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A fragilidade epistêmica do reconhecimento pessoal (parte 1)

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e defensora pública do estado de Pernambuco.

1 de março de 2024, 8h00

Sabemos todos da imensa fragilidade epistêmica de qualquer prova dependente da memória, mas especialmente do reconhecimento pessoal, como explicaremos.

Mas o mais preocupante é verificar que na prática judiciária, o reconhecimento é valorado como “muito importante” por 90,3 % dos atores judiciários (juízes, promotores e delegados), como demonstra importante pesquisa realizada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e o Ministério da Justiça, coordenada por Lilian Stein  [1] :

Esses dados são extremamente preocupantes, porque essa cultura segue habitando o imaginário de juízes (e desembargadores, por elementar), promotores e delegados e será o ponto de partida da nossa coluna de hoje.

Reconhecimento
Não é incomum que o reconhecimento do réu realizado por uma vítima ou testemunha se traduza em fundamento único de uma sentença condenatória no Brasil.

A correlação entre o ato de reconhecimento e a formação do juízo de culpabilidade do acusado reforça a relevância da doxa no interior da episteme [2] do direito probatório e precisa ser superada, em prol de uma adequada realização judicativo-decisória.

Spacca

A memória humana é o epicentro do reconhecimento de pessoas. Estudos da psicologia do testemunho (a seguir referenciados) demonstram que a memória sofre interferências de diversas naturezas, as quais podem impactar no registro, armazenamento ou recuperação do acontecimento, conduzindo a falsas memórias e falsos reconhecimentos. E isso resulta em graves erros judiciários.

Pesquisas do Innocence Project [3] apontam que, nos Estados Unidos, reconhecimentos equivocados são a principal causa de revisões criminais.

No Brasil, em que pese não tenhamos investigações com a mesma amplitude sobre a matéria, já temos alguns mapeamentos que apresentam conclusões análogas.

A título exemplificativo, citamos o relatório lançado pela Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro (DPE-RJ) em maio de 2022, no qual foram examinados 242 processos envolvendo 342 réus, em 32 comarcas, no período de janeiro a junho de 2021, restando constatado que, do universo de réus declarados inocentes ao final do processo (apenas 27% deles), 83% teve prisão preventiva decretada em seu desfavor no curso da persecução, com duração média de um ano e dois meses [4].

Os avanços científicos da psicologia do testemunho, bem como as estatísticas que corroboram o vínculo entre reconhecimentos equivocados e decisões judiciais desacertadas, foram elementos substanciais para uma viragem jurisprudencial acerca do artigo 226 do CPP, norma disciplinadora do reconhecimento de pessoas.

O referido dispositivo legal, apesar da sua explícita densidade normativa [5], foi considerado “anos a fio” um mero aconselhamento do legislador. A doutrina crítica há décadas reclamava desse grave erro dos tribunais, de flexibilizar formas, para considerar que o artigo 226 era uma “mera recomendação”. Resquícios de uma cultura autoritária e inquisitória, que sempre pregou — de forma velada — o amorfismo, desprezando a regra mais sagrada do processo penal: forma é garantia.

Paradigma
Somente com o julgamento do emblemático HC nº 598.886/SC [6], operou-se um câmbio paradigmático e a 6ª Turma do STJ sustentou a força cogente do artigo 226 do CPP, cujas “formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime”, nas palavras do voto condutor do ministro Schietti.

Esse novo entendimento se espraiou para a 5ª Turma do STJ [7] e também para o STF [8], bem como serviu de mola propulsora para a edição da Resolução nº 484/2022 do CNJ.

O ministro Schietti foi cirúrgico no referido leading case: a tipicidade procedimental do artigo 226 do CPP é garantia mínima do acusado.

Vale dizer, as formalidades legais, em que pese necessárias, não são suficientes para aniquilar totalmente a possibilidade de decisões injustas fundamentadas em reconhecimentos equivocados, pois a memória humana sofre interferências que não podem ser controladas pela justiça penal.

Spacca

Dessarte, o reconhecimento válido não tem força probante, por si só, para lastrear uma condenação.

A literatura científica nos adverte que a memória humana pode sofrer interferências das chamadas variáveis de estimativas e ainda das denominadas variáveis sistêmicas [9].

Estas podem (e devem) ser controladas pela justiça penal. Justamente com esse desiderato, o artigo 226 do CPP traça regras para que o reconhecimento de pessoas seja concretizado de maneira mais segura.

Nos termos do artigo 226 do CPP, o ato de reconhecimento compreende duas etapas: a prévia descrição da pessoa a ser reconhecida (inciso I) e a sua posterior identificação ladeada de outras pessoas que guardem com ela traços físicos semelhantes (inciso II).

Na primeira fase, a vítima/testemunha deve fazer uma narrativa espontânea e mais detalhada possível sobre a pessoa a ser identificada, bem como das circunstâncias fáticas e emocionais que envolveram o contato visual com o agente, como, por exemplo, tempo, distância, condições de iluminação, uso de drogas e/ou álcool e o emprego de arma de fogo [10].

Ultrapassado esse primeiro momento, o acusado deve ser apresentado na forma line-up. No perfilamento justo, o suspeito deve ser colocado ao lado de outros indivíduos com características físicas semelhantes — nos termos do artigo 8º, inciso II da Resolução nº484/2022 do CNJ, devem ser, no mínimo, quatro pessoas. Também nos termos do artigo 8º, §2º da referida Resolução, é vedado qualquer realce que possa induzir a identificação do suspeito, a exemplo do uso de algemas ou trajes de detento.

Partindo-se de uma interpretação literal do inciso II do artigo 226 do CPP [11] — que, diga-se de passagem, remonta ao ano de 1941 —, poder-se-ia imaginar que o alinhamento não é regra obrigatória. Contudo, em uma interpretação teleológica da norma, o alinhamento justo figura como garantia (mínima) do acusado.

Outrossim, devem figurar como distraidores (foils ou fillers) pessoas que sejam sabidamente inocentes [12], bem como deve ser informado à vítima/testemunha que o autor do crime não necessariamente integra o alinhamento, de forma que lhes restem diversas alternativas de reconhecimento, inclusive a possibilidade de concluir que o suspeito não está entre aquelas pessoas que lhe foram apresentadas [13].

Esse alerta minimiza a chance de reconhecimentos equivocados, conforme atestaram experimentos científicos realizados por Malpass e Devine em 1981, cuja pesquisa empírica concluiu que reconhecimentos na modalidade line-up, sem a presença do acusado (culprit-absent lineup), resultaram em 78% de erros quando os identificadores não foram informados que o autor do crime não necessariamente integraria o alinhamento, ao passo que o índice de desacertos diminuiu para 33% quando houve o devido aviso prévio.

Em outro panorama — no qual o suspeito integrou o alinhamento, e mesmo assim foi realizado o alerta de não obrigatoriedade de sua presença — o percentual de reconhecimentos errados caiu para 13% [14].

A forma como o procedimento é concretizado interfere fortemente no seu resultado final, por isso “elementar que a confiabilidade do reconhecimento também deve considerar a pressão policial ou judicial (até mesmo manipulação) e a inconsciente necessidade das pessoas de corresponder à expectativa criada” [15].

Ademais, tirar da vítima a responsabilidade de necessariamente apontar o autor do crime é uma forma de resguardar sua dignidade no processo penal, evitando sua famigerada sobrevitimização.

As pesquisas científicas evidenciam que o resultado de um reconhecimento concretizado na modalidade show-up é maculado, em razão do nítido sugestionamento [16]. Acrescenta-se que essa prática é expressamente vedada, nos termos do artigo 4º da Resolução nº 484/2022 do CNJ.

Infelizmente muitas dessas lições científicas, consoante demonstraremos na segunda parte deste artigo, são relegadas ao ostracismo na práxis penal brasileira.

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[1] Avanços científicos em Psicologia do Testemunho aplicados ao Reconhecimento Pessoal e aos Depoimentos Forenses /

Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos. — Brasília : Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL) ; Ipea, 2015. 104p. : il. color. – (Série Pensando o Direito; 59).

[2] WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In Revista Sequência. Santa Catarina, v. 3, n. 5, 1982, p.52

[3] Disponível em: https://innocenceproject.org/how-eyewitness-misidentification-can-send-innocent-people-to-prison/. Acesso em 28/01/2024.

[4] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xjcGNJYG0wU, acesso em 25/01/2024. Sobre a temática, recomendamos a leitura do relatório CONDEGE / DPE-RJ:  http://condege.org.br/2021/04/19/relatorios-indicam-prisoes-injustas-apos-reconhecimento-fotografico/, acesso em 25/01/2024.

[5] SARLET, Ingo Wolfang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.269

[6] STJ. Sexta Turma. HC 598.886/SC. Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. em 27/10/2020.

[7] Dentre tantos, vide: HC 591920/RJ. STJ. 5º T. Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. em 22/06/2021.

[8] Por exemplo: STF, RHC 206846/SP. Rel. Min. Gilmar Mendes, j em 22/02/2022.

[9] WELLS, Gary L. Applied Eyewitness-Testimony Reserach: System Variables and Estimator Variables. In Journal of Personality and Social Psychology, vol.36, n. 12, p. 1546-1557, 1978

[10] ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas memórias e Sistema Penal: a prova testemunhal em xeque. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, p.132

[11] CPP, art. 226, inc. II: “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la” (grifos nossos).

[12] MATIDA, Janaina; CECCONELLO, William. Outra vez sobre o reconhecimento fotográfico. Disponível em: ://www.conjur.com.br/2021-out-01/limite-penal-outra-vez-reconhecimento-fotografico#:~:text=A%20literatura%20tem%20apresentado%20que,risco%20de%20serem%20injustamente%20escolhidos. Acesso em: 27/01/2024

[13] CECCONELLO, William Weber. AVILA, Gustavo Noronha de. STEIN, Lilian Milnisky. Novos rumos para o reconhecimento de pessoas no Brasil? Perspectivas da psicologia do testemunho frente à decisão do HC 598.886/SC. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 177, 2021, p.361.

[14] WELLS, Gary L.; SEELAU, Eric P. Eyewitness identification: psychological research and legal policy on lineups. In Psychology, Public Policy, and Law, v. 1, n. 4, 1995, p.769

[15] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p.495.

[16] STEIN, Lilian Milnitsky. ÁVILA, Gustavo Noronha de. Avanços científicos em psicologia do testemunho aplicados ao reconhecimento pessoal e aos depoimentos forenses. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça (Série Pensando Direito, nº59), 2015, p. 28. Disponível em: http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2016/02/PoD_59_Lilian_web-1.pdf, acesso em 27/01/2024

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Processual Penal, professor titular no Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado, em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra.

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