Opinião

Acordo de não persecução civil e a ADI 7.236

Autor

  • Adriano Zanotto

    é advogado membro honorário vitalício da OAB/SC ex-procurador geral do Estado de Santa Catarina membro consultor da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB.

11 de março de 2024, 12h19

A nova Lei de Improbidade Administrativa (LIA) trouxe como inovação bastante comemorada a possibilidade de acordo de não persecução civil nas ações de improbidades.

Na redação inicial da LIA, antes da reforma de 2021, o parágrafo primeiro do artigo 17 enfatizava ao dispor que era vedada a transação, acordo ou conciliação nas ações de improbidade.

A redação original da Lei 14.230/21, que previa a legitimidade única do Ministério Público para a realização do acordo, sofreu alteração decorrente da decisão na ADI 7.043 [1], que deu interpretação conforme e ampliou a legitimação para a realização do acordo à Fazenda Pública lesada.

Não raras vezes, os tribunais de contas consideram válidas e corretas a aplicação dos recursos públicos decorrente de atos tidos como improbo, mesmo que parcialmente, vindo a aprovar com ressalvas as contas apresentadas. No entanto, o Ministério Público entende por dano ao erário todo o valor despendido.

E, sobre este valor, impõe o dever de restituição o que faz o ressarcir implicar enriquecimento sem causa do próprio Estado, que é expressamente é vedado pela Lei de Improbidade [2].

A nova LIA acrescentou ao artigo 17-B o parágrafo terceiro, que determina, para a apuração do valor do dano a ser ressarcido a oitiva do tribunal de contas competente no prazo de 90 dias, que ao se manifestar deverá indicar os parâmetros utilizados para chegar ao valor.

Ocorre que, com a ADI 7.236, foi concedida liminar pelo relator ministro Alexandre de Moraes, suspendendo a eficácia deste parágrafo terceiro, acolhendo-se os argumentos da Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público), sob o fundamentos de que “ao assim dispor, a norma aparenta condicionar o exercício da atividade-fim do Ministério Público à atuação da corte de contas, transmutando-a em uma espécie de ato complexo apto a interferir indevidamente na autonomia funcional constitucionalmente assegurada ao órgão ministerial”.

Eventual desrespeito à plena autonomia do MP, em análise sumária, consiste em inconstitucionalidade perante a independência funcional consagrada nos artigos 127 e 128 da Constituição [3].

Contudo, entendo que o legislador não incorreu em inconstitucionalidade, eis que, aguardar a manifestação da corte de contas, antes de significar retirar autonomia funcional do Ministério Público, está coerente com a finalidade integrativa e colaborativa dos órgãos de controle a permitir mais segurança jurídica.

Trata-se de um requisito importante, pois a oitiva do tribunal de contas é recomendável para verificar o valor correto do dano a ser ressarcido, evitando discussões futuras sobre o valor do possível dano ou mesmo a extensão correta dos valores a serem alvo da ação.

Spacca

Os tribunais de contas são dotados de equipes técnicas que têm plenas condições de, com rapidez e eficiência, indicar o valor do possível dano ao erário ocorrido com o ato tido por ímprobo. A obrigatoriedade da oitiva prévia do tribunal de contas competente não retira qualquer autonomia do Ministério Público, mas auxilia na obtenção mais precisa dos seus objetivos institucionais.

Antes de constituir qualquer trava ao pleno exercício funcional do Ministério Público a prévia oitiva o auxilia na apuração correta do dano causado ao erário.

Tanto auxilia que o legislador deu prazo de 90 dias para o tribunal de contas apontar os parâmetros utilizados para o alcance do valor do dano a ser ressarcido. Desta forma fica mais transparente e aferível o real valor do dano a ser ressarcido. Há muitas situações em que o tribunal de contas entende como correto parte de gastos realizados, demonstrando a correção da prestação de contas com relação a alguns valores.

No entanto, o Ministério Público, normalmente, não leva em consideração estes valores e busca o ressarcimento de todo o valor decorrente do ato tido por ímprobo, trazendo ao réu um ônus maior que o desejável pela própria legislação opressiva.

Não cumprido o prazo, nada impede que os legitimados ativos da demanda, no caso agora, o MP e a Fazenda Pública lesada, proponham as medidas que desejarem, inclusive, deixem ou não de firmarem o acordo de não persecução cível.

Verifica-se que esta exigência é tão somente para efeitos de verificação da correção do valor a ser ressarcido no caso de se elaborar o acordo de não persecução cível, que pode ser realizado a qualquer tempo, inclusive no momento da execução da sentença condenatória, conforme prevê o parágrafo quarto do mesmo dispositivo.

Isto para dizer que a consulta aos tribunais de contas competentes não limita em hipótese alguma a atuação constitucional do Ministério Público.

Algumas indagações

O tribunal de contas competente, se não ouvido, pode adiante não concordar com o valor acordado e entender que o agente público deve devolver valores maiores? Poderá rejeitar as contas do ordenador primário? A decisão de fazer o acordo sem sua oitiva prévia não retira também sua autonomia?

Os tribunais de contas têm suas competências de fiscalização, julgamento, apreciação de legalidade de atos, entre outras atribuições, destacadas no artigo 71 da Constituição. Fazer acordos de não persecução cível que venham resultar na aceitação como válidos os atos do gestor público, pode, de alguma forma, também limitar a atuação constitucional dos tribunais de contas.

Então não nos parece aceitável dizer que a exigência de prévia manifestação tira a autonomia de quem quer que seja, muito pelo contrário, o MP e os tribunais de contas, na apuração de eventuais prejuízos causados ao erário, tem funções que se complementam e se auxiliam.

O mesmo Supremo Tribunal Federal, ao discutir os acordos de leniência realizados pelas empresas envolvidas no caso conhecido como “lava jato”, está questionando a legitimidade do próprio Ministério Público em realizar o acordo de leniência.

Importante registrar que na ADPF 1.051 o próprio procurador-geral da República, Paulo Gonet, “concordou com a importância de abertura de diálogo, assim como o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Bruno Dantas, que destacou a relevância da instituição para fiscalizar o andamento dos acordos, e o ministro Vinícius de Carvalho, da Controladoria-Geral da União (CGU), que ressaltou que o “ministério está aberto para ouvir os pedidos de renegociação das empresas”. [4]

O ministro Gilmar Mendes, do STF, inclusive, questiona a legitimidade do Ministério Público em firmar acordo de leniência.[5]

Mesmo que se tratem de situações distintas, indicam que no mínimo, quando se tratar de qualquer acordo em que a base do mesmo tem reflexos diretos ao ente lesado, a cooperação técnica, com órgão e estrutura própria para análise de legalidade e correção de contas, antes de ferir a autonomia do Ministério Público, aprimora e aperfeiçoa o sistema de controle, fazendo dar plena concretude ao disposto no §4º do artigo 37 e preservando as garantias constitucionais do acusado, inclusive garantido a segurança jurídica no momento da concretização do acordo.

 


[1] 5. A legitimidade para firmar acordo de não persecução civil no contexto do combate à improbidade administrativa exsurge como decorrência lógica da própria legitimidade para a ação, razão pela qual estende-se às pessoas jurídicas interessadas (STF, ADI 7043/DF, Relator: Min. Alexandre de Moraes, julgamento em: 31 ago. 2022, p. 02).

[2] Art.10… § 1º Nos casos em que a inobservância de formalidades legais ou regulamentares não implicar perda patrimonial efetiva, não ocorrerá imposição de ressarcimento, vedado o enriquecimento sem causa das entidades referidas no art. 1º desta Lei. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)

[3] (STF, ADI 7236/DF, Relator: Min. Alexandre de Moraes, julgamento em: 27 dez. 2022, p. 22).

[4] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=527979&ori=1

[5] https://www.conjur.com.br/2024-fev-27/discussao-sobre-leniencias-ignora-que-mp-nao-pode-firmar-acordos-diz-gilmar/#:~:text=O%20ministro%20Gilmar%20Mendes%2C%20do,tipo%20de%20acordo%20com%20empresas.

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  • é advogado, membro honorário vitalício da OAB/SC, ex-procurador geral do Estado de Santa Catarina, membro consultor da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB.

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