Direito Civil Atual

"Roda Viva", notoriamente de Chico Buarque

Autor

  • Carlos Frederico Bastos Pereira

    é doutor em Direito Processual pela USP (Universidade de São Paulo) mestre em Direito Processual pela Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo) professor de Direito Processual Civil na FDV (Faculdade de Direito de Vitória) e advogado.

19 de dezembro de 2022, 8h00

Ganhou destaque nos noticiários uma decisão judicial que extinguiu o processo movido pelo músico Chico Buarque em face do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que utilizou a música Roda Viva, indevidamente, em suas redes sociais. A justificativa foi a de que o músico não teria comprovado a titularidade dos direitos autorais da canção, o que, segundo a magistrada, seria documento indispensável à propositura da demanda. Os advogados do compositor recorreram da decisão, alegando que "o fato de que Chico Buarque é compositor e cantor de Roda-viva, especialmente no fonograma utilizado pelo réu, é fato público e notório", como mostrou a ConJur [1].

Reprodução/Montagem ConJur
Reprodução/Montagem ConJur

O episódio comporta diversos ângulos de análise, mas esta utilizará o caso para demonstrar como é necessária uma releitura do fato notório à luz da difusão digital de conhecimento, sobretudo em razão dos avanços da tecnologia no mundo contemporâneo e do advento da internet, que modificou significativamente o modo de produção e disseminação de informações sobre fatos.

A teoria do fato notório, como hoje a conhecemos, remonta a um ensaio de Piero Calamandrei da primeira metade do século passado, cujas ideias influenciaram futuras legislações em todo o mundo, inclusive no Brasil [2]. Segundo Calamandrei, os fatos seriam notórios quando pertencessem à cultura de um determinado círculo social no momento em que a decisão judicial fosse proferida. A notoriedade seria um atributo externo ao processo judicial, fruto do consenso acerca da sua ocorrência, que daria ao juiz a certeza acerca da veracidade daquele fato. Essa característica seria fundamental para dispensar a produção de prova do fato notório em juízo simplesmente porque seria inútil comprovar aquilo que todos sabem ser verdade. Assim, a utilização dos fatos notórios no processo não geraria para o juiz uma incompatibilidade psicológica entre a função de julgar com a função de uma testemunha porque a fonte da notoriedade não é a ciência privada do julgador, mas a cultura de um determinado grupo social.

No entanto, as bases em que fundadas a teoria do fato notório como as conhecemos foram completamente alteradas pelo advento da internet e das novas tecnologias. Atualmente, existem diversas informações disponíveis sobre fatos a um clique de distância da pessoa interessada. Com isso, acabamos vivendo um verdadeiro paradoxo sobre o conhecimento de fatos. Ao mesmo tempo em que a internet democratiza e aumenta exponencialmente o acesso à informação, ela também acaba gerando uma produção e disseminação avassaladora de informações que não são acompanhadas de filtros adequados para gerenciá-las. Temos informações sobre absolutamente tudo, mas não temos critérios consistentes para dizer qual informação é confiável e qual não é. Muda-se, portanto, a perspectiva epistêmica de indivíduos, grupos e organizações na busca por informações e conhecimento sobre fatos. A internet opera uma verdadeira revolução tecnológica ao conectar em rede diferentes grupos sociais, que possuem características heterogêneas. O consenso muitas vezes cede lugar ao dissenso. A cultura, como uma entidade unívoca e homogênea, é substituída por uma noção de multiculturalismo. E isso impacta diretamente no conceito de cultura enquanto conjunto de ideias e valores tradicionais supostamente compartilhados em um grupo social.

Se pertencer à cultura de uma esfera social garantiria a notoriedade de um determinado fato, agora, o cenário é completamente alterado. Saímos de uma sociedade que possuía instituições responsáveis por estabelecimentos de filtros prévios à disseminação de informações, separando mediantes critérios o que é verdade do que não é, para uma sociedade com uma sobrecarga de informações que atribui ao receptor da informação filtrar o que é verdade e o que não é mediante critérios de credibilidade e confiabilidade da informação. Se antes já poderia ser colocada em xeque a ideia de consenso de um grupo social para formação de um patrimônio cultural acerca da notoriedade e consequente veracidade de determinados fatos, atualmente, com todas essas significativas mudanças, a notoriedade não pode ser considerada sinônimo de qualidade epistêmica para confiabilidade acerca da sua ocorrência. É inaugurado um novo paradigma cultural em que a obtenção de conhecimento e de informações sobre fatos ocorre de forma completamente distinta do passado [3].

Diante disso, por uma questão estritamente pragmática, a melhor solução para a dogmática processual é classificar a notoriedade em duas diferentes modalidades: direta e indireta [4].  Essa classificação é capaz não só de admitir no processo fatos geralmente conhecidos porque apreendidos pela experiência coletiva no momento em que a decisão é proferida (notoriedade direta), mas também aqueles fatos de ciência pública que podem ser comprovados por meio de fontes confiáveis, inclusive informações disponíveis online (notoriedade indireta).

Guardadas as devidas distinções entre os sistemas jurídicos, é uma proposta semelhante ao regramento da judicial notice nos Estados Unidos, previsto na Rule 201 das Federal Rules of Evidence, em que estão fora da disputa probatória fatos que são geralmente conhecidos nos limites territoriais do tribunal e fatos que podem ser averiguados com precisão a partir de fontes confiáveis [5].

A incorporação dessa classificação da notoriedade torna possível que o órgão jurisdicional, por meio dos seus poderes instrutórios, verifique se o fato é efetivamente notório com base em fontes confiáveis, desde que o faça como regra de instrução mediante abertura ao contraditório das partes para evitar decisão-surpresa e mediante fundamentação específica acerca da confiabilidade e credibilidade dessas informações. Como as informações estão disponíveis a um clique de distância, não é o caso de proibir a sua utilização no processo judicial, mas — repita-se, por um critério pragmático — de trazer a questão da notoriedade para a dialética processual, permitindo o controle da questão fática adequadamente, para conferir legitimidade à decisão judicial por meio da prova da notoriedade. Além disso, essa classificação prestigia o direito fundamental à prova, uma preocupação que muitos processualistas registraram contra o uso inadequado do fato notório no processo judicial. Afinal, a dispensa da prova sobre esses fatos poderia ser maliciosamente utilizada para sonegar das partes o direito de provar.

O caso da autoria da canção Roda Viva é um exemplo claro de como essa classificação pode tornar mais efetivo o acertamento da questão fática, com a devida atenção ao direito fundamental à prova. Em um primeiro momento, a decisão chamou a atenção de parcela da comunidade jurídica e da sociedade em geral justamente porque é contrária à realidade. E um dos principais, senão o principal, objetivo do fato notório é o de conferir legitimidade social às decisões judiciais. Afinal, a decisão emanada pelo juiz não pode ir de encontro ao que todos sabem ser verdade.

A autoria da canção pode ser considerada um fato notório para diferentes estratos sociais: os fãs de Chico Buarque, os estudiosos da música popular brasileira ou aqueles que vivenciaram o Festival de Música Popular Brasileira ocorrido no final da década de 1960. Para esses, a notoriedade do fato é direta. No entanto, com o passar dos anos, a percepção acerca dessa notoriedade é fragilizada, especialmente pelo aspecto temporal. Nada impede, contudo, que o órgão jurisdicional recorra a fontes confiáveis para demonstrar a notoriedade do fato, o que, em última instância, é a prova do fato em si. Nesse caso, a notoriedade do fato é indireta. Não à toa, há notícia recente de que Chico Buarque usará um manuscrito para provar que é o autor e compositor da música. Porém, o órgão julgador, em vez de extinguir o processo, poderia, de ofício, inspecionar essa coisa não-corpórea que é a informação online acerca da autoria da canção Roda Viva para esclarecer fato relevante para a causa em julgamento, nos termos do artigo 481 do CPC.

O fato notório, tal como é empregado atualmente no Direito Processual, acaba polarizando uma discussão entre o relativismo, como se não existissem fatos notórios, e o autoritarismo, como se fosse um absurdo a não percepção pelo outro da notoriedade do fato. Diante da classificação proposta, o adequado é permitir a prova da notoriedade, inclusive com utilização de fontes online de informação, para assegurar uma decisão justa e aderente à realidade dos fatos.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II —Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 


[2] CALAMANDREI, Piero. Per la definizione del fatto notorio. Rivista di Diritto Processuale, v. 2, nº 1, p. 273-304, 1925.

[3] WEINBERGER, David. Too big to know: rethinking knowledge now the facts aren’t the facts, experts are everywhere, and the smartest person in the room is the room. New York: Basic Books, 2012.

[4] Propus essa classificação em PEREIRA, Carlos Frederico Bastos. Fato notório: revisão crítica diante da difusão digital de conhecimento. Tese (Doutorado  Programa de Pós-Graduação em Direito Processual), Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2022. Versão comercial no prelo.

[5] Para maiores detalhes, cfr. <https://www.law.cornell.edu/rules/fre/rule_201>.

Autores

  • é doutor em Direito Processual pela USP (Universidade de São Paulo), mestre em Direito Processual pela Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo), professor de Direito Processual Civil na FDV (Faculdade de Direito de Vitória) e advogado.

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