Opinião

Citação de Bolsonaro na UTI: sobre a validade do ato processual

Autores

  • é advogado criminalista em Fortaleza. Doutor em Direito com estágio pós-doutoral. Professor titular da Universidade de Fortaleza (doutorado mestrado especializações e graduação em Direito). Professor Associado da UFC (Universidade Federal do Ceará — graduação em Direito).

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  • é professor de Direito e Processo Penal doutor em Direito Constitucional pela Unifor (Capes 6) mestre pela Universidade de Coimbra (Portugal) com estágio de pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) especialista em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará defensor público do estado do Ceará e membro e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará.

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  • é defensora pública do estado de Pernambuco e mestra em Direito.

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2 de maio de 2025, 19h21

O presente artigo examina a validade jurídica da citação judicial do ex-presidente Jair Bolsonaro, feita durante sua internação em UTI de hospital, sob a ótica exclusiva do processo penal constitucional, sem qualquer interferência de paixões políticas ou midiáticas. A análise se ancora nas disposições Código de Processo Penal (CPP), interpretadas em diálogo com a doutrina e decisões dos tribunais superiores, bem como nos limites da aplicação supletiva ou subsidiária do Código de Processo Civil (CPC). Também se esclarece, com base dogmática e jurisprudencial, o que se compreende como lacuna, silêncio eloquente e incompatibilidade normativa, à luz do sistema acusatório.

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A citação judicial é o marco inicial do exercício do contraditório e da ampla defesa no processo penal (art. 363, CPP). No Brasil, este ato deve observar rigorosamente os princípios constitucionais, notadamente os artigos 1º, III e 5º, incisos XI e LV da Constituição Federal. O recente episódio da citação do ex-presidente Jair Bolsonaro durante internação em uma unidade hospitalar reacendeu debates jurídicos (e colocou fogo na polarização política) sobre a legalidade do ato, sobretudo no tocante à aplicação subsidiária do CPC ao CPP, e supostos limites à realização do ato processual. A controvérsia concentra-se, em particular, na definição de impedimentos relacionados a local, dia, horário ou condições que possam indicar incapacidade momentânea do citado para receber validamente a citação.

A aplicação de normas do CPC ao CPP

O artigo 3º do CPP prevê a possibilidade de interpretação extensiva, aplicação analógica e utilização dos princípios gerais de direito. Diferentemente do que ocorre em relação aos processos eleitoral, trabalhista e administrativo, o artigo 15 do CPC não prevê aplicação supletiva e subsidiária ao processo penal. Assim, nem o CPP, nem o CPC, contém regra ampla e generalizada, porém a aplicação subsidiária e supletiva deste àquele é admitida, por exemplo, pelo Superior Tribunal de Justiça [1].

Calha frisar que inexiste uma autorização irrestrita para que os institutos do processo civil sejam transferidos de forma acrítica para o processo penal , de sorte que a aplicação subsidiária deve ocorrer em hipóteses específicas e expressamente previstas. É o caso, a título ilustrativo, do artigo 139 [2] e do artigo 790 [3], ambos do CPP.

No que se refere à temática da citação, um exemplo de aplicação expressa do CPC à ritualística processual penal é a citação por hora certa, disciplinada pelo artigo 362 do CPP. Essa aplicação, no entanto, não se estende a outras modalidades de citação, porquanto não há, nesse caso, norma expressa que autorize nem lacuna evidente que a justifique.

Lacuna, silêncio eloquentemente qualificado e inaplicabilidade

Bobbio [4], com razão, adverte que, a rigor, “não há lugar para a lacuna do Direito”, pois não “é possível admitir um caso que seja jurídico e que apesar disso não seja regulado”. Lacuna deve ser entendida como lacuna legislativa expressa, ou seja, a ausência de norma jurídica onde razoavelmente se esperaria sua existência, cabendo, nestes casos, ao intérprete dar “completude” ao ordenamento jurídico por meio de técnicas decisórias, como o uso da analogia. Diferentemente, o “silêncio eloquente” se caracteriza quando o legislador, propositalmente, decide não regular determinada situação — o que impede a aplicação supletiva ou analógica.

 

No processo penal, o silêncio quanto à aplicação geral do CPC não é acidental. Não há norma que permita, de forma genérica, a aplicação subsidiária do CPC ao CPP, diferentemente do que ocorre nos processos eleitoral, trabalhista e administrativo. Logo, não se trata de lacuna a justificar integração normativa. A explicação é simples: as categorias elaboradas para a proteção de direitos disponíveis no processo civil assumem contornos distintos no processo penal, em que o juiz deve atuar como guardião dos direitos fundamentais do acusado. Destarte, a aplicação de normas processuais civis exige análise casuística e respeito à estrutura garantista do processo penal.

Em outra oportunidade, refletiu-se sobre o tema [5], elencando hipóteses de aplicação das normas do CPC subsidiariamente ao Processo Penal. Nas hipóteses de lacuna, não há norma processual penal específica para o caso concreto; no entanto, mantendo-se a compatibilidade com o sistema acusatório, é possível aplicar, por analogia, normas do processo civil que se adequem à situação. O juiz, visando suprir a lacuna e assegurar a completude do ordenamento jurídico, recorre ao CPC como fonte subsidiária, desde que seus dispositivos não conflitem com os princípios do processo penal; é o caso, por exemplo, da utilização do inciso I do artigo 145 do CPC ao processo penal, pois no artigo 254 deste diploma não há previsão de arguição de suspeição do juiz com base na amizade ou inimizade  com o advogado do acusado.

A lacuna também pode surgir se, embora existente norma processual penal, esta for incompatível com o sistema acusatório estabelecido pela Constituição Federal. Nesse caso, o julgador deve afastar sua aplicação: se a norma for anterior a 5 de outubro de 1988, considera-se não-recepcionada; se posterior, declara-se sua inconstitucionalidade.

A terceira hipótese de lacuna ocorre quando a legislação processual penal apresenta regulação incompleta ou insuficiente. Nessas situações, o CPC atua de forma supletiva, complementando as normas do Código de Processo Penal (CPP) sem substituí-las. Exemplo dessa dinâmica é a utilização do artigo 256, § 3º, do CPC, que impõe a realização de diligências para a localização do réu antes de citação por edital.

Não havendo lacunas, incompletude ou previsão expressa de aplicação de outras normas processuais, não existe hipótese a ser suprida pela analogia ou aplicação supletiva do CPC.

A citação em ambientes extraordinários: domicílio, UTI e capacidade de compreensão

Fixados os parâmetros gerais sobre a matéria, passa-se à análise da (im)possibilidade de realização da citação no ambiente hospitalar nos meandros do processo penal brasileiro.

De partida, é fundamental esclarecer que o hospital não se configura como domicílio, e, por conseguinte, não se pode invocar a proteção prevista no inciso XI do artigo 5º da Constituição Federal, que assegura a inviolabilidade do domicílio, com exceções relacionadas a mandados judiciais e situações de flagrante delito. Assim, a citação realizada em ambiente hospitalar não encontra vedação expressa.

Com relação ao ato de citação, rememora-se que o artigo 357 [6] regulamenta a forma como o mandando deve ser cumprido, ao tempo em que o artigo 352 [7] preconiza os seus elementos. A citação somente será válida se abranger as exigências de ambos os artigos [8].

As formalidades estabelecidas para o ato de citação não são filigranas jurídicas, mas, sim, mecanismos indispensáveis para assegurar a efetividade do direito fundamental previsto no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal (pleno exercício do contraditório e da ampla defesa, com os meios e recursos a eles inerentes). Nessa esteira, para que o contraditório se configure de maneira substancial, é imprescindível a eficácia da comunicação processual [9], visto que esta possibilita ao acusado o devido conhecimento da acusação, permitindo-lhe, assim, a adoção de medidas adequadas para a defesa de seus direitos, em consonância com os princípios do devido processo legal e da justiça equânime.

Assim, não havendo disposição impeditiva de comunicação processual no ambiente domiciliar, e estando fundamentada a decisão em fatos amplamente divulgados da condição mental hígida do citando, a citação realizada é válida. Não se pode cogitar de nulidade na medida em que o ato processual foi concretizado dentro dos quadrantes legais e constitucionais.

A questão ganharia contornos jurídicos diversos caso o estado de saúde do acusado comprometesse sua capacidade de compreensão, ou ainda, caso interferisse diretamente no seu exercício do direito de defesa. Nesse contexto, a citação, mesmo realizada de acordo com as formalidades legais, poderia ser considerada nula se restasse demonstrado que a condição de saúde do acusado o impediu de entender a acusação ou de reagir de forma eficaz no processo. Acrescenta-se que, em caso de problemas de saúde mental que tornem o acusado incapaz de compreender o processo, o juiz pode e deve nomear um curador, independentemente de ser caso de suspensão ou não do curso da ação penal. E, na hipótese de impossibilidade de citação pelo fato de o acusado estar sedado ou em coma, a situação deve ser resolvida com a suspensão imediata do trâmite processual, sem suspensão da prescrição, como preconiza o art. 152 do CPP.

Retomando o foco ao caso específico do ex-presidente Bolsonaro, não há qualquer alegação de incapacidade mental do réu Bolsonaro. Muito ao contrário, o ex-presidente havia participado de uma live dois dias antes da citação, interagindo com apoiadores e demonstrando pleno estado de lucidez mental. Nessas condições, a citação, ainda que realizada em hospital, não comprometeu os direitos processuais nem violou o devido processo legal.

A garantia do contraditório e a capacidade cognitiva do citado

A citação válida pressupõe que o acusado esteja em condição de compreender o ato e suas consequências. Decerto, não é o local da citação que determina sua (in)validade, mas sim a (in)capacidade efetiva do réu de receber o ato com plena consciência de entender a acusação e reagir adequadamente. Se o citado estiver em coma, sob sedação intensa ou sem capacidade de manifestação, o ato seria considerado nulo por violação ao contraditório, senão da própria dignidade humana.

Imagine-se o caso de um réu com problemas respiratórios e, embora acordado, estivesse em extrema dor; ainda, o caso de um acusado em pleno velório de um filho, com grande aflição e emoção, sem condições de, naquele momento, compreender ou se concentrar no ato comunicatório. Ninguém haveria de duvidar que a intimação ou citação assim realizada feriria a dignidade humana e a ideia mesma de conhecimento e oportunização de manifestação substancial no processo.

Mesmo que, remotamente, se admitisse a aplicação do inciso IV artigo 244 do CPC, que impede a citação de doente, enquanto grave o seu estado de saúde, a participação ativa do ex-presidente em situações que seriam vedadas a indivíduos em situação de saúde crítica, como visitas de inúmeras pessoas ou a participação em atividades online de “venda de capacete” denotam que eventual alegação de gravidade poderia ser contestada.

Conclusão

A citação do ex-presidente Jair Bolsonaro, mesmo ocorrida em hospital, é juridicamente válida, na perspectiva da dogmática processual, pois não se ampara em lacuna legal, não está coberta por cláusula de inviolabilidade e não violou qualquer garantia processual, considerando que o citado demonstrava plena capacidade de compreensão.

Diante da ausência de disposição expressa autorizando a aplicação do CPC ao CPP no caso examinado, e havendo disposição processual penal que regula integralmente a situação, não existe omissão a ser suprida pela analogia ou aplicação supletiva.

A análise do caso evidencia a necessidade de compreender o processo penal como instrumento de garantia, pautado por critérios dogmáticos e constitucionais, e não como espaço para leituras utilitaristas ou políticas. O processo penal é o limite do poder punitivo estatal.

 


[1] REsp n. 1.568.445/PR, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, relator para acórdão Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, julgado em 24/6/2020, DJe de 20/8/2020.

[2]  CPP, art. 139.  “O depósito e a administração dos bens arrestados ficarão sujeitos ao regime do processo civil”.

[3] Art. 790.  O interessado na execução de sentença penal estrangeira, para a reparação do dano, restituição e outros efeitos civis, poderá requerer ao Supremo Tribunal Federal a sua homologação, observando-se o que a respeito prescreve o Código de Processo Civil.

[4]  Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora UNB, 1999 1999, p. 129.

[5] Rocha, J. Bheron . Sistemas Processuais: A Questão Da Aplicação Supletiva E Subsidiária Do Art. 15 Do Novo Cpc. In: Franklyn Roger Alves Silva. (Org.). O Novo Código De Processo Civil E A Perspectiva Da Defensoria Pública. 2ed.Salvador: JusPodivm, 2019, v. 1, p. 41-54, p.52.

[6] “Art. 357.  São requisitos da citação por mandado: I – leitura do mandado ao citando pelo oficial e entrega da contrafé, na qual se mencionarão dia e hora da citação; II – declaração do oficial, na certidão, da entrega da contrafé, e sua aceitação ou recusa”

[7]“Art. 352.  O mandado de citação indicará: I – o nome do juiz; II – o nome do querelante nas ações iniciadas por queixa; III – o nome do réu, ou, se for desconhecido, os seus sinais característicos; IV – a residência do réu, se for conhecida; V – o fim para que é feita a citação; VI – o juízo e o lugar, o dia e a hora em que o réu deverá comparecer; VII – a subscrição do escrivão e a rubrica do juiz.”

[8]BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 10 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022,p.925.

[9] Aury Lopes, Direito Processual Penal. 13 edição. Saraiva. 2016. p.558

Autores

  • é advogado criminalista, doutor, mestre e especialista em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, com estágio pós-doutoral pela Universidade do Minho, professor titular da Universidade de Fortaleza (doutorado, mestrado, especializações e graduação em Direito), professor associado na Universidade Federal do Ceará (graduação em Direito).

  • é defensor público no Estado do Ceará, doutor em Direito Constitucional (Unifor), mestre em Ciências Jurídico-criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal), professor (Unichristus) e presidente do Conselho Penitenciário do Ceará.

  • é defensora pública do estado de Pernambuco e mestra em Ciências Jurídico-criminais pela Universidade de Coimbra.

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