Segurança na Crise

Sem gabinete de crise para a Covid-19, estados "desobedecem" a União

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9 de junho de 2020, 18h01

ConJur
Cientistas políticos e juristas costumam afirmar que existem tantos modelos de federação quanto o número efetivo de estados federativos. Isto é, diferentemente dos estados unitários — que congregam muitas características em comum —, cada pacto federativo é único. No caso brasileiro, fica então a pergunta: a quem cabe orquestrar as ações de combate à epidemia de Covid-19? 

Para responder a essa e outras questões sobre as competências federativas durante a crise, a TV ConJur promoveu mais um episódio da série "Segurança na Crise", que contou com a participação de Hamilton Dias de Souza, advogado e conselheiro do Iasp; Renato Silveira, presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo; e Fernando Facury Scaff, professor titular de Direito Financeiro da USP e colunista da ConJur.

Para Dias de Souza, a resposta está no artigo 21, inciso XVIII da Constituição, que prevê ser competência da União "planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas". Para o especialista, então, deve-se adotar a premissa de que vivemos uma calamidade pública, pois a epidemia alterou praticamente todas as relações jurídicas, havendo inclusive um decreto legislativo que a reconheceu (Decreto Legislativo 6/2020). 

Em a competência sendo da União, esta deve elaborar, portanto, normas gerais sobre a matéria, conforme dispõe o artigo 24 da Constituição. No caso, foi editada a lei 13.979/2020, que determina as medidas de enfrentamento à calamidade pública. "Os estados devem obedecer àquilo que é previsto pelas normas gerais da União. A competência supletiva dos estados não pode afastar aquilo que foi dito pela União. Isso é relevantíssimo, pois não é o que tem sido observado", afirma Hamilton.

Para o advogado, assim, não há hoje no Brasil uma coordenação no combate à epidemia. E essa falta de coordenação estaria relacionada a dois julgamentos recentes do STF: a ADPF 672 e a ADI 6.341.

Fazendo a distinção entre competência concorrente — para legislar, conforme artigo 24 da Constituição — e competência administrativa — conforme o artigo 23, também da Constituição —, Hamilton diz acreditar que atualmente os estados fazem o que bem entendem, sem observância da norma geral editada pela União.

"O Supremo entendeu que se trata de competência concorrente, mas a competência concorrente é para emitir normas. A União tem normas, mas os estados não baixaram leis específicas para regular a norma geral. Os estados fazem o que bem entendem hoje com base numa suposta competência administrativa, que poderia ser exercida sem obediência às normas gerais da União. Em outras palavras: nós não temos coordenação. E por não termos coordenação, o Brasil agrava muito o ataque à epidemia", opina.

Scaff concorda com a inexistência de coordenação geral. "A falta dessa coordenação nacional — aquilo que a gente chama de um gabinete de crise, para poder identificar e coordenar as ações contra a pandemia — simplesmente não aconteceu. Houve um laissez-faire na saúde. E aí a gente tem uma montanha de realidades e de diversas coordenações sem seguir a regra geral, sem seguir essa coordenação", afirma.

Para o penalista Renato Silveira, uma vez reconhecida à calamidade pública, pode haver um momento de restrição a liberdades individuais e o uso de alguns tipos penais específicos de um momento específico na saúde pública — notadamente o artigo 268 do Código Penal, que versa sobre a conduta de se "infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa". Para o especialista, esse norma só pode ser aplicada com segurança se houver coordenação nacional. 

"Se imaginarmos que estados e municípios de fato podem tudo, nós vamos ter leis penais estaduais e municipais, porque haverá uma cisão completa de realidades. Só que é necessária uma mínima coordenação do poder central a permitir afirmar o que vem ou não a ser crime, porque, do contrário, será criado um pandemônio jurídico-penal bastante difícil do ponto de vista de aplicação correta do Direito", afirma.

Silveira lembra ainda que, em tese, a omissão de gestores públicos poderia, sim, gerar punição a eles. "Mas, por óbvio, neste quadro em que nos encontramos neste momento, me parece prematuro qualquer tipo de abordagem imputando crimes a quem quer que seja. Lembrando que o Direito Penal, de modo genérico, só deve ser utilizado em última instância, em ultima ratio", defende.

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