Em cima das quatro linhas

Bolsonaro cometeu abuso de poder, mas discurso paralelo abre brecha

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7 de setembro de 2022, 17h28

Em tempos de blitz das assessorias jurídicas dos candidatos por condutas eleitorais vedadas, já há movimentação para que o discurso eleitoreiro do presidente Jair Bolsonaro neste 7 de setembro, feriado da Independência, seja judicializado.

Marcelo Camargo/Agência Brasil
Jair Bolsonaro participa do desfile de 7 de setembro ao lado da esposa, Michelle
Marcelo Camargo/Agência Brasil

Para uma multidão de apoiadores que ele vem convocando há semanas, em meio a ameaças antidemocráticas, o candidato do PL disse em Brasília que a vontade do povo se fará presente no próximo dia 2 de outubro, chamou todos a irem às urnas e pediu: "vamos convencer aqueles que pensam diferente de nós, vamos convencê-los do que é melhor para o nosso Brasil".

Citou também a "luta do bem contra o mal", uma metáfora recorrente quando fala de seu principal concorrente em 2022, Lula (PT). "Não voltarão", disse. E prometeu que "com uma reeleição, nós traremos para dentro dessas quatro linhas [da Constituição] todos aqueles que ousam ficar fora delas".

O discurso é menos grave do que o feito há exatamente um ano, quando atacou ministros do Tribunal Superior Eleitoral, prometeu descumprir decisões judiciais e reforçou ameaças golpistas. Essas declarações foram incluídas em um inquérito do TSE, para apuração da ocorrência de abuso de poder e propaganda antecipada.

Para especialistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, Bolsonaro extrapolou os limites constitucionais e legais em relação ao que poderia fazer neste 7 de setembro, cometendo abuso de poder político e econômico. Mas há uma brecha que pode salvá-lo: o fato de o discurso eleitoreiro ter sido feito fora da celebração oficial do 7 de setembro, organizada pelo Governo Federal.

Antonio Cruz/Agência Brasil
Bolsonaro só discursou após o evento oficial, depois de tirar a faixa presidencial
Antonio Cruz/Agência Brasil

Dentro das "quatro linhas"
Na manhã desta quarta-feira (7/9), Bolsonaro acompanhou o desfile cívico sem se pronunciar, em uma vias que formam o Eixo Monumental em Brasília, na Esplanada dos Ministérios. Depois, atravessou para a via oposta e subiu em um carro de som, onde se dirigiu a milhares de pessoas vestidas de verde-e-amarelo.

Para o especialista em Direito Eleitoral e Constitucional Antonio Carlos de Freitas Júnior, quando Bolsonaro tirou a faixa presidencial, saiu do evento público e subiu em um carro de som privado, a situação é completamente outra. Uma vez que estamos no período eleitoral, a todos os candidatos é lícito pedir votos.

"Impedir o Bolsonaro de pedir voto no 7 de setembro é um ilícito eleitoral. Ele, como também todos os candidatos, tem que estar livre e desimpedido para fazer, em eventos públicos pois abertos a qualquer público mas financiados pela campanha ou por particulares, qualquer tipo de pedido de voto ou apoio", opina.

Segundo Acacio Miranda da Silva Filho, especialista em Direito Constitucional e Eleitoral, a estratégia de separar um ato público do privado foi, muito provavelmente, planejada justamente com o intuito de evitar um ilícito eleitoral e, ao mesmo tempo, aproveitar a presença maciça do público na Esplanada dos Ministérios.

Ele ainda afirma que, apesar da menção ao dia 2 de outubro, não houve pedido explícito de voto nem uso das prerrogativas do cargo para estabelecer uma vantagem em relação aos seus adversários. "O evento e o teor do discurso proferido devem ter sido pensados e construídos de forma a estimular os eleitores presentes, no limite das exigências legais", aponta.

Marcos Corrêa/PR
Bolsonaro também foi processado graças à aparição breve na Festa do Peão de Barretos
Marcos Corrêa/PR

Falta grave que merece cartão
Para o constitucionalista e colunista da ConJur, Lenio Streck, a questão é tão clara que "até o porteiro do TSE cassaria a chapa de Bolsonaro". "Fez uso eleitoral de um evento oficial. Cabe uma ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) . Há farta jurisprudência no TSE sobre isso. No direito se chama de subsunção do fato à norma jurídica. A pena é cassação. Claro: isso se as instituições funcionarem", afirma.

A constitucionalista Vera Chemim avalia que Bolsonaro extrapolou os limites constitucionais e legais, quanto à propaganda eleitoral que fez sob o manto da comemoração dos 200 anos da Independência do Brasil. Ao misturar tudo, não foram poucas as normas afrontadas pelo presidente da República.

"A conduta do presidente pode ser enquadrada (a depender de investigação prévia e elementos robustos de prova) em uso de recursos públicos (inclusive humanos) para o seu enaltecimento enquanto candidato à reeleição, aproveitando-se de uma data comemorativa nacional, em que deveria se limitar a tratar exclusivamente da relevância do fato", diz.

Segundo explica a especialista, o ato pode ser enquadrado como desvio de finalidade, que segundo os artigos 14, parágrafo 9º e 37, parágrafos 1º e 4º da Constituição Federal, pode culminar em ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública.

Também pode se encaixar na previsão do artigo 1º, inciso I, alínea "e", item 5 da Lei Complementar 64/1991, que prevê inelegibilidade pelo abuso de autoridade, uma vez que o evento serviu, oportunamente, de palco para os seus interesses eleitorais.

Já o artigo 73 e seguintes da Lei das Eleições (Lei 9.504/1997) determinam sanções que remetem à cassação do registro de candidatura ou, posteriormente, se reeleito, a cassação do diploma. "É possível afirmar que o presidente da República criou mais um obstáculo à sua candidatura", resume Vera Chemim.

O eleitoralista Alexandre Rollo segue a mesma linha. Para ele, Bolsonaro praticou claro abuso do poder político e conduta vedada aos agentes públicos ao usar, em Brasília, toda a máquina administrativa preparada para uma comemoração oficial da Independência do Brasil. "Tirar a faixa presidencial e mudar de palanque ao subir em um trio elétrico para proferir discurso eleitoral naquele mesmo ambiente, naquele mesmo evento, não altera essa realidade."

Da mesma forma, o ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto tinha destacado, em entrevista ao UOL, que há "indícios de que o presidente se apropriou do 7 de setembro para fins eleitorais". "Ele falou do dia 2 de outubro ao final do discurso. 'Até a vitória', ele afirmou. O que configura um pedido de voto. Não se pode tapar o sol com a peneira. O princípio da 'paridade de armas' eu prefiro chamar de correlação de forças. O TSE vai ter que apreciar e usar de isenção, de tecnicidade no equacionamento jurídico desse caso. Comprovar se configura um ilícito eleitoral."

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Para especialistas, TSE será acionado para decidir sobre abuso político de Bolsonaro no discurso durante o 7 de setembro
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Jurisprudência do TSE
Alexandre Rollo afirma, ainda, que houve clara afronta à igualdade de oportunidades entre os candidatos na disputa eleitoral, a qual pode ser enquadrada na jurisprudência do TSE sobre desvio de finalidade de eventos oficiais que são transformados em eventos eleitoreiros.

Para a Corte, a configuração do abuso de poder político demanda provas robustas. As divergências na análise dos casos concretos são comuns, o que por vezes leva a absolvições. Não há nenhum caso de algum candidato a presidente que tenha tão explicitamente usado o 7 de setembro a seu favor.

Em 2014, o TSE julgou improcedente uma representação por propaganda extemporânea em publicidade institucional, que teria sido feita pela presidente Dilma Rousseff no discurso proferido por ela em comemoração ao dia da Independência do Brasil. Entendeu-se que a fala não teve conotação eleitoral, apesar de elencar avanços do governo.

E ainda em 2006, o ministro Marco Aurélio, presidente do TSE, autorizou o governo Lula a enfeitar a Esplanada dos Ministérios no período de 1º a 7 de setembro, para o desfile cívico-militar. Os ornamentos, conforme avaliou, não personificavam publicidade do Estado nem seriam capaz de desequilibrar a eleição presidencial daquele ano.

Em 2022, a presença de Jair Bolsonaro em um grande evento já gerou processo. A ministra Maria Claudia Bucchianeri concluiu que a breve aparição dele na Festa do Peão de Barretos não foi propaganda irregular, pois o rodeio jamais foi organizado e concebido para divulgar candidaturas.

Bolsonaro enfrenta, ainda, um pedido de inelegibilidade por abuso de poder político por usar dos meios de comunicação da Presidência para divulgar uma reunião com embaixadores estrangeiros, no qual repetiu mentiras ao contestar a falta de confiabilidade do sistema eletrônico de votação brasileiro.

Ações à vista
Os advogados da Coligação Brasil da Esperança informaram, por meio de nota, que vão entrar com uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije) junto ao TSE apontando justamente abuso de poder econômico e político por parte de Bolsonaro, que está usando o evento cívico-militar do dia 7 de setembro, "do qual deveria participar estritamente como presidente da República, para fazer, explicitamente, um megacomício de campanha como candidato".

"Bolsonaro fez uso indiscutível de um evento oficial para discursar como candidato. Há abuso de poder econômico e político acachapante, com o uso de recursos públicos, de uma grande estrutura pública, para fazer campanha. Os discursos desse comício escancarado foram transmitidos ao vivo para toda a nação, inclusive por meio da TV Brasil, uma TV estatal", afirmam os advogados Eugênio Aragão e Cristiano Zanin Martins, que representam a Coligação Brasil da Esperança, do ex-presidente Lula.

Segundo a CNN, o PV, o PDT, a Rede e a União Brasil também pretendem acionar o TSE contra o uso eleitoral da cerimônia oficial. Segundo a repórter Daniela Lima, Soraya Thronick, candidata pela União Brasil, afirmou que vai pedir que Bolsonaro seja impedido de usar as imagens do ato na campanha eleitoral, uma vez que o evento foi promovido com dinheiro público.

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