Opinião

E a juíza ignorou a "Roda Viva" e carregou a sentença pro outro lado

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28 de novembro de 2022, 6h32

Leio a manchete do UOL: "Juíza questiona autoria de música de Chico Buarque em ação contra Eduardo Bolsonaro".

Reprodução/Montagem ConJur
Reprodução/Montagem ConJur

No corpo da reportagem, descubro que era isso mesmo. Coisa singela. Chico ingressa com ação por uso indevido de sua música por Eduardo Bolsonaro. Causa finita.

Ou não. Porque a juíza, mostrando o quanto precisamos fazer controles nas "consciências dos juízes" (ou na sua opinião sobre o autor da ação ou sobre as suas músicas), decidiu por livre convencimento. Livremente apreciou a causa. Vejam: dizem que "sentença vem de sentire…". Claro que isso é falso. Até na tradução. Mas fosse verdade, será que a juíza não sente a beleza de "Roda Viva"? Oiçam: Há dias que a gente se sente… Poesia pura. Poiesis.

Spacca
Isto é, mesmo que até as pedras saibam que a música "Roda Viva" é de Chico, assim como a Nona Sinfonia é de Beethoven, a juíza se esmerou e "superou" a "tarifação da história institucional da música". E decidiu como quis. Ela não gosta de Chico. Mas eu adoro (aliás, isso já deu música do Chico: Você não gosta de mim, mas sua filha gosta)!

Por caridade epistêmica, tento sofisticar uma coisa simples. Quem estuda teoria do direito vai saber do que a que me refiro. Critérios e limites. Limites e critérios. E constrangimentos.

Embora pareça até que estejamos em face de uma pilhéria (no início achei que fosse) feita pela juíza, o caso tem uma questão de fundo: quais os limites de uma decisão. Um juiz pode dizer qualquer coisa? Um juiz pode ignorar as coisas do mundo? Porque o direito não é um mundo à parte. Sim, é um critério institucionalizado de resolução de controvérsias e desacordos. E tem regras para isso. Que não são as do gosto do juiz. Ou da juíza.

O direito, fenômeno institucionalizado que é, com o caráter que tem, é a linguagem pública por excelência. Talvez por isso a rebeldia de tantos juízes e atores institucionais que agem como se a linguagem fosse privada.

Sempre se pode ir mais a fundo. "Prove que a música é sua." "Prove que você é você." "Prove que fui omisso ou contraditório." Ou melhor: se tentar provar isso, direi que você nada provou. E ainda vou lhe multar. Captou?

O viés de confirmação é uma praga. Foi denunciada no século 17 por Bacon (o Francis). Bom, no caso em análise, nem tem viés. Porque é evidente que a juíza sabe que "Roda Viva" é de Chico. Até a malta vivandeira acampada sabe. Logo, nem disso se trata.

Portanto, é muito pior. É humptydumptysmo jurídico: dou às palavras o sentido que quero. (Coluna inepta: eu não trouxe ao site Consultor Jurídico um anexo com a comprovação de que houve mesmo um filósofo chamado Francis. Alguém poderá pensar que "bacon" é o do Big Mac.)

Não há fatos, diria a juíza. Só há interpretações. Com isso, é possível até dizer que o 7 a 1 que levamos da Alemanha não ocorreu. Eis um caso de negacionismo epistemológico.

Você pode mesmo sempre transformar um easy case num hard case. Isto é, desde que esteja disposto a insistir que a linguagem pode ser privada. E se achar que tem lugar institucional para tornar o direito um jogo de linguagem no qual você é dono do campinho. Pronto. Já sofistiquei de novo.  E, inepto, esqueci de demonstrar com certidão quem inventou "isso de hard case".

Post scriptum (do latim aquilo que vem depois…!)

Na linha que a juíza seguiu, cada vez que alguém disser algo sobre, por exemplo, modo de produção, tem de trazer as páginas de O Capital. Sob pena de indeferimento da inicial.

Ora, a música é mesmo de Chico Buarque. Aliás, Chico Buarque é mesmo um ser humano? Ele não provou isso. É isto um homem? (nota: ver livro de Primo Levi…)

E as partituras da Nona Sinfonia? E onde estão as certidões de cartório quando falamos no Hino da União Europeia?

Quando alguém disser "Freud explica", há que citar o livro Psicologia das Massas…e a página…

E se dissermos Bonjour, coloquemos uma nota de rodapé: Cf. Baudelaire, na obra…!

Mas isso tudo há de passar (nota de rodapé: Ver, nesse sentido, Chico Buarque, Canção inscrita no CADE sob número…). 

Um dia isso vai passar (outra nota, porque repeti o título de uma música…). É como se um dia isso fosse passar (nota: a filosofia do Como Se, de Hans Vaihinger…).

Até quando catilinaremos neste país (nota sobre a frase dita por Cicero…)?

Às montanhas (ver, nesse sentido, Iron Maiden ou o desenho Leão da Montanha).

Post scriptum 2 (também do latim. Ver, nesse sentido, Dicionário de Latim…)

E se começássemos a ter o mesmo rigor e exigir comprovações e evidências em decisões judiciais? Falei sobre isso e recomendo a leitura. Título: Que tal exigir evidências científicas das decisões.

Cuidado com o que desejam.

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