Alterações da Lei 14.230/21: indisponibilidade de bens em ação de improbidade administrativa
27 de fevereiro de 2024, 6h32
O pedido de indisponibilidade dos bens é figura comum em ações civis de improbidade administrativa, funcionando como verdadeiro pedido liminar nas ações que apuram tanto possível lesão ao patrimônio público quanto enriquecimento ilícito da parte investigada.
Por se tratar de tutela de urgência, é imprescindível que estejam presentes os requisitos básicos para sua concessão: elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.
No entanto, a Lei de Improbidade Administrativa (LIA), Lei nº 8.429/92, possui um regramento próprio para sua tutela provisória, que foi largamente ampliado e modificado pelas alterações trazidas com a Lei nº 14.230/21.
Trataremos aqui sobre a decisão de indisponibilidade dos bens dos acusados em ação de improbidade administrativa e os novos requisitos necessários para a sua decretação.
Regramento anterior e as alterações da Lei nº 14.230/21
Originalmente, a LIA previa a possibilidade de indisponibilidade dos bens do indiciado em seu artigo 7º, cumulado com o parágrafo primeiro, em situações em que o suposto ato de improbidade causasse lesão ao patrimônio público ou ensejasse enriquecimento ilícito do indiciado.
A legislação não fazia menção aos requisitos da probabilidade do direito e do perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo.
Em sentido oposto, a lei somente estipulou como requisito se tratar de alguma das duas hipóteses elencadas no caput do artigo 7º. A dúvida quanto aos elementos necessários para a concessão da medida foi amplamente discutida pelos tribunais brasileiros, tendo sido pacificada pelo STJ.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça decidiu, portanto, que o periculum in mora, requisito essencial para a concessão de medida liminar, fosse meramente presumido, tendo em vista o direito sendo tutelado: a recomposição do patrimônio público supostamente lesado. Tal entendimento foi firmado nos termos do Tema Repetitivo 701, no bojo do REsp 1366721/BA, fixando a seguinte tese:
É possível a decretação da “indisponibilidade de bens do promovido em Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa, quando ausente (ou não demonstrada) a prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro.” [1]
No entanto, a Lei nº 14.230/21 alterou significativamente a possibilidade de concessão de medida liminar em ação de improbidade administrativa, adequando os requisitos e criando todo um novo regramento quanto à indisponibilidade dos bens do acusado.
A previsão de tornar os bens do indiciado indisponíveis saiu do artigo 7º e passou a figurar no artigo 16, parágrafos 1º-A a 14, da Lei nº 8.429/92.
Dois detalhes merecem atenção: o parágrafo 3º destaca os requisitos necessários para a concessão do pedido de indisponibilidade de bens, enquanto o artigo 8º permite a aplicação subsidiária do regime da tutela provisória de urgência à indisponibilidade. Ambas as alterações aproximam a tutela provisória da ação de improbidade com as regras contidas no Código de Processo Civil.
Art. 16. Na ação por improbidade administrativa poderá ser formulado, em caráter antecedente ou incidente, pedido de indisponibilidade de bens dos réus, a fim de garantir a integral recomposição do erário ou do acréscimo patrimonial resultante de enriquecimento ilícito.
[…]
§ 3º O pedido de indisponibilidade de bens a que se refere o caput deste artigo apenas será deferido mediante a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo, desde que o juiz se convença da probabilidade da ocorrência dos atos descritos na petição inicial com fundamento nos respectivos elementos de instrução, após a oitiva do réu em 5 (cinco) dias.
[…]
§ 8º Aplica-se à indisponibilidade de bens regida por esta Lei, no que for cabível, o regime da tutela provisória de urgência da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil). [2]
A alteração mais marcante é a do parágrafo 3º, que condiciona o deferimento do pedido de indisponibilidade de bens à “demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo”, incluindo, de forma inédita, a necessidade de se comprovar o periculum in mora para a concessão da indisponibilidade.

A nova lei afasta de vez o entendimento jurisprudencial de que o perigo de dano é presumido pois torna explícita a necessidade de sua comprovação durante o processo. Supera, portanto, o Tema Repetitivo 701 do STJ e passa a exigir os mesmos requisitos de qualquer tutela provisória de urgência.
Retroatividade da nova legislação
Fica evidente que a Lei nº 14.230/21 trouxe um regulamento novo e mais complexo à indisponibilidade de bens, mas resta a dúvida sobre os limites da retroatividade das novas regras.
Após a reforma da LIA promovida pela nova lei, muito se discutiu acerca da retroatividade ou não das alterações realizadas e, em caso positivo, quais os limites dos dispositivos que retroagiriam.
O STF decidiu, em sede do Tema 1.199 de Repercussão Geral, sobre a possibilidade de retroatividade da nova legislação e, mesmo sem mencionar expressamente a decisão de indisponibilidade de bens, definiu que os aspectos materiais da nova lei devem retroagir em oposição aos aspectos meramente processuais que somente poderiam ser arguidos a partir da vigência da nova lei.
Do voto condutor se extrai a seguinte passagem expondo essa argumentação:
A retroatividade da nova lei dirige-se para abrandar o poder de punir do Estado, impondo-lhe limitações materiais e temporais mais compatíveis com a dignidade dos acusados e com o direito à duração razoável do processo. Não se trata, portanto, nos pontos em que discutimos, de lei formal, voltada a reordenar rotinas procedimentais das ações de improbidade, mas, antes, de lei substancial, que intenta abrandar, como disse, a eficácia do poder punitivo estatal.
Disso decorre não se poder falar que a retroatividade da lei atingiria atos jurídicos processuais perfeitos e acabados. Em absoluto, não. Os atos processuais, repito, não devem ser anulados pela nova lei, nem é esse o propósito dela.
A retroatividade benéfica, aqui, alcança é o âmago da hipótese da ilicitude, para redefini-la, excluindo da sua extensão material a modalidade culposa; assim como abarca também a extensão temporal da pretensão punitiva, reduzindo-a e submetendo-a a intervalos de eficácia com contagem regressiva rumo à abolição, mesmo durante o curso da ação de improbidade (prescrição intercorrente). Para usar a linguagem própria da nossa jurisprudência, é lei que altera um regime jurídico de direito material.
Em que tal retroação atinge atos jurídicos perfeitos? O direito de punir só está “perfeito” quando a sentença condenatória transita em julgado. Então, sim, ele estará perfeito. Mas, aí, incide a garantia da coisa julgada, que analisarei adiante, e não a do ato jurídico perfeito.[3]
Não há dúvida de que a medida liminar não se enquadra como ato jurídico perfeito, tanto por poder ser revista a qualquer momento pelo juízo que a concedeu, quanto por depender de confirmação a posteriori em sentença transitada em julgado.
Além disso, a indisponibilidade de bens é medida de cunho claramente material, pois é medida cautelar que visa resguardar e possibilitar o direito material a ser tutelado em definitivo com o fim do processo. A concessão (ou não) da medida implica em efeitos de direito material por constranger o próprio patrimônio do atingido.
Assim, vem entendendo os tribunais brasileiros, como no Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
DIREITO ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS. INDISPONIBILIDADE DE BENS. PERICULUM IN MORA E VEROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES DO ÓRGÃO MINISTERIAL. 1. A Lei nº 14.230/2021 instituiu parâmetros mais benéficos ao réu e atribuiu novos ônus à acusação, alguns dos quais, inclusive, contrariando jurisprudência consolidada dos tribunais superiores. O art. 16, § 3º, da LIA, por exemplo, tem redação diametralmente oposta ao Tema repetitivo 701 do STJ, sendo notória a intenção do legislador em restringir a aplicação da medida de indisponibilidade de bens. 2. As medidas cautelares, tal como a decisão de bloqueio valores, possuem natureza rebus sic standibus, podendo sofrer alteração – ou até mesmo ser revogada, consoante dispõe o artigo 296 do Código de Processo Civil. 3. Previamente a eventual levantamento da constrição, deve ser oportunizada ao Ministério Público Federal manifestação a respeito da presença do periculum in mora, na linha do que exige a nova legislação. 4. Agravo de instrumento parcialmente provido. [4]
E a doutrina também permite a revisão da concessão de medida liminar com base em fatos jurídicos novos, pois a tutela provisória não possui caráter definitivo, não produz coisa julgada, podendo ser revisada a qualquer momento pelo magistrado:
Se o fundamento é novo, do ponto de vista jurídico, pode ser avaliado, ainda que se reporte a fatos anteriores à decisão provisória, quando não aventados no debate que a precedeu. O procedimento justo não pode conduzir a uma omissão ou negação de revisão da tutela de urgência, mediante a criação de obstáculos que a lei não opôs à pretensão revisional por ela autorizada.
Releva notar que a tutela provisória jamais se reveste da autoridade da coisa julgada, de modo a tornar-se imutável e indiscutível após a exaustão ou impossibilidade do manejo dos recursos. Ao contrário, surgem as medidas da espécie sob o signo da precariedade, sendo sua revogação ou modificação, a qualquer tempo, uma faculdade conferida pelo art. 296 do NCPC, sem qualquer restrição quanto aos fatos e argumentos jurídicos que a parte possa invocar para o respectivo exercício. [5]
Conclusão
A Lei nº 14.230/21 trouxe alterações substanciais à indisponibilidade de bens nas ações de improbidade administrativa, sendo a principal delas a inclusão de necessidade de comprovação do perigo de dano ao resultado útil do processo para a concessão da medida, aproximando ainda mais a medida do regime das tutelas provisórias do Código de Processo Civil. A nova legislação superou a jurisprudência até então consolidada sobre o tema, que considerava como presumido o periculum in mora em alguns casos.
Por se tratar de decisão de cunho material e que não gera ato jurídico perfeito, podendo ser alterada a qualquer instante, as novas regras devem retroagir para os processos de improbidade já em curso. Dessa forma, todos os processos em que a indisponibilidade de bens foi deferida mediante mera presunção do perigo de dano, sem sua comprovação, devem ser revistos à luz dos novos requisitos fixados pela Lei 14.230/21.
[1] Brasil. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.366.721/BA, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, relator para acórdão Ministro Og Fernandes, Primeira Seção, julgado em 26/2/2014, DJe de 19/9/2014.
[2] Brasil. Lei de Improbidade Administrativa. Lei n. 8.429, de 2 de Junho de 1992.
[3] Brasil. Supremo Tribunal Federal. ARE 843.989, Relator Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, j. 18-08-2022, p. 150-151.
[4] Brasil. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AG 5024082-89.2022.4.04.0000, Décima Segunda Turma, Rel. Des. João Pedro Gebran Neto, juntado aos autos em 15/12/2023.
[5] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 59. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, livro digital. Vol. 1. Item 442-B.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!