Um destes filmes que particularmente apreciei foi "A Vida de Inseto", lançado em 1998, baseado na belíssima obra de Akira Kurosawa, "Os Sete Samurais" (1954) e o posterior "Magnificent Seven" de John Sturges (1960). Na estória da Disney, um colônia de formigas, assolada por gafanhotos que roubam todo ano as colheitas, busca a ajuda de insetos da "cidade" para enfrentar os constantes assaltos sofridos. Em um determinado momento particularmente importante, a Princesa Ada da colônia da formigas, ao tentar explicar a inexistência de grãos para serem roubados, começa a atribuir a responsabilidade a uma das formigas da colônia, quando é interrompida pelo líder dos gafanhotos com a seguinte frase: "Princesa Ada. Primeiro passo da liderança: tudo é culpa sua!"
A frase dita em um filme infantil contém um profundo significado para aqueles que assumem a liderança no Estado. Isto porque é inerente a quem ocupa uma função pública o uso responsável e ético do poder e o de assumir a liderança, por exemplos e palavras, na escolha dos caminhos a serem trilhados É uma responsabilidade que não pode ser terceirizada, como bem lembrado no filme da Disney, dando a todos os que integram a sociedade uma referência de comportamento. Portanto, os atos de Estado guardam uma legitimidade a ser reconhecida e, ao mesmo tempo, a ação irresponsável dos agentes do Estado deve ser penalizada e aqueles afetados devem ser compensados.
Neste contexto, destaca-se a decisão do Supremo Tribunal Federal, a limitar a irresponsabilidade dos agentes do Estado prevista na Medida Provisória 966 e a estabelecer as condições específicas que devem consideradas para reconhecer o erro grosseiro. Nas múltiplas Ações Diretas de Inconstitucionalidade propostas (ADI 6421, 6422, 6424, 6425, 6427, 6428 e 6431) o Supremo Tribunal, na sua maioria, entendeu, em sede de cautelar, que os atos de agentes públicos em relação à pandemia da Covid-19 devem observar critérios técnicos e científicos de entidades médicas e sanitárias na tomada de decisão. Em outras palavras, não estão protegidos os servidores que adotarem decisões administrativas sem observância destes critérios técnicos e científicos de entidade médicas e sanitárias, suscitando questionamentos de ordem administrativa e civil, como direito à reparação por exemplo.
Aqui, vem à baila a adoção de protocolo pelo Ministério da Saúde para expandir o uso da cloroquina em situações de sintomas leves de Covid-19. Primeiramente, é importante referir que múltiplos estudos tem sido produzidos que apontam para a ineficácia e até o risco do uso da cloroquina. Logo após o protocolo ser adotado pelo Ministério da Saúde, o jornal científico The Lancet publicou, em 22 de maio, estudo que acompanhou 100 mil pacientes em todo o mundo e que apontou não apenas a ineficácia do fármaco para combater a Covid-19, mas também o risco de ataque cardíaco nos pacientes, com aumento da mortalidade.
Diversas entidades médicas no país, logo após a publicação do novo protocolo pelo Ministério da Saúde, fizeram coro contra o uso da cloroquina de forma ampla, como indicado no ato protocolo. Aliás, a própria justificativa do ato que liberou o uso guarda o germe da responsabilização estatal: "até o momento não existem evidências científicas robustas que possibilitem a indicação de terapia farmacológica específica para a Covid-19”. E é importante também reconhecer que a tentativa de terceirizar a responsabilidade ao médico pelo uso do fármaco não é suficiente para afastar a responsabilidade estatal que provê uma orientação para a comunidade médica e para toda a sociedade.
Igualmente, não subsiste o último recurso do protocolo do Ministério da Saúde em secundar-se no Parecer 004 do Conselho Federal de Medicina (CFM), de 16 de abril de 2020. Ocorre que, ao contrário do protocolo estatal que expande o uso do fármaco, o parecer adotado pelo CFM é claro a considerar o uso da cloroquina e hidroxicloroquina apenas em condições excepcionais. As diversas recomendações de orientação aos pacientes quanto à inexistência de comprovação da eficácia do uso da cloroquina para tratar a Covid-19, presente no parecer do CFM, sequer são referidas no protocolo do Ministério da Saúde.
Aliás, a decisão foi tomada, sem a oitiva da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS (CONITEC), e são reveladoras as palavras da Secretária Gestão de Trabalho e de Educação na Saúde do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, para justificar a medida: "Estamos falando de uma guerra onde precisamos disponibilizar o direito que é clamado por brasileiros" (Folha de São Paulo, 20/5/2020). Aparentemente, o elemento catalizador da decisão foi o político e não o técnico. Tudo considerado, o caso do protocolo da cloroquina adotado pelo Ministério da Saúde pode ser o primeiro caso em que venha a ser aplicado o entendimento do Supremo Tribunal Federal do que seja erro grosseiro.