Opinião

Consagração dos standards probatórios no julgamento de Moro pelo TRE-PR

Autor

  • Marco Aurélio Rangel

    é advogado graduado pela Faculdade de Direito da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo) mestrado em Direito Processual pela Ufes doutorado em Direito pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) professor no curso de pós-graduação em Processo Civil da Fundação Getulio Vargas.

13 de abril de 2024, 6h06

A soberania da vontade popular encontra seu ápice através do sufrágio eleitoral. É nesse momento que o povo, através do procedimento previsto na Constituição, manifesta de forma direta a sua vontade e escolhe seus representantes pelos próximos anos. E, uma vez eleitos, esses representantes serão delegatários desse poder soberano e deverão em nome dos seus representados exercer seus mandatos.

Seja a escolha boa ou ruim, a partir dos mais diversos critérios que possam ser adotados, ela representa a vontade soberana de um povo manifestada através das urnas. E, por tal razão, deve ser preservada até que haja um elevado grau de certeza sobre a existência de fatos que possam ter maculado essa escolha popular.

Dessa maneira, no processo de formação do convencimento do juiz eleitoral em demandas que possam acarretar a alteração do resultado eleitoral, há a exigência de provas robustas sobre os fatos narrados, com a finalidade de assegurar estabilidade e segurança às eleições e preservar a vontade manifesta do povo. Em tempos como os atuais, nos quais as disputas eleitorais se mostram cada vez mais acirradas e combativas, esse tipo de garantia é indispensável.

Julgamento do TRE-PR

O recente julgamento das ações de investigação judicial eleitoral [1] que tinham como investigados o senador Sergio Moro, Luis Felipe Cunha e Ricardo Augusto Guerra trouxe ao centro das atenções dos noticiários a discussão sobre um tema fulcral no equilíbrio da atuação a da Justiça eleitoral, a quantidade de prova necessária para a cassação do mandato de um candidato eleito, no caso, o ex-juiz da “lava jato”.

Sergio Moro

Como noticiado na reportagem de Sérgio Rodas, “por entender que não ficou provado que o senador Sergio Moro (União Brasil-PR) desequilibrou a disputa ao cargo em 2022 com gastos feitos na pré-campanha, o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná negou, nesta terça-feira (9/4), por 5 votos a 2, o pedido de cassação de seu mandato e decretação de sua inelegibilidade”.

O julgamento concluiu, portanto, pela absolvição do senador Sérgio Moro, com votos pela preservação do seu mandato de senador, por entender que não haveria indícios de abuso de poder econômico e político e uso indevido dos meios de comunicação durante a pré-campanha de Moro em 2022.

Não se discute que a questão probatória é objeto central dos debates em grande parte das ações eleitorais aptas a ensejar a cassação de mandato. No entanto, no julgamento em questão, pela primeira vez — ao menos em julgamentos de grande repercussão — a definição de um standard probatório, qual seja, da dúvida além da razoável para ações eleitorais sancionadoras, foi abordada de maneira direta, refletindo os debates travados pela doutrina [2].

O desembargador eleitoral Júlio Jacob Junior, que acompanhou a divergência instaurada pelo desembargador José Rodrigo Sade, votou pela condenação do ex-juiz. Em seu extenso voto, delimitou de maneira pormenorizada os critérios de suficiência probatória por ele adotados e de que forma as provas apresentadas atendiam a tais standards.

Logo no começo de seu voto, Júlio Jacob afirma que “a decisão de mérito nestas ações deve abranger a análise pormenorizada e atenta dos fatos descritos nas iniciais em cotejo com as argumentações defensivas da contestação, em atendimento à estabilização da demanda e correlação entre imputação e sentença, além de se basear em provas concretas, seguras e acima da dúvida razoável”.

E que a “aplicação de sanções em sede de ação de investigação judicial eleitoral — tendo em vista a gravidade e consequências legais — deve atender aos ditames da ampla defesa e contraditório judiciais, bem como a um standard elevado de prova”.

Mais adiante no voto, o desembargador afirmou categoricamente que “as ações judiciais eleitorais exigem — por força da sua natureza punitiva — a prova robusta e acima da dúvida razoável, sob pena de desrespeito ao princípio do in dubio pro sufragio“.

Os trechos acima destacados, embora, a princípio, possam aparentar um mero reforço a precedentes históricos da justiça eleitoral[3] [4] que destacaram a necessidade de provas robustas para a cassação de um mandato, caracterizam um importante e corajoso passo na consolidação do entendimento dos tribunais eleitorais sobre os standards probatórios exigidos em ações eleitorais.

Consagração dos standards eleitorais

A relevância desse julgamento reside no fato de que, os standards probatórios se apresentam como uma ferramenta essencial quando o magistrado deve decidir sobre questão de fato, indicando um parâmetro para a avaliação sobre a suficiência do acervo probatório para a formação de uma convicção segura sobre a ocorrência dos fatos.

Esses patamares de suficiência probatória, devem se adequar aos diversos tipos de litígio, considerando os interesses em jogo e, especialmente, o impacto negativo de uma possível decisão injusta naquele caso submetido à apreciação do judiciário. [5]

Portanto, a definição de standards probatórios tem entre seus principais objetivos evitar certos tipos de erros que viriam a comprometer valores demasiadamente relevantes. No caso do processo civil eleitoral tais erros são representados, em sua máxima consequência, pela cassação de mandato eletivo de candidato eleito sem que a conduta ilícita reportada na inicial tenha de fato ocorrido.

Hipótese em que a vontade manifesta das urnas, já consolidada pela diplomação do candidato eleito e iniciado o exercício do mandato popular concedido, é desrespeitada sem que haja elementos para tanto.

Pois bem. Se atendo aos standards usualmente mais referidos, e adotados também pela doutrina nacional, [6] as demandas cíveis eleitorais devem ser divididas entre dois parâmetros aplicáveis: a) prova clara e convincente: para as demandas que não possuem caráter sancionatório; b) prova além da dúvida razoável: para as demandas que possuam caráter sancionatório.

A atribuição de standards probatórios distintos, em razão da presença ou não do elemento sancionatório nas demandas, se dá pelo incremento nos prejuízos advindos de uma condenação equivocada, quando da presença da sanção.

Em demandas sem o caráter sancionatório, como a ação de impugnação de registro de candidatura (Airc) ou a ação de prestação de contas, a adoção de um standard tão elevado como o da prova além da dúvida razoável levaria a uma elevada incidência de erros, em desfavor do devido processo eleitoral, sem que para tanto houvesse elementos suficientes a justificar essa opção.

Ao seu turno, quando se trata de ações eleitorais sancionatórias a necessidade de adoção de um standard mais elevado de constatação resta evidenciada. Isso porque, para além do direito material tutelado, como invocado no voto do desembargador Júlio Jacob Junior, a presunção de inocência exerce papel importante na elevação do standard de suficiência probatória. Que, além de impor o ônus da prova à acusação, exige um elevado grau de certeza para o rompimento do estado jurídico de não-culpabilidade, o que se concretiza através da adoção do standard da prova além da dúvida razoável. [7]

É o que se extrai, por exemplo, a partir da disposição constante do artigo 368-A do Código Eleitoral, que veda a possibilidade de condenação à perda do mandato com base em prova testemunhal singular. A imposição dessa exigência, exclusivamente para processos que possam ensejar a perda do mandato é uma demonstração inequívoca de que o legislador entende necessária a presença de elementos de prova mais robustos para aquelas ações que possam culminar na imposição de sanções graves.

Pois, não houvesse uma gradação quanto ao standard de prova entre as ações eleitorais (sancionatórias e não-sancionatórias), não haveria razão para o legislador dispor que a prova testemunhal singular não poderia fundamentar condenação a perda do mandato eletivo.

A necessidade de assegurar a maior efetividade à tutela do bem jurídico eleitoral, compatibilizando com a preservação dos direitos e garantias individuais nas demandas sancionatórias, exige que o magistrado tenha um rigor mais elevado que processos de natureza meramente patrimonial, para qualquer ação eleitoral e incrementa essa necessidade a partir da introdução de princípios do processo penal às demandas sancionatórias.

Caminho para consolidação do tema

Em um caso de destaque como o julgamento de uma figura política que atrai as atenções, como é o caso do ex-juiz Sergio Moro, o debate instaurado pela turma julgadora e a assertividade ao definir a exigência de prova além da dúvida razoável para cassar o mandato de um candidato eleito, produzem efeitos benéficos para além do julgamento em questão.

Os debates travados durante o julgamento do senador Sérgio Moro são uma importante sinalização da posição da Justiça Eleitoral com relação aos standards probatórios exigidos em ações eleitorais sancionatórias e cumprem um relevante papel na delimitação de parâmetros seguros, não apenas para a tomada de decisão do julgador, mas principalmente para o exercício do direito de defesa pelos réus em tais demandas.

A toda evidência, a exigência de um conjunto probatório mais robusto, não pode ser vista como instrumento de proteção para aqueles que pretendam burlar o processo eleitoral. Os sujeitos envolvidos nas demandas eleitorais, sejam as partes, os juízes, o Ministério Público ou os demais legitimados, devem ser dotados de instrumentos aptos a assegurar a possibilidade de trazer ao processo o máximo de elementos de prova possível, a fim de garantir que a decisão proferida pela Justiça Eleitoral se preste a assegurar a manifestação do povo sem a influência de fatores espúrios e violadores da soberania popular.

No entanto, para que tais sujeitos possam se desincumbir do elevado ônus probatório que recai sobre eles, é indispensável que tenham segurança do parâmetro que será adotado quando da apreciação pelo poder judiciário.

É provável que o julgamento das Aijes pelo TRE do Paraná seja submetido à apreciação do TSE, que terá uma oportunidade ímpar de consolidar em definitivo a exigência do standard da prova além da dúvida razoável como parâmetro de suficiência probatória adotado pela legislação eleitoral em ações de caráter sancionatório, aplicando referido parâmetro para a manutenção ou reforma da decisão da corte paranaense.

 

___________________________

[1] Processos nº 0604176-51.2022.6.16.0000 e 0604298-64.2022.6.16.0000, TRE/PR.

[2] Sobre o status atual da questão: RANGEL, Marco Aurélio Scampini Siqueira. A prova no processo eleitoral. O direito probatório no contencioso cível eleitoral. Leme: Imperium, 2024. p. 157/169.

[3] Em algumas oportunidades os tribunais eleitorais chegaram a ensaiar uma sinalização concreta dos standards probatórios adotados. No julgamento do REspe nº 0600098-47/TO perante o TSE, se afirmou que “em caso de dúvida razoável da melhor interpretação do direito posto, vigora, na esfera peculiar do Direito Eleitoral, o princípio do in dubio pro sufragio, segundo o qual a expressão do voto popular e a máxima preservação da capacidade eleitoral passiva merecem ser prioritariamente tuteladas pelo Poder Judiciário”. No mesmo sentido, o Min. Luiz Edson Fachin, ao julgar o Mandado de Segurança nº 060107844, se referiu ao referido princípio para afastar a condenação imposta ao prefeito eleito de Planaltina-GO, sob o fundamento de que “na dúvida sobre a configuração do ilícito, não há que ser aplicada cassação do mandato eletivo, mas sim deve ser referenda a vontade popular, que goza de uma presunção de legitimidade social e jurídica”.

[4] Sob o mesmo assunto, precedente importante se formou quando do julgamento da chapa Dilma-Temer, Ação de Investigação Judicial Eleitoral nº 194358, no qual se expressou, por diversas vezes, a necessidade de um arcabouço probatório mais robusto para impor sanções de natureza tão grave como a cassação do mandato eletivo. Em uma dessas passagens, consta do acórdão que “de acordo com o entendimento deste Tribunal Superior, entretanto, faz-se necessária a existência de provas robustas e inequívocas dos fatos narrados na inicial e da demonstração de sua gravidade, a fim de embasar a condenação pela prática abusiva”. O TSE adotou expressões como “prova segura e cabal” e “provas robustas e inequívocas”, que se aproximam bastante em seu sentido do standard mais elevado da prova além da dúvida razoável. Evidenciando, dessa maneira, a necessidade de que para a aplicação de sanções a exigência do magistrado com as provas a serem produzidas deve estar além do padrão exigido para as outras demandas. No entanto, em nenhum momento havia a referência concreta ao conceito de standards ou mesmo a qualquer dos parâmetros tradicionalmente invocados pela doutrina, preponderância da prova, prova clara e convincente e prova além da dúvida razoável.

[5] RECENA COSTA, Guilherme. Livre Convencimento e Standards de Prova. In: Flávio Luiz Yarshell; Camilo Zufelato. (Org.). 40 Anos da Teoria Geral do Processo no Brasil: Passado, Presente e Futuro. 1ed. São Paulo: Malheiros, 2013.

[6]ÁVILA, Humberto. Teoria da prova: standards de prova e os critérios de solidez da inferência probatória. Revista de Processo. Vol. 282. p. 113-139. Ago./2018; KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2007; RECENA COSTA, Guilherme. Livre Convencimento e Standards de Prova. In: Flávio Luiz Yarshell; Camilo Zufelato. (Org.). 40 Anos da Teoria Geral do Processo no Brasil: Passado, Presente e Futuro. 1 ed. São Paulo: Malheiros, 2013; LIMA, Matheus. Standards de Prova no Direito Brasileiro. 2018. 129 f. Dissertação (Mestrado em Processo Civil). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo.

[7] MERÇON-VARGAS, Sarah. Teoria do processo judicial punitivo não-penal. Salvador: Editora Juspodivm, 2018. p. 37.

Autores

  • é advogado, graduado pela Faculdade de Direito da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo), mestrado em Direito Processual pela Ufes, doutorado em Direito pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), professor no curso de pós-graduação em Processo Civil da Fundação Getulio Vargas.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!