economicamente hipossuficiente não puder oferecê-la.”

 

A lógica jurídica que fundamenta a concessão das tutelas provisórias requer uma integração com os preceitos que disciplinam a atribuição de efeito suspensivo aos embargos. Essa integração visa assegurar a isenção da exigência de garantia nos casos em que se constate que a parte executada é economicamente hipossuficiente. Este procedimento objetiva mitigar o caráter discriminatório inerente ao disposto no artigo 919, o qual foi endossado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Nesse sentido, a natureza de tutela de urgência da decisão que analisa o efeito suspensivo nos embargos à execução deve atentar para o caráter equitativo do direito, criando formas excepcionais de atribuir efeito suspensivo quando a parte economicamente hipossuficiente não pode dispor de patrimônio capaz de garantir a execução, conforme estabelece o § 1º do artigo 300 do CPC.

Ainda pela mesma lógica, é importante ressaltar que a conformação de um paradigma processual desprovido da capacidade de apreender as sutilezas sociais que diferenciam seus jurisdicionados culmina, inevitavelmente, em transgressões aos preceitos constitucionais relativos ao acesso à justiça. Tal circunstância se erige a partir da necessidade premente de assegurar ao litigante economicamente hipossuficiente a garantia do bem da vida, cuja inacessibilidade se traduz em um desdobramento discriminatório.

Dessa forma, a concessão do efeito suspensivo aos embargos emerge como um direito autêntico e disponível. Entretanto, salienta-se que esta prerrogativa, no formato atual, se afigura acessível apenas àqueles que detêm os recursos financeiros necessários para pagá-lo.

A proposta deste artigo foi de fato uma abordagem mais integrada da lógica jurídica que orienta a concessão das tutelas provisórias e a atribuição de efeito suspensivo aos embargos. A ideia de dispensa da garantia em casos de hipossuficiência econômica busca não apenas a coerência interna do sistema, mas também a promoção de princípios fundamentais, tais como a igualdade e o acesso à Justiça. Conclui-se que a adequação do artigo 919, respaldada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é imperativa para uma evolução mais equitativa e eficiente do sistema processual vigente.

Referências:

MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de Direito Processual Civil Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.

DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil – v. 5: execução. 14. ed. Salvador: JusPODIVM, 2017

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