Opinião

A falência da política de repressão às drogas no Brasil

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2 de maio de 2024, 14h18

R$ 2.103.514.245, 67 (dois bilhões, cento e três milhões, quinhentos e quatorze mil, duzentos e quarenta e cinco reais e sessenta e sete centavos). Eis o custo que o Estado brasileiro teve com 700.978 (setecentos mil, novecentos e setenta e oito) presidiários em 2023, segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça e Segurança Pública (Senappen) [1].

Thathiana Gurgel/DPRJ

R$ 3.000,83 (três mil reais e oitenta e três centavos) foi o custo médio do preso por unidade federativa [2] no ano de 2023. Para resolver o problema de déficit de vagas no sistema prisional brasileiro, hoje tão superlotado que o Supremo Tribunal Federal o caracterizou como “estado de coisas inconstitucional”, seria necessário, ainda, conforme apontado em relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), um aporte de mais de R$ 5,4 bilhões por ano até 2037 [3].

Esses são, apenas, alguns dados relativos aos custos com o sistema penitenciário. Se tivermos em conta que 31% dos presos brasileiros estão encarcerados em razão de algum crime ligado ao tráfico de entorpecentes [4], chegaremos à conclusão de que o gasto do sistema prisional relacionado à guerra às drogas é de R$ 652.089.416,16 (seiscentos e cinquenta e dois milhões, oitenta e nove mil, quatrocentos e dezesseis reais e dezesseis centavos).

Mas não é só. Se levados em consideração, de um modo mais amplo, todos os custos relacionados ao aparato estatal concernente à política repressiva de drogas, como gastos com Polícias Federal, Civil e Militar, Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, entre outros órgãos integrantes do Sistema de Justiça, a despesa é sobremaneira mais elevada [5].

Isso sem falar nos custos sociais — superencarceramento, aumento da violência e da discriminação contra minorias desfavorecidas, fornecimento de mão-de-obra para facções criminosas etc. — e pessoais — destruição de vidas, principalmente de jovens negros, desintegração de famílias — decorrentes da atual política antidrogas.

Paradoxalmente, os gastos do Estado brasileiro com outras políticas públicas relevantes, como aquelas relativas a educação básica e saúde pública, são drasticamente menores do que aqueles despendidos com a política de combate às drogas.

Aliás, considerando-se o custo médio mensal do preso por unidade federativa, no importe de R$ 3.000,83, o Brasil gastou em 2023 quase cinco vezes mais com o sistema prisional do que com educação básica, na qual foram investidos apenas cerca de R$ 683,33 ao mês por aluno [6].

Esses dados demonstram que a conclusão de Milton Friedman em relação à guerra às drogas nos Estados Unidos — no sentido de que os custos desse combate superam largamente os seus benefícios [7] — aplica-se igualmente ao Brasil. O gasto cada vez maior no combate às drogas não apenas não se traduziu na diminuição do consumo, mas também gerou efeitos colaterais extremamente nefastos.

Mais do que isso, a política pública brasileira repressiva do tráfico de drogas, somada à falta de oportunidades econômicas lícitas, cria incentivos comportamentais (“sludges”) [8] que, ao invés de dissuadirem o tráfico, acabam por estimular a sua prática, porque o custo de oportunidade para a prática do ilícito é sobremaneira menor que o benefício de se incorrer no delito.

Pery Francisco Assis Shikida e Helena Nickel, em circunstâncias socioeconômicas da prática Ilícita para apenados por prestação de serviços e/ou pecuniária: um estudo de caso em Foz do Iguaçu (PR) [9], sustentam que a prática de crimes — de natureza patrimonial/econômica [10]  — compensa, eis que seus benefícios são mais elevados que seus custos.

A escolha comportamental pela prática de um crime com repercussão patrimonial, especialmente o tráfico de drogas, é estimulada, predominantemente, pelo expressivo ganho econômico em breve espaço de tempo, considerada a dificuldade em se obter o mesmo resultado por meios lícitos, diante do baixo grau de escolaridade da maioria dos agentes que praticam os delitos.  Tanto assim que, no universo de agentes entrevistados na pesquisa, o nível de instrução com maior frequência foi o ensino fundamental, interrompido por motivos como a necessidade de contribuição à renda familiar [11].

Além disso, elementos adicionais à renda concorrem para que seja feita uma escolha racional de migração para setores ilegais da economia, tais como status, ambição, indução de amigos, dentre outros fatores socialmente relevantes para muitos daqueles que estão à margem das políticas de inclusão e pertencimento.

O certo é que, das análises empírico-comportamentais empreendidas pelos estudiosos, confirmou-se o prognóstico de um dos fundamentos da teoria econômica da escolha racional de Becker, segundo o qual, existindo ganhos superiores aos custos no julgamento do potencial delituoso, a tendência é de que o agente racional execute o crime.

Noutras palavras, mesmo o recrudescimento legislativo de sanções penais não se mostrou, por si, elemento suficiente à dissuasão comportamental para que agentes do tráfico fossem desestimulados da prática do delito do tráfico de drogas. Ao contrário, como se viu dos números acima, quanto mais o Brasil investe financeiramente em políticas encarceradoras ao longo dos anos, maior tem sido o número de agentes que são enquadrados no delito de tráfico.

Vale ressaltar que um alto índice de criminalidade, além de diminuir o bem-estar da sociedade, pode expulsar investimentos presentes e afastar investimentos futuros, anotam uma vez mais Pery Francisco Assis Shikida e Helena Nickel [12].

Se a política atual é comprovadamente fracassada, resta saber, então, qual seria a melhor e economicamente mais eficiente arquitetura regulatória para se suplantar normativamente esse sistema social, pessoal e financeiramente caro que gera tantos efeitos colaterais maléficos à nossa sociedade.

Repensar sem preconceitos

É preciso repensar, sem dogmas ou preconceitos, mas com fundamentos econômicos e com base em pesquisas empíricas, a política de drogas. Afinal, a criminalização das drogas, em especial do porte de drogas, foi baseada em pouco embasamento científico, sendo fundamentada no moralismo e no punitivismo das políticas internacionais: formulações com maior ênfase nos valores morais e culturais do que nas evidências científicas das diferentes áreas do saber [13].

Descrimalizar, despenalizar ou legalizar? Eis a indagação que permeia a construção de qualquer política pública atinente ao consumo próprio e ao tráfico de drogas. Para cada escolha normativa entre descriminalizar, despenalizar ou legalizar, produz-se uma consequência dotada de uma racionalidade econômica específica.

As variáveis econômicas possuem uma peculiar relação com as taxas de criminalidade. Estudos econômicos apontam que o aumento da renda disponível em atividades lícitas, assim como o nível de escolaridade e a taxa de desemprego possuem relação causal com a criminalidade.

O Brasil, até aqui, optou pela mera despenalização do consumo, isto é, a extinção da pena privativa de liberdade apenas para o usuário. Embora produza como benefício, em teoria, a diminuição do estigma do usuário como presidiário, a despenalização, hoje prevista em nosso sistema pelo artigo 28 da Lei nº 11.343/2006, não reduz o custo das atividades policiais, do sistema criminal e tampouco impacta na oferta do mercado ilegal de drogas. Pior, não produz nem mesmo o desencarceramento que se propõe realizar.

Em 2006, ano de edição da Lei nº 11.343, de acordo com dados do Depen [14], a população carcerária brasileira era de 321.435 presos e, em apenas uma década, o número total de encarcerados subiu para 722.120, representando um incremento de 224%. Em 2023, segundo dados atuais fornecidos pela Secretaria Nacional de Política Penais, o total da população brasileira chegou a 644.316 presos [15].

Veja-se, neste particular, que, em 2006, os presos por crime de tráfico correspondiam a 47.472, isto é, 15% da população carcerária total. Em 2016, esse número aumentou para 159.638. Já em 2021, este quantitativo foi elevado para 219.393 presos do sexo masculino e feminino [16].

A novidade, todavia, ocorreu no ano de 2023, com a redução do quantitativo de presos pelo tráfico de drogas do sexo masculino e feminino para 168.021. Se considerado, nesta somatória, o quantitativo de presidiários enquadrados por associação ao tráfico e tráfico internacional de entorpecentes, esse número sobe para 199.731.

Aumento do encarceramento

Decerto, múltiplos fatores concorrem simultaneamente para o aumento do encarceramento da população brasileira, mas, sem dúvidas, o critério normativo, ou melhor, a lacuna normativa existente no âmbito da Lei nº 11.343/2006, contribuiu decisivamente para esta expressiva marginalização social promovida pelo encarceramento.

É que, embora o artigo 28 da Lei nº 11.343/2006 não reprima o usuário com o cerceamento da liberdade, os critérios de reconhecimento, pelo aparato repressor, do estado de traficância de determinado sujeito são largamente abertos e indeterminados, permitindo ao intérprete colmatar subjetivamente, no caso concreto, as lacunas da regra normativa mediante suas visões e (pré) concepções estabelecidas pelos seus paradigmas linguísticos de mundo.

Afinal, os atuais 18 verbos da conduta típica do tráfico tornam qualquer indivíduo que se aproxime de uma droga ilícita um potencial traficante e, assim, desestimulam os agentes policiais de buscar outros elementos probatórios da suposta traficância, deixando nas mãos da polícia o poder de julgar quem efetivamente será o traficante [17].  

A descriminalização, discutida pelo Supremo Tribunal Federal, por sua vez, exclui o delito de uso/consumo, e não apenas a pena cominada. Em sendo assim, torna-se possível redirecionar os recursos financeiros e humanos à repressão de crimes mais graves, inclusive o próprio tráfico ilícito de entorpecentes, ao invés de focar a penalização do usuário de drogas ilícitas.

Da mesma forma que a despenalização, esse modelo mantém intacta a oferta no mercado ilegal de tráfico de drogas. São exemplos de países que descriminalizaram o porte para consumo de uma ou várias drogas ilícitas: Portugal, Israel, Croácia e Finlândia [18].

Para que funcione a contento, porém, é preciso que sejam fixados critérios objetivos de diferenciação entre usuário e traficante, sob pena de continuarmos enfrentando as mesmas dificuldades atuais.

Já a medida mais ousada da legalização do consumo e da produção, para fins recreativos ou medicinais, teria como benefício a redução do mercado ilícito, porquanto o produto passaria a ser ofertado em lojas autorizadas pelo próprio Estado, com controle de qualidade da droga ofertada ao usuário, além de contribuir para a arrecadação tributária. São exemplos de países que adotam este modelo o Canadá e o Uruguai.

Inegavelmente, o modelo de política de drogas adotado no Brasil é social e economicamente ineficiente. E, pior do que isso, estimula, sob a ótica do custo de oportunidade, a prática do crime para quem trafica, além de estigmatizar o pequeno usuário, marcando-o com a pecha de criminoso.

Embora a descriminalização permita um redirecionamento de recursos financeiros para políticas que, ao invés de estigmatizar o usuário, tratam o problema de saúde do usuário de forma singularizada, acreditamos que a legalização, especialmente da venda e consumo de maconha — droga mais leve, que pode ser objeto de uma primeira experiência regulatória controlada —, mediante um amplo e rigoroso controle estatal, é a melhor forma de acomodar tanto o interesse do combate ao tráfico, quanto do controle do consumo. Afinal, permite tanto um controle de qualidade do produto, como autoriza o próprio Estado a adotar políticas de regulação do uso, como ocorre, por exemplo, com o tabaco e o álcool.

São essas, dentre outras, as relevantes conclusões alcançadas por Alessandra Gomes F. Baldini em sua recente obra, a cuja leitura remetemos o presente leitor, “Para Além da Criminalização: repensando a política de drogas”, que, à guisa de sandbox regulatório, sugere a legalização da maconha a partir de um modelo, entre nós adotado para o tabaco, cujo consumo diminuiu e a percepção do risco aumentou, por meio de campanhas educativas, taxas, restrição de venda, propaganda, idade e outras limitações que visam prevenir o consumo e uso abusivo [19].

 


[1] Dados disponíveis em:

https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMWRjYTUwM2QtOTdmOC00OTk3LWEyODQtZTkxNGQ3YjEwYzdmIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em 26.04.2024.

[2] Dados disponíveis em:

https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMWRjYTUwM2QtOTdmOC00OTk3LWEyODQtZTkxNGQ3YjEwYzdmIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em 26.04.2024.

[3] SUPERLOTADAS, PRISOES NO BRASIL GASTAM R$ 15,8 BILHOES AO ANO, DIZ TCU. UOL, 17 jul. 2019. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/últimas noticias/2019/07/17/superlotadas-prisoes-no-brasil-gastam-r-158-bilhoes-ao-ano-diz-tcu.htm. Acesso em: 15.04.2024.

[4] Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais, a quantidade de presos, na data-base 31.12.2023, por tráfico de drogas foi de 168.021, por associação ao tráfico foi de 25.529 e por tráfico internacional de entorpecentes foi de 6.181. Somadas as três categorias, chega-se a uma quantia de 199.731 de presos, em 2023, por alguma vinculação com o tráfico.

[5] Cf., a respeito, LEMGRUBER, Julita (coord.) et al. Um tiro no pé: impactos da proibição das drogas no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e São Paulo. Rio de Janeiro: CESeC, março de 2021. Disponível em: https://cesecseguranca.com.br/wp-content/uploads/2021/03/Um-Tiro-no-Pe_relatorio-completo.pdf. Acesso em: 26.04.2024.

[6] De acordo com a Portaria Interministerial n. 7, de 29 de dezembro de 2023, o VAAT-MIN (Valor Aluno Ano Total) definido mensalmente para o ano de 2023 do âmbito do Fundeb fica estabelecido em R$ 8.196,52. Esse valor total anual por aluno divido por 12 (doze) meses perfaz a quantia mensal de R$ 683,33. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-interministerial-n-7-de-29-de-dezembro-de-2023-534997841. Acesso em 26.04.2024.

[7] Cf., a respeito, Thornton, Mark, ‘Milton Friedman, Drug Legalization, and Public Policy’, in Robert A. Cord, and J. Daniel Hammond (eds), Milton Friedman: Contributions to Economics and Public Policy (Oxford, 2016; online edn, Oxford Academic, 18 Aug. 2016).

[8] Os sludges se contrapõem aos nudges, que são mecanismos que buscam incentivar um comportamento específico, benéfico para o sujeito, mas sem alterar a sua liberdade de escolha. Os sludges funcionam em sentido diverso, estimulando comportamentos prejudiciais à pessoa. Cf., a respeito, THALER, Richard; SUNSTEIN, Carl. Nudge: The Final Edition. New York: Penguin, 2021.

[9] SHIKIDA, Pery; NICKEL, Helena. Circunstâncias socioeconômicas da prática ilícita para apenados por prestação de serviços e/ou pecuniária: um estudo de caso em Foz do Iguaçu (Paraná). In: Economic Analysis of Law Reviw. EALR, v. 13, n. 2, p 3-22, mai-ago, 2022.

[10] Os crimes patrimoniais dos apenados que foram objeto de entrevista na pesquisa foram: contrabando, descaminho, tráfico de drogas, sonegação fiscal, lavagem de capitais, crime de telecomunicação, documentos falsos, moeda falsa, peculato, evasão de divisas, direitos autorais, estelionato, falsidade ideológica, crime contra a fauna, receptação, formação de quadrilha, roubo e furto.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem.

[13] BALDINI, Alessandra Gomes Faria. Para além da criminalização: repensando a política de drogas. São Paulo: D`Plácido, 2024, p. 133.

[14]Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios–e-manuais /relatórios/brasil. Acesso em: 15.04.2024.

[15] https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios/relipen/relipen-2-semestre-de-2023.pdf. Acesso em 26.04.2024.

[16] De acordo com os dados do Depen, quase 70% dos detentos nas prisões brasileiras respondem por crimes relacionados a duas categorias: patrimônio e drogas. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMTMwZGI4NTMtMTJjNS00ZjM3LThjOGQtZjlkZmRlZTEyMTcxIiwidCI6ImViMDkwNDI- wLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em: 15.04.2024.

[17] VALOIS. Carlos Luís. O direito penal das drogas. Boletim Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), ano 24, 286, set. 2016, p. 4-5. Disponível em: http:// arquivo.ibccrim.org.br/siteboletim/pdfs/Boletim286.pdf. Acesso em 15.04.2024.

[18] Ibidem.

[19] Ibidem.

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