Opinião

A Lei 14.230/21 e o chamado dolo 'específico'

Autor

  • José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

    é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

2 de dezembro de 2023, 13h05

Conforme amplamente divulgado e debatido, a Lei 14.230/21 trouxe importantes alterações na Lei de Improbidade Administrativa. Dentre as diversas alterações, uma das que mais chamaram a atenção da academia e dos operadores do direito foi a exigência expressa da comprovação de dolo “específico” para condenação de agentes públicos por atos de improbidade e sua consequência prática.

Rapidamente, passou-se a defender a exigência de um chamado dolo “específico” para a configuração de ato de improbidade administrativa, em todas as suas modalidades [1]. Em artigo apresentado anteriormente nesta ConJur, também tínhamos nos filiado a esta “corrente” [2].

Esta argumentação encontra amparo no atual artigo 1º, §2º, da LIA, uma vez que, conforme aduz expressamente o mencionado dispositivo legal, “deve estar devidamente demonstrado a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente”, excluindo, portanto, a possibilidade de punição a título de culpa, antes possível em relação ao artigo 10.

Desse modo, o §2º do artigo 1º da LIA visou dirimir, definitivamente, duas dúvidas. A uma, de que não se concebe a improbidade mediante culpa em sentido estrito; a outra, no sentido de afastar a convicção de que a voluntariedade, elemento típico das contravenções (artigo 3º, primeira parte, do Decreto-lei nº 3.688/41), no sentido de que a vontade do agente apenas se volte à pratica do fato, sendo irrelevante se quis ou aceitou a produção do resultado.

Ainda, a sua explicitação pela Lei nº 14.230/2021 porventura decorreu para evitar outra possível preocupação, diante da existência de ponto de vista doutrinário que considera a voluntariedade como apta para servir de base à culpabilidade no plano das sanções administrativas.

Continuando, conforme mencionado, parcela da doutrina passou a entender que houve, além disso, a exigência de um dolo especial por parte do §2º do artigo 1º da LIA. Neste sentido, manifestam-se Neves e Oliveira (2022, p. 06) [3]:

Outra inovação relaciona-se com a exigência do dolo específico para configuração da improbidade, na forma do §2º do artigo 1º da LIA, introduzido pela Lei 14.230/21. De acordo com a jurisprudência tradicional do STJ, firmada a partir da interpretação da redação originária da LIA, bastaria o dolo genérico para caracterização da improbidade. Com a reforma promovida pela Lei 14.230/21, o §2º do artigo 1º da LIA supera o entendimento jurisprudencial para exigir, a partir de agora, o dolo específico para configuração de improbidade.
Contudo, melhor refletindo, não parece ser este o melhor entendimento. Fazendo paralelo com o Direito Penal, visualiza-se de Aníbal Bruno (1967, pp. 63 e 71) [4] que, no dolo, tem-se uma vontade informada pela previsão do ato e do resultado. Aludindo ao dolo direto, o autor distingue, quanto à sua intensidade, entre o dolo determinado, no qual o agente previu e quis o resultado, e o dolo indeterminado que, por sua vez, afirma compreender o dolo eventual, onde o agente, não querendo propriamente o resultado, admite-o e aceita o risco de produzi-lo, e o alternativo, no qual aquele almeja um ou outro entre dois ou mais resultados possíveis.
A formulação doutrinária guarda precisa correspondência com a moldura legislativa, uma vez o artigo 18, I, do Código Penal, dispor que o crime se diz doloso “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”.

Não passível de uma definição legal em nosso ordenamento, tem-se a categoria nominada como dolo específico, a qual, no dizer de Magalhães Noronha (2000, pp. 139-140) [5], notabiliza-se por uma vontade dirigida a um resultado que se situa fora dos atos externos de execução material do delito. É identificada, normalmente, pelo uso das expressões “com o fim de”, “com o intuito de”, ou o com o emprego da preposição para, como se tem em “para isto” ou “para aquilo”. À feição de exemplo, aponta o autor a diferença clássica entre os tipos de rapto de mulher honesta, constante da redação originária do Código Penal (artigo 219), e o de sequestro (artigo 148), tendo em vista o primeiro conter a expressão “para fim libidinoso”.

Essa conceituação, que é confirmada na seara doutrinária — mas, para alguns autores, não sem antes de escapar de críticas quanto à própria autonomia do dolo específico, por, na verdade, não passar de um elemento subjetivo do tipo —,  serve para evidenciar que a inovação legislativa, ao considerar o dolo “a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente”, não foi além do dolo direto, pois não traz a exigência de um fim especial de agir.

Neste sentido, também se manifesta Bezerra Filho (2022, p. 41) [6], aduzindo que o dolo adotado pela Lei de Improbidade Administrativa, a partir das alterações promovidas pela Lei 14.230/21, via de regra, é o dolo geral.

Em assim sendo, é de se notar, no que concernem aos atos de improbidade que importam enriquecimento ilícito, que não há no artigo 9º, caput, da LIA, nenhuma indicação de uma finalidade específica a ser perseguida além do núcleo do tipo. Não obstante, em alguns dos tipos que enumera se vê, precisamente nos incisos V, IX e X, alusão aos escopos de “tolerar a exploração ou a prática de jogos de azar, de lenocínio, de narcotráfico, de contrabando, de usura ou de qualquer outra atividade ilícita”, “para intermediar a liberação ou aplicação de verba pública de qualquer natureza” e “para omitir ato de ofício, providência ou declaração a que esteja obrigado”. Nestas situações o dolo específico — ou, para quem assim entender, o elemento subjetivo do tipo — é imprescindível.

Semelhante remate sucede quanto aos atos dos quais resultam prejuízo em detrimento ao erário, de sorte a se constatar no artigo 10, inciso XII, a expressão “para que terceiro se enriqueça ilicitamente”. Posto isso, em princípio, não cogita a LIA de dolo específico, conclusão que há de ser investigada conforme o respectivo tipo em análise.

Realizando paralelo com o Direito Penal, para a configuração do delito tipificado no antigo artigo 89 da Lei 8.666/1993, atual artigo 337-E, do CP (Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei), tem-se indispensável a comprovação do dolo específico do agente em causar dano ao erário, bem como do prejuízo à administração pública. Neste sentido, manifesta-se a doutrina [7]:

O elemento subjetivo é o dolo, consistente na vontade livre e consciente de praticar o ato de admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta ilegal, tendo consciência da sua ilicitude. É admissível o dolo eventual se o agente, tendo dúvida quanto à ilegalidade, assume o risco praticá-la.
 A jurisprudência exige o dolo específico, a finalidade de causar prejuízo à Administração ou de beneficiar determinado contratado, em detrimento de algum dos princípios da licitação. (GRECO FILHO; GRECO; RASSI, 2021, p.74).

Em semelhante sentido, manifesta-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Na edição 134 da Jurisprudência em teses, o STJ tratou do tema Crimes de Lei de Licitações, nos seguintes termos: 1) Para a configuração do delito tipificado no artigo 89 da Lei 8.666/1993, é indispensável a comprovação do dolo específico do agente em causar dano ao erário, bem como do prejuízo à administração pública.
Note, portanto, que neste caso, para a configuração do delito tipificado no artigo 89 da Lei 8.666/1993, exige-se cumulativamente o dolo específico do agente em causar dano ao erário, bem como prejuízo efetivamente demonstrado, assim como o atual artigo 10, da LIA.

Em outras palavras, a configuração do crime correlato, via de regra, exige-se um elemento a mais do que para a configuração do ato ímprobo: dolo especial. Ao nosso entender, isso faz todo sentido, uma vez que seria o Direito Penal a ultima ratio, à luz dos princípios da intervenção mínima e fragmentariedade.

Ato contínuo, voltando à análise da Lei de Improbidade Administrativa, no que se refere aos tipos do artigo 11 da LIA, é de notar ainda o acréscimo dos parágrafos abaixo:

“§1º Nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006, somente haverá improbidade administrativa, na aplicação deste artigo, quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021).
§3º O enquadramento de conduta funcional na categoria de que trata este artigo pressupõe a demonstração objetiva da prática de ilegalidade no exercício da função pública, com a indicação das normas constitucionais, legais ou infralegais violadas. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021).
§4º Os atos de improbidade de que trata este artigo exigem lesividade relevante ao bem jurídico tutelado para serem passíveis de sancionamento e independem do reconhecimento da produção de danos ao erário e de enriquecimento ilícito dos agentes públicos.” (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021).

Neste sentido, o aspecto explicitado pelo legislador no §1º tem ensejado a compreensão de que, em se tratando de ato de improbidade por violação a princípio informador da função administrativa (artigo 11, LIA), a sua configuração pressupõe, de fato, o dolo específico.

Note, ainda, que conforme o §4º, os atos de improbidade de que trata este artigo exigem lesividade relevante ao bem jurídico tutelado para serem passíveis de sancionamento.

Portanto, muito embora independa de reconhecimento da produção de danos ao erário, a condenação pelo artigo 11, da LIA, exige a lesividade relevante ao bem jurídico tutelado, além do dolo específico.


[1] https://www.conjur.com.br/2023-nov-19/irretroatividade-da-nlia-a-luz-das-cortes-de-direitos-humanos/

[2] https://www.conjur.com.br/2021-nov-10/opiniao-lei-improbidade-dolo-especifico-carga-prova/

[3] NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Comentários à reforma da Lei de Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: Forense, 2022.

[4] BRUNO, Aníbal. Direito penal – parte geral (fato punível). 3ª ed. Rio: Forense, 1967. Tomo 2º, pp. 63 e 71.

[5] NORONHA, Magalhães. Direito penal – introdução e parte geral. 35ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000. Vol. 1, pp. 139-140.

[6] BEZERRA FILHO, Aluizio. Processo de Improbidade Administrativa. Salvador: Juspodivum, 2022.

[7] GRECO FILHO, Vicente; GRECO, Ana Marcia; RASSI, João Daniel. Dos crimes em licitações e contratos administrativos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

Autores

  • é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, especialista em Direito Público, membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

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