Observatório Constitucional

A liberdade religiosa e o STF aos 35 anos da Constituição

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2 de dezembro de 2023, 8h00

O fenômeno religioso, ao longo da história humana, sempre revelou ser poderoso vetor de coesão social. Por outro lado, também muitas vezes foi manejado para a opressão e a discriminação, especialmente em relação aos “infiéis” ou não crentes. Daí que a experiência constitucional procure regrá-lo, seja ao garantir a livre opção e exercício da liberdade de religião e de culto, pelo menos em Estados Democráticos de Direito, mas ao mesmo tempo estabelecer determinados limites.

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O Brasil, no que diz respeito ao contexto fático, experimenta uma rica experiência religiosa, ainda que ambígua, de acentuada maioria cristã e importante minoria das religiões de matriz africana, introduzidas ao tempo da escravidão. De acordo com o Censo Demográfico IBGE 2000/2010 [1], umbanda e candomblé (as principais religiões afro-brasileiras) representam 0,3% da diversidade religiosa brasileira, cerca de 600 mil adeptos. Num país substancialmente cristão, em que “o pastor sobe e o padre desce” (123,2 milhões de católicos, uma queda [inédita] em números absolutos no intervalo de uma década [uma diminuição de 9 pontos percentuais, de 73,6% para 64,6%]; 42,2 milhões de evangélicos saltaram de 15,4% para 22,2% — seriam 45 milhões, atualmente), as religiões de matriz africana estacionam bem abaixo dos espíritas (3,8 milhões) e dos sem religião (15,3 milhões).

No plano normativo, a Constituição de 1988, vista de modo sistemático, pode-se considerar atenta ao fenômeno religioso, que vai separado do Estado, por sua vez não confessional, constituindo-se uma Constituição cooperativa, solidária e tolerante em relação às vivências religiosas.  Como se sabe, a CF consagra um direito geral à liberdade religiosa. No texto constitucional, deve-se partir dos artigos 5º, incisos VI, VII e VIII; 19, inciso I; 143, §§ 1º e 2º; 150, inciso VI, “b”; 210, § 1º (o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental); 213, caput, e inciso II; e 226, § 2º (além da referência, no Preâmbulo: “sob a proteção de Deus”).

Os três dispositivos do artigo 5º consagram, a rigor, dois direitos fundamentais distintos, embora conexos: a liberdade de consciência e a liberdade de religião. A primeira parte do inciso VI assegura genericamente a liberdade de consciência que, adiante, no inciso VIII, densifica-se no direito à objeção (ou escusa) de consciência.

Já a liberdade de religião, como direito complexo, engloba em seu núcleo essencial, a liberdade de ter, não ter ou deixar de ter religião e desdobra-se em várias concretizações: liberdade de crença (2ª parte do inciso VI), as liberdades de expressão e informação em matéria religiosa, a liberdade de culto (3ª parte do inciso VI) e uma sua especificação, o direito à assistência religiosa (inciso VII) e outros direitos fundamentais relacionados, como o de reunião e associação e a privacidade, com as peculiaridades que a dimensão religiosa acarreta.

Quanto ao âmbito normativo, a liberdade religiosa compreende duas grandes dimensões, apresentando-se como direito subjetivo (1) e como vetor objetivo (2). Examinada na ótica do direito subjetivo, comporta duas outras categorias, consoante o titular respectivo: direitos subjetivos individuais (1.1), que pertencem aos brasileiros e estrangeiros (pessoas naturais), incluindo os menores e os incapacitados (com particularidades no seu exercício); e direitos subjetivos das pessoas jurídicas (1.2), titulados pelas igrejas e confissões religiosas. Vista pelo prisma objetivo, a liberdade religiosa apresenta pelo menos três vertentes: princípios (2.1), deveres de proteção (2.2) e garantias institucionais (2.3) [2].

Outro ponto a sublinhar é o de que a CF se refere diretamente ao fenômeno religioso (e à liberdade religiosa) em uma série de outros dispositivos constitucionais, destacando-se aqui o artigo 19, inciso I, que consagra a ideia da separação das confissões religiosas do Estado, também designado de princípio e dever de neutralidade do Estado em matéria religiosa.

No que diz respeito à jurisprudência do STF, é possível constatar que a liberdade religiosa tem figurado reiteradas vezes na pauta da Suprema Corte ao longo desses já mais de 35 anos de existência da CF. Todavia, considerando a quantidade das decisões e o espaço aqui disponível, seguem apenas alguns exemplos.

De acordo com o julgamento da ADI 2.076-5, de relatoria do ministro Carlos Velloso, em 15/8/2002, não há inconstitucionalidade na ausência de invocação a Deus na Constituição Estadual do Acre, diante da ausência de força normativa do Preâmbulo da Constituição Federal. A corte firmou entendimento, vertido no acórdão, do qual se transcreve o seguinte excerto: “II – Preâmbulo da Constituição: não constituiu norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa” (…) “Em concreto, o preâmbulo da Constituição do Acre não dispõe de forma contrária aos princípios consagrados na CF, só não invoca a proteção a Deus – a invocação preambular da CF”, todavia, “reflete, simplesmente, um sentimento deísta e religioso, que não se encontra inscrito na Constituição, mesmo porque o Estado brasileiro é laico”, consagrada a liberdade de consciência e de crença e a não privação de direitos por crença/convicção (objeção de consciência). Assim, a “Constituição é de todos, não distinguindo entre deístas, agnósticos ou ateístas”.

Tema sempre polêmico, que diz respeito à extensão do dever de acomodação e isonomia, foi discutido na STA 389 AgR., da relatoria do ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgada em 3/12/2009. Ao rejeitar agravo regimental interposto contra decisão que suspendera “determinação de que fosse oportunizada a autores de ação ordinária oriunda de Minas Gerais — alunos secundaristas que professam a fé judaica — a participação no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em dia compatível com exercício da fé por eles professada (que seria fixado pelas autoridades responsáveis pela realização das provas e teria o mesmo grau de dificuldade das provas realizadas por todos os demais estudantes), a Corte manteve o fundamento da decisão impugnada (risco à ordem pública, em termos de ordem jurídico-administrativa).

Nesse caso, o tribunal afirmou que o direito fundamental à liberdade religiosa impõe ao Estado o dever de neutralidade em face do fenômeno religioso, proibido que privilegie certa confissão em detrimento das demais — o que não significa “indiferença estatal, sendo necessário que o Estado, em determinadas situações, adote comportamentos positivos, a fim de evitar barreiras ou sobrecargas que venham a inviabilizar ou dificultar algumas opções em matéria de fé”. Afirmou-se, ainda, que a designação de dia alternativo para a realização das provas do Enem pelo grupo religioso em questão, apesar de poder ser, em princípio, considerada uma medida de “acomodação”, apta a afastar as mencionadas sobrecargas indesejáveis, não estaria em consonância com o princípio da isonomia, convolando-se em privilégio para esse grupo.

Julgamento de singular importância versou sobre o ensino religioso em escolas públicas. Nesse contexto,  quando do julgamento, em 27/9/2017, da ADI 4.439, relatoria do ministro Roberto Barroso e relator para o acórdão ministro Alexandre de Moraes, prevaleceu o entendimento de que “O Poder Público, observado o binômio Laicidade do Estado (CF, art. 19, I)/Consagração da Liberdade religiosa (CF, art. 5º, VI), deverá atuar na regulamentação integral do cumprimento do preceito constitucional previsto no artigo 210, §1º, autorizando na rede pública, em igualdade de condições (CF, art. 5º, caput), o oferecimento de ensino confessional das diversas crenças, mediante requisitos formais previamente fixados pelo Ministério da Educação”. Da ementa do acórdão, transcrevem-se, ainda, os seguintes trechos:

“(…)5. A Constituição Federal garante aos alunos, que expressa e voluntariamente se matriculem, o pleno exercício de seu direito subjetivo ao ensino religioso como disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, ministrada de acordo com os princípios de sua confissão religiosa e baseada nos dogmas da fé, inconfundível com outros ramos do conhecimento científico, como história, filosofia ou ciência das religiões. 6. O binômio Laicidade do Estado/Consagração da Liberdade religiosa está presente na medida em que o texto constitucional (a) expressamente garante a voluntariedade da matrícula para o ensino religioso, consagrando, inclusive o dever do Estado de absoluto respeito aos agnósticos e ateus; (b) implicitamente impede que o Poder Público crie de modo artificial seu próprio ensino religioso, com um determinado conteúdo estatal para a disciplina; bem como proíbe o favorecimento ou hierarquização de interpretações bíblicas e religiosas de um ou mais grupos em detrimento dos demais” (…).

Outra decisão paradigmática, visto envolver tanto a liberdade religiosa, quanto o problema da discriminação étnico-racial, diz respeito ao sacrifício ritual de animais. Em 28/3/2019 o STF concluiu o julgamento do RE 494.601-RS, relator orig. ministro Marco Aurélio e redator para o acórdão ministro Edson Fachin, decidindo pela constitucionalidade da Lei estadual 12.131/2004, que acrescentou o parágrafo único (1) ao artigo 2º da Lei 11.915/2003 do estado do Rio Grande do Sul (Código Estadual de Proteção aos Animais), e que permitia o sacrifício de animais quando relacionado ao livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana.

Para os julgadores, a proteção legal e constitucional assegurada às manifestações religiosas de matriz africana não representa uma modalidade de privilégio, mas sim, encontra suporte, não apenas na liberdade religiosa como tal, mas em especial no § 1º do artigo 215 da CF, que assegura a proteção das culturas populares das populações indígenas e afro-brasileiras. Para a corte, a negação da constitucionalidade da lei estadual rio-grandense, permitindo sacrifício de animais em rituais religiosos, implicaria uma afetação desproporcional da liberdade religiosa quando se trata de um rito central de uma cultura e tradição religiosa, ainda mais quando o abate de animais para fins de consumo da carne é, em regra, desde que atendidos os parâmetros legais, permitida.

Finalmente, dentre tantos outros julgados que poderiam ser colacionados, refere-se o julgamento da ADI 5.256, relatoria da ministra Rosa Weber, ocorrido em 25/10/2021, onde estava em causa a discussão em torno da constitucionalidade de legislação estadual (no caso, do estado do Mato Grosso do Sul), tornando cogente a manutenção da Bíblica Sagrada em unidades escolares e bibliotecas públicas estaduais. De acordo com a decisão, houve violação do “postulado da imparcialidade (ou neutralidade) frente à pluralidade de crenças e orientações religiosas e não religiosas da população brasileira”, bem como ofensa aos “princípios da isonomia, da liberdade religiosa e da laicidade estatal dispositivos legais que tornam obrigatória a manutenção de exemplares da Bíblia Sagrada nas unidades escolares da rede estadual de ensino e nos acervos das bibliotecas públicas, às custas dos cofres públicos” (…).

À vista do sumariamente exposto, é possível observar, fechando o texto, que nas últimas décadas houve um incremento da intolerância religiosa e dos embates sociais, institucionais e jurídicos nesse domínio, que há muito tempo não se conhecia no cenário nacional, o que contribuiu para a crescente “judicialização” do fenômeno, gerando, ao longo dos anos, especialmente desde a promulgação da CF, um leque diferenciado de decisões pelo STF.

É possível arriscar, ainda, a afirmação de que o caráter devidamente generoso da CF para com o fenômeno religioso, consagrando um Estado Laico do tipo moderado e amistoso à liberdade religiosa, tem encontrado, em termos gerais, receptividade no âmbito da jurisprudência do STF, embora o mesmo se mantenha mais contido quando se trata de questões que afetam a própria ordem pública, como é o caso dos feriados religiosos, mas também no que diz respeito à decisão em relação ao ensino religioso.

Assim, importa destacar que a liberdade religiosa passou a ocupar cada vez mais um lugar de destaque, desafiando cada vez maior reflexão acadêmica e atenção pela sociedade e na seara política, cabendo ao STF quedar atento para assegurar que a liberdade religiosa seja exercida numa ambiência plural e tolerante, ademais de harmonizada com os demais direitos fundamentais.


[1] Importa destacar que por ora não existem dados atualizados consolidados disponíveis e divulgados a partir do último Censo do IBGE (2022), e a notícia é que está “sine data” com prazo até 2025. Além disso, há prognóstico que em 2032 as denominações evangélicas superariam os católicos, mas que somente os dados do censo poderão confirmar o acerto da tendência.

[2] Confira-se Catálogo de Posições Jusfundamentais (CPJ, mais de oitenta) que densifica o conteúdo e o alcance da liberdade religiosa. Para discussão ampla e detalhada, inclusive de aspectos históricos, com farta indicação bibliográfica, WEINGARTNER NETO (2007).

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