Público x Privado

Protocolo sobre cloroquina pode levar a responsabilização por erro grosseiro

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25 de maio de 2020, 9h06

Spacca" data-GUID="luiz-inacio-adams-spacca.png">Na época em que minhas duas filhas viviam a fase de descobertas e aventuras da infância sobrevivi a uma saturação de filmes da Disney. Branca de Neve, Cinderela, Pequena Sereia, A Bela e A Fera, Toy Story e muitos outros . Posso dizer, sem vergonha ou remorso que me tornei um especialista nestes filmes e acabei descobrindo neles, apesar de serem dirigidos a um público infantil, uma narrativa impregnada de inteligência.

Um destes filmes que particularmente apreciei foi "A Vida de Inseto", lançado em 1998, baseado na belíssima obra de Akira Kurosawa, "Os Sete Samurais" (1954) e o posterior "Magnificent Seven" de John Sturges (1960). Na estória da Disney, um colônia de formigas, assolada por gafanhotos que roubam todo ano as colheitas, busca a ajuda de insetos da "cidade" para enfrentar os constantes assaltos sofridos. Em um determinado momento particularmente importante, a Princesa Ada da colônia da formigas, ao tentar explicar a inexistência de grãos para serem roubados, começa a atribuir a responsabilidade a uma das formigas da colônia, quando é interrompida pelo líder dos gafanhotos com a seguinte frase: "Princesa Ada. Primeiro passo da liderança: tudo é culpa sua!"

A frase dita em um filme infantil contém um profundo significado para aqueles que assumem a liderança no Estado. Isto porque é inerente a quem ocupa uma função pública o uso responsável e ético do poder e o de assumir a liderança, por exemplos e palavras, na escolha dos caminhos a serem trilhados É uma responsabilidade que não pode ser terceirizada, como bem lembrado no filme da Disney, dando a todos os que integram a sociedade uma referência de comportamento. Portanto, os atos de Estado guardam uma legitimidade a ser reconhecida e, ao mesmo tempo, a ação irresponsável dos agentes do Estado deve ser penalizada e aqueles afetados devem ser compensados.

Neste contexto, destaca-se a decisão do Supremo Tribunal Federal, a limitar a irresponsabilidade dos agentes do Estado prevista na Medida Provisória 966 e a estabelecer as condições específicas que devem consideradas para reconhecer o erro grosseiro. Nas múltiplas Ações Diretas de Inconstitucionalidade propostas (ADI 6421, 6422, 6424, 6425, 6427, 6428 e 6431) o Supremo Tribunal, na sua maioria, entendeu, em sede de cautelar, que os atos de agentes públicos em relação à pandemia da Covid-19 devem observar critérios técnicos e científicos de entidades médicas e sanitárias na tomada de decisão. Em outras palavras, não estão protegidos os servidores que adotarem decisões administrativas sem observância destes critérios técnicos e científicos de entidade médicas e sanitárias, suscitando questionamentos de ordem administrativa e civil, como direito à reparação por exemplo.

Aqui, vem à baila a adoção de protocolo pelo Ministério da Saúde para expandir o uso da cloroquina em situações de sintomas leves de Covid-19. Primeiramente, é importante referir que múltiplos estudos tem sido produzidos que apontam para a ineficácia e até o risco do uso da cloroquina. Logo após o protocolo ser adotado pelo Ministério da Saúde, o jornal científico The Lancet publicou, em 22 de maio, estudo que acompanhou 100 mil pacientes em todo o mundo e que apontou não apenas a ineficácia do fármaco para combater a Covid-19, mas também o risco de ataque cardíaco nos pacientes, com aumento da mortalidade.

Diversas entidades médicas no país, logo após a publicação do novo protocolo pelo Ministério da Saúde, fizeram coro contra o uso da cloroquina de forma ampla, como indicado no ato protocolo. Aliás, a própria justificativa do ato que liberou o uso guarda o germe da responsabilização estatal: "até o momento não existem evidências científicas robustas que possibilitem a indicação de terapia farmacológica específica para a Covid-19”. E é importante também reconhecer que a tentativa de terceirizar a responsabilidade ao médico pelo uso do fármaco não é suficiente para afastar a responsabilidade estatal que provê uma orientação para a comunidade médica e para toda a sociedade.

Igualmente, não subsiste o último recurso do protocolo do Ministério da Saúde em secundar-se no Parecer 004 do Conselho Federal de Medicina (CFM), de 16 de abril de 2020. Ocorre que, ao contrário do protocolo estatal que expande o uso do fármaco, o parecer adotado pelo CFM é claro a considerar o uso da cloroquina e hidroxicloroquina apenas em condições excepcionais. As diversas recomendações de orientação aos pacientes quanto à inexistência de comprovação da eficácia do uso da cloroquina para tratar a Covid-19, presente no parecer do CFM, sequer são referidas no protocolo do Ministério da Saúde.

Aliás, a decisão foi tomada, sem a oitiva da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS (CONITEC), e são reveladoras as palavras da Secretária Gestão de Trabalho e de Educação na Saúde do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, para justificar a medida: "Estamos falando de uma guerra onde precisamos disponibilizar o direito que é clamado por brasileiros" (Folha de São Paulo, 20/5/2020). Aparentemente, o elemento catalizador da decisão foi o político e não o técnico. Tudo considerado, o caso do protocolo da cloroquina adotado pelo Ministério da Saúde pode ser o primeiro caso em que venha a ser aplicado o entendimento do Supremo Tribunal Federal do que seja erro grosseiro.

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