Interrogatório por videoconferência no plenário do júri
26 de agosto de 2023, 8h00
Em junho de 2023, chegou ao Supremo Tribunal Federal, por intermédio do HC 229.271/MT, uma importante questão jurídica, qual seja: a (im)possibilidade de interrogatório por videoconferência em sessão plenária. O caso concreto versava sobre a situação de um acusado que se encontrava encarcerado a 1.800 km de distância do juízo processante. Após a designação do júri, o juiz-presidente acenou para a realização do interrogatório virtual do réu. As partes divergiram sobre essa decisão, e é justamente sobre esse embate de posicionamentos que nos debruçaremos no presente artigo.
A princípio, em 15/6/2023, o ministro Gilmar Mendes decidiu monocraticamente por negar seguimento ao habeas corpus, nos termos do artigo 21, §1º, RISTF. Para além de pontuar dupla supressão de instância, uma vez que o mérito da questão não foi analisado no tribunal de origem e nem no STJ, o relator entendeu não ser o caso de suspensão do julgamento. Contudo, em 16/6/2023, o ministro, reconsiderando a decisão anterior, concedeu a ordem apenas para suspender a realização da sessão plenária designada. O mérito da questão será analisado pelo STJ, nos autos do HC 822.130/MT.
O caso concreto, cujos detalhes são irrelevantes para os fins do presente artigo, foi mencionado apenas para situar o(a) leitor(a) sobre a questão jurídica que lhe é subjacente: é possível a realização de interrogatório do réu por videoconferência em sessão plenária do júri?
Se nem mesmo em meio a uma crise sanitária mundial, autorizou-se a realização remota de júri, com mais ênfase não se pode cogitar do uso da tecnologia em situações ordinárias. A realização de júri por videoconferência, conforme já debatido aqui [1], viola direitos fundamentais do acusado, bem como compromete a justiça da decisão do Conselho de Sentença.
A despeito do Código de Processo Penal (artigos 185, §2°) admitir excepcionalmente a realização do interrogatório do réu por videoconferência, não deve ser admitida uma sessão plenária híbrida, com a presença virtual do acusado, e participação presencial dos jurados, testemunhas, Ministério Público, defesa técnica e Judiciário. A oralidade e imediatidade são vigas mestras do tribunal do júri e do próprio sistema acusatório. É imprescindível que os jurados tenham contato direto com as partes e com as provas para decidirem com mais segurança e qualidade.
Em investigação realizada pela professora Manuela Abath [2] acerca do uso de videoconferência nas audiências de custódia, tendo por parâmetro estudos teóricos e pesquisas empíricas realizados nos Estados Unidos, onde a experiência com a realização de atos processuais remotos iniciou-se na década de 1980, a pesquisadora enumera algumas problemáticas que são facilmente transponíveis para eventual interrogatório virtual em sessão plenária. Vejamos:
1) os atos realizados de forma virtual não são encarados com o mesmo senso de seriedade dos atos presenciais, especialmente para que não detém conhecimentos jurídicos;
2) o uso dessa tecnologia pode causar maior intimidação no acusado, conduzindo a comportamentos inesperados que podem ser valorados em seu prejuízo;
3) os acusados, em regra, não alcançam totalmente o objetivo de cada ato processual, a tarefa desempenhada pelos diversos atores jurídicos, e até mesmo os termos de sua contribuição no processo. O patamar de desentendimento pode ser potencializado no plano virtual, porquanto o réu fica privado de captar a comunicação não verbal, como gestos, posturas e olhares. Por outro lado, julgador e órgão acusatório também não têm acesso à linguagem não verbal do depoente.
4) nos casos de interrogatório realizado por videoconferência, o ângulo da câmera interfere na forma como a mensagem é captada pelo receptor da mensagem. Ademais, existe o risco de que a transmissão de som modifique o tom e o timbre de voz do acusado, gerando falsas impressões sobre o que efetivamente foi dito.
A par dessas questões elencadas, pontuamos que o interrogatório por videoconferência afeta o grau de empatia dos atores do sistema de justiça em relação ao réu [3].
Na década de 60 do século passado, Stanley Milgram [4] — professor da Universidade de Yale —, por meio de um experimento empírico, demonstrou que a proximidade ou distanciamento físico entre as pessoas resvala efeitos psicológicos na forma como um indivíduo se comporta com relação ao outro.
O professor Milgram convocou voluntários para participar de um suposto teste de memória, no qual funcionariam como "professor", acompanhados por um "aluno" (em verdade, um ator) e um "pesquisador" (na realidade, um assistente de Milgram). Na hipótese de o "aluno" cometer erro durante o teste, o "professor" estaria autorizado a dar-lhe um choque de 15 V até 450 V, sendo que a corrente elétrica não afetava verdadeiramente o "aluno" [5].
Em um primeiro momento, o "professor" não tinha contato visual com o “aluno”, mas apenas ouvia seus gemidos de dor e gritos de socorro. Nesse cenário, 65% dos voluntários chegaram a aplicar os choques até o nível máximo permitido. Posteriormente, foi se estabelecendo uma aproximação física entre "professor" e "aluno", até o momento daquele precisar segurar o braço deste para aplicação do choque. Nessa configuração, a porcentagem de voluntários propensos a aplicar o choque na voltagem máxima autorizada se reduziu para 30%.
Transportando os resultados da experiência empírica acima relatada para o mundo jurídico, mais especificadamente para o procedimento do júri, podemos concluir que o contato presencial favorece um vínculo de empatia entre os jurados e o acusado, diminuindo as chances de injustiças.
A partir do momento em que os julgadores do fato desumanizam o réu, as suas palavras serão desacreditadas, ao passo que questões alheias ao fato, como, por exemplo, a necessidade de segurança pública, vão (indevidamente) influenciar o julgamento do caso [6].
A questão se torna ainda mais problemática se o réu for interrogado de dentro de uma unidade prisional — por vezes, trajando uniforme de presidiário e escoltado —, pois essa circunstância pode repercutir como indício de culpa perante os jurados leigos. E vamos além: trata-se de situação até mais gravosa que um interrogatório presencial de réu algemado. Explicamos. O uso de algemas, só admitido excepcionalmente nos termos da Súmula Vinculante 11 do STF, não pode ser utilizado como argumento de autoridade pelo Ministério Público, ao passo que, diante do entendimento dos tribunais superiores de que o rol do artigo 478 do CPP é taxativo [7], a situação carcerária do acusado poderia, em tese, ser explorada na sessão plenária.
O interrogatório por videoconferência em sessão plenária também viola o direito do réu à (plena) defesa técnica. A distância física pode dificultar que o acusado, comumente pessoa sem escolaridade, entenda que existe um profissional responsável pela promoção de sua defesa.
Outrossim, para que o advogado/defensor público atue eficazmente em favor do réu, é fundamental que ambos possam se comunicar durante o ato processual para traçar a melhor estratégia defensiva. O direito ao confronto, por exemplo, se torna inviável quando o acusado não pode indicar ao seu causídico contradições ou lacunas durante a inquirição das testemunhas/vítima supérstite.
O sistema de justiça criminal não deve funcionar de forma alheia aos recursos tecnológicos inerentes ao mundo contemporâneo. Contudo, a virtualização dos atos processuais não pode atropelar direitos e garantias fundamentais do acusado, sob a escusa da celeridade processual e/ou contenção de gastos públicos. Frisamos que o direito de presença do acusado, corolário da autodefesa, não se satisfaz com a mera transmissão de imagens e sons, mesmo que de forma síncrona.
A plenitude de defesa, e toda uma panóplia de direitos dela decorrentes, somente é devidamente contemplada quando for oportunizado ao réu um julgamento adequado. O direito de comparecer presencialmente ao lado de seu advogado/defensor público e de estar na mesma ambiência dos seus julgadores caracteriza a imposição constitucional do julgamento justo perante o júri popular.
[1] GOMES, Diogo de Oliveira; MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves. Realização de júris por videoconferência é inconstitucional. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jul-03/gomes-muniz-juri-videoconferencia-inconstitucional, acesso em 5/6/2023.
[2] VALENÇA, Manuela Abath. Audiências de custódia por videoconferência: um caso bem-sucedido? In Revista Direito GV. v. 19, e 2325. São Paulo, 2023, p.10-11
[3] SILVA, Rodrigo Faucz Pereira e. Os riscos de um juízo por jurados virtual: a ausência das partes e dos envolvidos durante o julgamento no Brasil. In Sistemas Judiciales: uma perspectiva integral sobre la Administración de justicia. publicación anual del CEJA e INECIP. Anõ 20, Nº 24, p.176.
[4] MILGRAM, Stanley. Obedience to Authority. Tavistock Publications: London, 1974, p.41
[5] MILGRAM, Stanley. Obedience to Authority. Tavistock Publications: London, 1974, p. 15 e ss.
[6] SOUBHIA, Fernando Antunes. A videoconferência como fator de descolamento emocional. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jul-28/tribuna-defensoria-videoconferencia-fator-descolamento-emocional, acesso em 6/8/2023
[7] Nesse sentido: STJ, AgRg no HC 763.981/MS, rel. min. Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, julgado em 6/3/2023; STF, HC 226.259/PA, rel. min. Gilmar Mendes, decisão monocrática em 19/6/2023; STF, RHC 213.075 AgR/SC, 1ª Turma, rel. min. Cármen Lúcia, DJe 25/5/2022
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